quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Os conventos que salvaram os judeus do Holocausto


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 12. castel-gandolfo-pio-xii-ebrei-letto-guerra-profughi.jpg
Refugiados no Palácio Apostólico de Castel Gandolfo



Em fuga das perseguições nazistas

O rastreamento de 16 de outubro de 1943 durou exatamente oito horas e meia, das 5h30 até as 14h. Era um sábado, dia de festa e repouso para a religião judaica, dia escolhido não a caso pelo projeto diabólico dos nazistas, cuja intenção era eliminar um povo inteiro. Ao concluir a operação, nas ruas desertas do gueto judeu de Roma, ainda ressoavam os gritos de desespero dos 1.259 judeus romanos, dos quais 689 mulheres, 363 homens e 207 meninos e meninas, arrancados de suas casas à força pelas tropas da Gestapo. Dos presos, 1.023 foram logo deportados para os campos de concentração de Auschwitz, e apenas 16 voltaram às suas casas. Outros conseguiram fugir em busca de ajuda algumas horas antes da incursão daquela noite.

Pesquisa histórica baseada em testemunhos orais

Impossível quantificar com exatidão o número total de judeus escondidos ou salvados pela Igreja Católica. Os motivos são muitos : em primeiro lugar a falta quase total de documentação escrita que por prudência e para evitar rastreabilidade comprometedora foi evitada. Também não se pode omitir o vergonhoso fenômeno das delações. Por isso, a pesquisa histórica destes acontecimentos são baseadas principalmente nos testemunhos orais. Descobre-se situações muito diversificadas : judeus escondidos em casas religiosas por livre iniciativa das mesmas, ou hospedados em mosteiros de clausura sob indicação e concessão da Santa Sé, lugares cristãos como as Catacumbas de Priscila, que se tornaram pontos de referência para a rede de documentos falsos, às casas religiosas que eram abastecidas pelo Vaticano e que depois distribuíam alimentos aos refugiados que abrigavam. E também as estruturas que abriam suas portas gratuitamente e as que pediam pagamento de uma mensalidade.

Escondidos e camuflados por cristãos

A hospitalidade acontecia de várias maneiras : da acolhida de famílias inteiras, à de somente homens ou mulheres e crianças. Em muitos casos, por motivos de segurança, os refugiados deviam aprender orações cristãs, e até mesmo usar batinas por causa da blitz dos nazifascistas. A maior parte dos testemunhos confirma um total respeito por parte das irmãs e sacerdotes pela crença judaica. Sem dúvida, os meses de convivência foram uma ocasião de conhecimento inter-religioso que ajudou a dissipar muitos preconceitos recíprocos.

Convivência e compartilhamento

O refúgio em Igrejas e conventos emerge frequentemente nas histórias dos sobreviventes. A acolhida dos judeus foi realizada em num amplo contexto : desde procurados por motivos políticos, aos deslocados e aos órfãos. Durante uma emergência que durou meses, as comunidades religiosas levaram adiante suas atividades normais compartilhando com os hóspedes o que havia de disponível em casa devido às dificuldades econômicas impostas pela guerra. Nos hospitais, os refugiados se camuflavam de pacientes, nas escolas de estudantes, nos institutos de caridade de inválidos.

A chegada nos conventos

As famílias judias chegavam às casas religiosas muitas vezes por conhecimento direto ou por meio de listas de conventos assinalados clandestinamente pelos bispos aos comitês judaicos de assistência. Alguns tinham recomendações influentes, outros batiam às portas das igrejas e mosteiros na desesperada tentativa de encontrar reparo. O então secretário particular de Pio XII, Robert Leiber confirmaria em 1961 que o Papa comunicara que as casas religiosas ‘podiam e deviam’ dar refúgio aos judeus. Também deve ser recordado que entre setembro e outubro de 1943 a Secretaria de Estado e o Vicariato de Roma mandaram distribuir aos vários institutos religiosos placas com a escrita de que eram territórios do Vaticano, (extra-territoriais em relação à Itália) com o objetivo de evitar perseguições e irrupções.

Sacerdotes, religiosas e religiosos ‘Justos entre as Nações’

Dos 486 italianos proclamados ‘Justos ente as Nações’ pelo Yad Vashem, o memorial israelense do Holocausto que desde 1962 examina os dossiês dos não judeus que salvaram judeus durante o Holocausto, cerca de um oitavo pertence ao clero católico : 30 sacedotes dicoesanos, 12 religiosos, 15 religiosas e 4 bispos.

Podemos recordar :

Mons. Placido Nicolini, que liderou uma rede de socorro em Assis; o núncio Angelo Rotta de Budapest que distribuiu aos judeus 19.000 cartas de proteção com credenciais vaticanas. A beata Elisabeth Maria Hesselblad, sueca, fundadora das Brigidinas, mas ativa durante a guerra na Casa Geral de Roma; padre Pietro Pappagallo, mártir das Fossas Ardeatinas, por ter escondido judeus e distribuído documentos falsos para ajudá-los; as irmãs Emerenzia Bolledi e Ferdinanda Corsetti que hospedaram 30 jovens judias e várias famílias no convento romano das Josefinas de Chambèry. Também padre Gaetano Tântalo, pároco de Tagliacozzo que conservou até a morte um pedacinho de pão não fermentado que tinha recebido da família judia de Natan Orviento que protegera durante a guerra na casa paroquial.

Em 2010 a medalha de ‘Justo entre as Nações’ foi dada ao padre jesuíta Raffaele de Ghantuz Cubbe que como reitor do Nobile Collegio di Mondragone, em Frascati, salvou do extermínio nazista três crianças judias escondendo-os ente os estudantes do Colégio. Entre eles Graziano Sonnino ainda vivo.


Fonte :  

domingo, 27 de janeiro de 2019

Freiras quebram o silêncio sobre o abuso sexual de religiosas pelo clero

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Imagem relacionada
*Artigo de Gail DeGeorge,
editora do Global Sisters Report
Tradução : Ramón Lara



Lentamente, termina uma era em que as religiosas católicas eram vítimas silenciosas de abuso sexual por padres e bispos. Consideremos estes desenvolvimentos no ano passado :

• No Chile, o Vaticano está investigando denúncias de membros de uma congregação por abuso sexual dos sacerdotes e por maus tratos por parte de seus superiores.

• Na Índia, o bispo Franco Mulakkal, de Jalandhar, é acusado de estuprar várias vezes uma ex-superiora de uma congregação. Ele é o primeiro bispo da Índia a ser preso por abuso sexual de uma freira. Contudo, o bispo nega as acusações. Mais de 80 irmãs estavam entre os 167 signatários de uma carta em julho passado pedindo que ele fosse dispensado de seus deveres pastorais. Cinco irmãs da congregação e outros apoiadores participaram de uma manifestação pública altamente incomum apoiando a ex-superiora e protestando contra a falta de medidas das autoridades da Igreja e do Estado.

• Declarações encorajando as irmãs a denunciar abuso e que membros da congregação e superioras a acreditar e apoiar as vítimas foram emitidas pela União Internacional de Superioras Gerais, a maior representação mundial da liderança religiosa das mulheres católicas; e pela Conferência de Liderança de Mulheres Religiosas nos EUA.

• A Associated Press publicou uma reportagem em julho sobre o abuso sexual de irmãs, com base em um artigo da National Catholic Reporter em 2001. Em janeiro, publicou uma matéria separada com foco na Índia. Outros relatos da mídia surgiram sobre abusos em Mianmar.

Em mais de uma dúzia de entrevistas para este artigo, surgiram alguns padrões entre países e continentes sobre como ajudar a prevenir abusos e apoiar as vítimas, caso ocorra.

Irmãs individualmente têm que se arriscar a dizer a verdade se isso estiver acontecendo com elas’, disse a Irmã Fherman, sobrinha das irmãs beneditinas do Monte de Santa Escolástica em Atchison, Kansas, que fez um discurso em 2000 sobre o abuso sexual de irmãs, em ocasião de um congresso em Roma de 250 abades beneditinos. ‘Outros em torno deles têm que ouvir e acreditar nelas e não deixar de dar a devida atenção como se estivessem inventando as histórias - que é o mesmo problema que tivemos em toda a sociedade a respeito do abuso sexual de mulheres - que de alguma forma acaba sendo culpa da mulher’, disse Fangman, doutora em aconselhamento que já trabalhou com vítimas de abuso sexual. ‘Se a relação de poder é desigual, preste atenção à pessoa que conta a história porque ela está em desvantagem e provavelmente está dizendo a verdade.’

Ausentes de um protocolo de denúncia ou outra ação do Vaticano, as congregações e as conferências nacionais elaboram discretamente suas próprias respostas. Mais treinamentos de conscientização estão sendo incorporado nos programas de formação e liderança. Medidas pragmáticas estão sendo implementadas, como a assinatura de contratos por escrito para as irmãs que trabalham em paróquias, explicando os deveres e as horas para minimizar as situações vulneráveis em que estariam trabalhando sozinhas. Tais proteções, disseram alguns líderes da congregação, incluem até mesmo detalhes como garantir que as irmãs tenham dinheiro para o transporte, a fim de evitar as viagens com padres ou bispos.

Uma maior independência financeira para as congregações é vital para evitar a dependência excessiva dos bispos diocesanos ou dos párocos, disseram vários. Os doadores devem ser encorajados a enviar dinheiro diretamente para as congregações em vez de através dos escritórios diocesanos. As revisões na lei canônica devem limitar ou impedir que os bispos criem congregações diocesanas, que estão sujeitas a um maior controle local e abuso potencial, disseram algumas irmãs.

Outras mudanças são extremamente necessárias, disseram os entrevistados. Protocolos de dioceses e do Vaticano devem ser estabelecidos, divulgados e seguidos em relação a alegações de abuso por mulheres religiosas.

Mas a mudança real em relação ao abuso de irmãs, muitos dizem, requer uma mudança fundamental na hierarquia e na atitude da Igreja em relação às mulheres. Apesar de não minimizar a dor do abuso sexual, a teóloga feminista Mary Hunt disse que o problema é sintomático de um ‘abuso espiritual’ mais profundo e generalizado perpetrado sobre as mulheres pela igreja dominada por homens. ‘Disseram-nos coisas que não são verdadeiras’, apontou ela. ‘As mulheres foram relegadas a cidadãos de segunda classe’ na igreja.

Um desmantelamento do clericalismo e uma elevação das mulheres e das religiosas aos cargos de liderança também é crítico, segundo os entrevistados. Isso enviaria uma mensagem aos bispos em todo o mundo sobre o status das mulheres, particularmente nos países em desenvolvimento.

Se a igreja pode aceitar as mulheres como mulheres - não como instrumento ou ferramentas a serem usadas - isso seria minha alegria’, disse a Irmã Eneless Chimbali, Serva da Abençoada Virgem Maria que serviu como secretária geral da Associação de Mulheres Consagradas na África Oriental e Central, conhecida pelas siglas ACWECA, desde 2015. ‘É só olhar para a cúria no Vaticano’, disse ela em relação à igreja dominada por homens. ‘As mulheres e os leigos estão sempre no lado receptor - não estão incluídos nos fóruns de tomada de decisão.

As congregações estão fazendo mudanças como podem. Em programas de formação e seminários para superioras, as atitudes estão mudando para treinar melhor as irmãs, especialmente noviças e postulantes, para evitar situações vulneráveis e relatar casos de comportamento inadequado. A Irmã Rose Pacatte, diretora fundadora do Centro Paulino de Estudos de Mídia e colaboradora do National Catholic Reporter, preparou recentemente uma apresentação para diretores de liderança e formação sobre abuso sexual, incluindo seções sobre prevenção, para a Conferência de Líderes Superioras Maiores no Paquistão.

A apresentação, que é aplicável para comunidades e congregações em outros países, inclui seções sobre ‘corrupção de menores’ e exercícios de role-playing para as irmãs praticarem a rejeição de aproximações sexualmente intencionadas e relatarem os casos para suas superioras. Foi criado com a ajuda de Irmã Kathleen Bryant, Religiosa da Caridade que atuou como diretora vocacional da Arquidiocese de Los Angeles por 21 anos e tem sido líder no combate ao tráfico de pessoas por 18 anos, junto com a Irmã Suzanne Mayer, da congregação Coração Imaculado de Maria, diretora de aconselhamento em saúde mental pastoral na Neumann University em Aston, Pensilvânia.

Cada comunidade tem que descobrir como apresentar essa informação para suas irmãs mais novas sem tirá-las dos homens ou do clero - tornando-as sábias, mas não medrosas’, disse Pacatte. ‘Temos que reconhecer que o abuso sexual de irmãs é real e criar um protocolo se algo acontecer.’

A educação de irmãs está ajudando a mudar a dinâmica no Quênia, Malauí, Nigéria e outros países da África, disseram as irmãs nesses países. ‘Há muita consciência, as irmãs estão sendo educadas e seu nível de conhecimento está aumentando para permitir que se defendam e estejam cientes de seus limites’, disse Chimbali.

A ACWECA realiza oficinas sobre a vida religiosa com líderes congregacionais que incluem questões sobre a proteção de crianças e adultos vulneráveis, disse ela. O foco não é apenas em irmãs sendo abusadas pelo clero, mas também em situações em que as irmãs podem estar abusando de jovens ou aqueles que servem, não necessariamente um abuso sexual, mas outras formas de abuso físico, mental ou emocional, disse ela. ‘A questão da proteção infantil ou do abuso sexual é incorporada à formação e à vida religiosa em curso na África’, apontou a religiosa.

Por causa da educação e maior empoderamento das religiosas, a questão do abuso das irmãs pelo clero ‘melhorou muito nos últimos 15 anos’, falou a Irmã Chimbali.

Workshops para mulheres consagradas e homens sobre o acompanhamento de vítimas de violência sexual durante o conflito foram realizados em 2017 e 2018 na República Democrática do Congo e Uganda, patrocinados por parcerias de conferências religiosas e da União de Superiores Gerais, ou UISG, em conjunto com a Embaixada do Reino Unido na Santa Sé. Durante a oficina sobre a Uganda, o arcebispo John Baptist Odama de Gulu, se ajoelhou e pediu desculpas em nome do clero masculino que pode ter abusado de mulheres que serviam em ministérios pastorais.

O artigo do NCR em 2001 citou vários relatórios, alguns datando de meados da década de 1990, sobre o abuso de irmãs pelo clero. Embora tenham sido encontrados casos em 23 países nos cinco continentes, um relatório dizia que o problema na época era particularmente agudo na África por causa da crise da AIDS. Irmãs eram vistas como parceiras sexuais seguras por padres e bispos.

Não está claro qual foi a resposta do Vaticano aos relatórios ou ao artigo do NCR, ou às revelações atuais de abuso sexual de religiosas. A Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica não respondeu a várias investigações feitas desde setembro sobre a resposta aos relatórios de 2001 ou os casos mais recentes de abuso. A assessoria de imprensa do Vaticano não respondeu às perguntas feitas em janeiro.

Anos depois de seu discurso se tornar público, citado no artigo da NCR e em outros artigos e fóruns mais recentes, Fangman lamenta que ‘ainda não há soluções - o que está acontecendo é que as pessoas estão falando sobre isso’.

Se ela fosse escrever o relatório hoje, Fangman assinalou, usaria uma linguagem ainda mais forte. Em seu trabalho de aconselhamento às vítimas, ficou muito mais claro o quão profundas são as feridas do abuso sexual, particularmente o abuso pelo clero. ‘Isso não apenas ataca o espírito delas’, disse a irmã. ‘Ataca a alma delas também porque é a imagem de Cristo através do sacerdote fazendo isso com elas.

Fangman e outras irmãs entrevistadas para este artigo enfatizaram que o abuso sexual de irmãs não se limita a uma determinada geografia. ‘Não é um problema de África, é um problema da igreja’, apontou. ‘É uma questão de poder - a diferença entre homens e mulheres e aqueles na igreja que têm poder.’

A interação de poder e a autoridade da igreja tem se desdobrado no caso da Índia. A ex-superiora da Congregação Missionárias de Jesus abriu um processo em junho contra Mulakkal, de Jalandhar, no Punjab, um estado do norte da Índia que faz fronteira com o Paquistão, alegando que ele teria abusado sexualmente dela várias vezes em seu convento em Kerala, um estado no sul. Ela disse que entrou com o caso perante a justiça depois que as queixas às autoridades da igreja não trouxeram nenhuma ação.

Meses se passaram sem nenhuma ação das autoridades civis ou resposta das autoridades da igreja. Cinco membros da congregação e outros partidários da freira se engajaram em um protesto público em setembro. Mulakkal foi preso em 21 de setembro, interrogado e libertado. Ele negou as acusações e caracterizou o caso como retaliação da freira por suas ações disciplinares contra ela.

O atraso na ação contra Mulakkal deixou as pessoas céticas sobre a alegação de tolerância zero da igreja em relação ao abuso do clero, disse Jesser Kurian, uma advogada da Suprema Corte na Índia, antes da prisão do bispo. Ela estava entre as 167 signatárias em julho da carta dirigida ao cardeal Oswald Gracias de Mumbai e ao arcebispo Giambattista Diquattro, núncio apostólico na Índia, aconselhando o papa Francisco a tirar Mulakkal de seus deveres pastorais.

A menos que Mulakkal seja dispensado de seus deveres pastorais, nenhuma investigação imparcial poderá ocorrer’, disse Kurian, membro da Providência de Secunderabad, em St. Anne, que realiza cursos de treinamento em direitos humanos e leis indianas para vários grupos da Índia, incluindo freiras.

O abuso de freiras pelo clero na Índia veio à tona na reunião de 22 de fevereiro de 2016 do Fórum dos Religiosos pela Justiça e a Paz, um grupo de defesa de mulheres religiosas.

Os participantes então escreveram aos bispos e superiores religiosos que a violência sexual de religiosas não foi abordada enquanto seus perpetradores escaparam da punição. ‘Isso não pode mais ser tolerado’, afirmaram.

Pouco parece ter mudado mesmo depois de dois anos, embora a conferência dos bispos indianos em 2017 tenha promulgado ‘Diretrizes da CBCI para lidar com o assédio sexual no local de trabalho’ como parte de seus esforços para implementar a tolerância zero.

Infelizmente, não é divulgada nem suas cópias distribuídas nem entre os membros dos religiosos católicos da Índia’, lamenta a Irmã Noella de Souza, coordenadora nacional do movimento ecumênico de mulheres cristãs indianas.

Quando contatados, os funcionários da conferência se recusaram a explicar como a igreja implementou as diretrizes.

No entanto, o arcebispo Leo Cornelio, de Bhopal, prelado sênior, disse que informou seus sacerdotes e freiras sobre as diretrizes e criou mecanismos em sua arquidiocese para verificar os abusos do clero.

Outro prelado, o bispo Clement Tirkey de Jalpaiguri, um ex-membro da comissão para mulheres na conferência dos bispos latinos, também disse que implementou as diretrizes em sua diocese no estado de Bengala Ocidental.

Casos de abuso começaram a surgir depois que mais freiras começaram a falar contra a exploração, disse a Irmã Hazel D'Lima, filha do Coração de Maria, ex-presidente da seção de Religiosas Católicas da Índia. Mas a tendência da igreja em ignorar ou silenciar esse caso irá prejudicá-lo, ela adverte.

Ela diz que equívocos sobre o voto de obediência impedem que as freiras digam não quando é necessário. Ela quer que as freiras em formação sejam ensinadas a resistir aos abusos de qualquer um, incluindo padres e bispos.

Astrid Lobo Gajiwala, uma teóloga leiga feminista, diz que conheceu casos de abuso 25 anos atrás, quando foi convidada para falar com as superioras maiores.

Naquela época, a preocupação das participantes era explorar maneiras pelas quais elas poderiam apoiar essas vítimas, em vez de pedir-lhes para deixar o convento e, às vezes, dar à luz a seus bebês nas sombras’, lembra ela. Gajiwala disse que tinha notado muita raiva entre as freiras contra os padres que continuaram seu ministério e seu ‘comportamento desviante’ depois de abusar de freiras e outras mulheres.

As religiosas agora sabem que têm uma alternativa se a igreja ignorar suas queixas, pois a Índia tem o compromisso de prevenir, proibir e corrigir o assédio sexual das mulheres no local de trabalho.

Para a maioria dessas mulheres, ir à polícia não é a primeira opção. O abuso geralmente é trazido à luz apenas porque as vítimas não estão felizes com a maneira como a igreja lidou com o assunto.’

No entanto, fazer públicas as denúncias pode abrir outra forma de abuso, pois os acusadores são criticados por serem desleais com a igreja. O caso envolvendo o bispo Mulakkal dividiu a comunidade católica na Índia entre aqueles que apoiam o prelado e aqueles que apoiam a freira. Os defensores da freira foram criticados por prejudicar a reputação da igreja. Uma irmã pertencente a outra congregação que participou do protesto foi ameaçada de demissão.

Até mesmo a pesquisa de casos de abuso sexual traz riscos, como a dolorosa descoberta da Irmã Esperanza Principio nas Filipinas. Ela foi coautora de um relatório sobre abuso sexual por parte do clero nas Filipinas, apresentado em 2002 ao Conselho dos Bispos desse país. A pesquisa foi realizada pelo comitê de pesquisa da Comissão de Mulheres e Gênero da Associação dos Superiores Religiosos Maiores das Mulheres nas Filipinas, a AMRSWP, depois que os bispos pediram fatos sobre relatos de abuso.

Os 29 casos de violência e má conduta por parte dos padres no relatório incluíram alguns casos de tentativa de estupro e assédio sexual de religiosas. O Philippine Daily Inquirer escreveu sobre o relatório e a apresentação aos bispos em dois artigos de primeira página em novembro de 2002.

A Irmã Principio, que tem mestrado em pesquisa aplicada, disse em uma entrevista à GSR que ela e sua coautora, a Irmã de Maryknoll Leonila Bermisa, tomaram grande cuidado com a pesquisa e apresentaram as descobertas aos bispos antes que qualquer relatório público fosse feito. No entanto, após a cobertura da mídia do relatório, Principio disse que foi criticada por um bispo de alto escalão, que mais tarde se tornou cardeal, em uma carta escrita enviada a todas as congregações.

Atingida pela crítica e pela falta de apoio de sua congregação, foi instigada em poucos anos a mudar de congregação e se tornar uma Maryknoll. Ela deixou as Filipinas em 2005 e agora serve no Peru como parte da Rede Global de Religiosos para as Crianças, concentrando-se em responder ao abuso sexual de crianças e adolescentes.

Trazer casos de abuso à luz é ‘uma energia que pode ser transformada em um movimento positivo, porque as mulheres agora podem falar’, apontou ela. ‘O movimento #MeToo é um estrato mais elevado da sociedade - mas nos povoados e nas cidades, cada um tem que ver que o abuso não é permissível em nenhuma camada ou em nenhum lugar do mundo.’

Depois que o relatório de 2002 foi publicado, disse Principio, as mulheres leigas nas Filipinas tornaram-se mais corajosas ao falar contra o abuso pelo clero. Um segundo estudo de Bermisa foi publicado pela Women and Gender Commission em 2011 em forma de livro. Ela pode lançar novamente : Levantar-se da dor da violência contra as mulheres na Igreja Católica filipina.

A Conferência dos Bispos Católicos das Filipinas, em 2003, publicou um protocolo e orientações pastorais sobre abuso sexual, focado principalmente no abuso de menores, mas também incluindo casos de sacerdotes que são pais de crianças. Porém, não abordou especificamente o abuso de mulheres religiosas. Em setembro de 2018, a conferência dos bispos emitiu outra declaração pedindo desculpas por abuso e prometendo não encobrir os casos. A conferência não respondeu a um pedido via e-mail sobre comentários ou informações a respeito de protocolos especificamente para casos envolvendo de mulheres religiosas.

É uma realidade que pode acontecer em qualquer congregação religiosa’, assinalou Principio. ‘Eles devem ensinar as religiosas a definir o que é abuso, qual é o momento em que você está sendo abusada - algumas irmãs são tão ingênuas, outras não’, acrescentou. ‘É importante que as congregações religiosas apontem e denunciem os abusadores, mesmo que sejam padres’.

Não há um treinamento uniforme sobre abuso sexual ou assédio - cada congregação tem seu próprio programa de treinamento de formação, disse a Irmã beneditina Mary John Mananzan, copresidente do Escritório de Mulheres e Preocupações de Gênero (ex-Mulheres e Comissão de Gênero) da Associação dos Religiosos Superiores Maiores das Filipinas. Sua congregação, as Irmãs Beneditinas Missionárias, ‘inclui treinamentos de conscientização de gênero que compreendem especificamente o referente ao assédio sexual, estupro e todas as formas de violência de gênero’, disse ela em um e-mail, acrescentando que esse treinamento já remonta aos anos 90.

O Escritório de Mulheres e Interesses de Gênero oferece seminários sobre conscientização e empoderamento das mulheres, que incluem todas as questões de gênero, com as irmãs religiosas como principais participantes e cursos para os envolvidos na formação, para incluir a conscientização de gênero em seus programas.

Uma chave para evitar o abuso está nas próprias congregações, na criação de uma atmosfera de confiança e apoio para as irmãs se sentirem confiantes em relação aos superiores ou mentores com problemas de assédio ou primeiros sinais de abuso, disse a Irmã Florence Nwaonuma, ex-superiora geral das Irmãs do Sagrado Coração de Jesus e ex-presidente da Conferência das Mulheres Religiosas da Nigéria.

Seminários e oficinas que tratam de temas como sexualidade, o voto de celibato e de castidade e a conscientização sobre questões de abuso fazem parte da formação inicial e também da formação permanente de irmãs junioras e professas, disse ela.

As congregações precisam estar dispostas a levar os casos de abuso à atenção da hierarquia e trabalhar para a resolução, disse ela. Nwaonuma, encontrou mais casos de irmãs que sofrem abuso de poder com padres e bispos do que casos relacionados com a exploração sexual. Cerca de seis anos atrás, houve um caso em que um padre fez várias aproximações sexuais de uma irmã que trabalhava em uma paróquia. Quando ela resistiu, o padre reclamou ao bispo que a irmã era desobediente. A irmã foi até Nwaonuma e contou o que havia acontecido.

Nwaonuma queixou-se com o bispo sobre o comportamento do padre, defendeu a irmã, permitiu que ela continuasse sua formação, que professasse seus votos e fosse transferida para outro ministério. Apesar da queixa, nenhuma sanção foi tomada contra o padre, que foi transferido para outra paróquia.

Os homens negam [abuso] e é importante que as mulheres recebam igualdade de condições e sejam ouvidas’, disse ela. ‘As Irmãs devem ser encorajadas a vir e falar sobre [assédio ou abuso], mas as superioras têm que fazer a irmã confiar nelas’.

O encorajamento de lideranças religiosas e organizações de liderança para que as irmãs apresentem casos de abuso, incluindo autoridades civis, é um sinal importante, disse Bryant, que ajudou a criar o módulo de treinamento e está profundamente envolvido no ministério antitráfico de seres humanos. ‘O que me dá alguma esperança é que estamos ouvindo as denúncias nas bocas das mulheres na liderança’, disse Nwaonuma. As declarações são ‘fortes e claras e não se retraem. A igreja nunca falou tão claramente uma linguagem como essa’.

Muitas religiosas trabalham em ministérios que se concentram em capacitar meninas e mulheres, incluindo o combate ao tráfico e a violência doméstica, observou ela. Essas lições devem ser aplicadas às próprias irmãs, para reconhecerem o trato de abusadores pelas dinâmicas previas, muitas vezes através da atenção extra e dos pequenos presentes.

Mais fundamental é a necessidade de mudar dinâmicas que reforcem a ideia de que padres e bispos são especiais, que sua autoridade não pode ser questionada, acrescentou. ‘Nós irmãs temos que parar de alimentar o clericalismo’, disse ela. ‘Este é o nosso tempo para capacitarmos os outros e fazermos amizade com as vítimas.


Nota da editora : Algumas informações que foram usadas neste artigo foram proporcionadas pelo jornalista freelancer Saji Thomas e outros relatórios do Matters India, um portal de notícias que enfoca questões religiosas e sociais na Índia.

  
Fonte :  

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Qual é a onipotência do Deus cristão?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 A onipotência divina se manifesta e é evidenciada pelo amor doador de Deus.
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante



Essa visão de onipotência, por sua vez, remete aos tempos bíblicos e seus povos, para os quais a guerra entre as nações significava a guerra entre os seus deuses e deusas, de tal maneira que eram nessas batalhas que se demonstrava quem possuía maior força, sendo dessa forma, legitimado/a a estender o seu domínio.

O próprio texto bíblico tem narrativas que corroboram essa visão, tais como o caso de Elias com os profetas de Baal, cujo desafio estava em mostrar que o deus verdadeiro seria aquele que mandasse descer fogo do céu (1Rs 18), ou ainda o caso da arca roubada pelos filisteus que, estando na cidade de Asdode, no templo de Dagom, fez com esse deus amanhecesse caído duas vezes, sendo a primeira com o rosto em terra, e a segunda, na mesma posição, porém com a cabeça e as palmas das mãos desprendidas, restando dele somente o tronco,  conforme 1Sm 5,1-4.

Quando, porém, vamos para o Novo Testamento, principalmente para as narrativas dos Evangelhos, é possível perceber um conceito totalmente diferente do que seria a onipotência divina. Ela se manifesta não mais com a destruição por meio da força de todos os inimigos, mas, de maneira mais radical, pelo amor que é derramado sobre os bons e os maus. Ao mesmo tempo, o Pai de Jesus Cristo não é mais retratado como aquele que exige que todos e todas se submetam à sua vontade. Muito pelo contrário, revela sua onipotência em um nível supremo, permitindo até mesmo não ser amado, mostrando que a verdadeira onipotência não consiste em ter o poder de fazer tudo o que se quer, mas, sim, abrir mão de todo poder em eterna doação.

Em outras palavras, a onipotência divina se manifesta e é evidenciada por seu amor doador, que permite até mesmo não ser amado de volta, sem infringir nenhum castigo àquele ou àquela que não o aceita. A onipotência que se manifesta quando isso acontece é muito mais sublime do que aquela que simplesmente destruiria tudo, todos e todas a fim de exercer a sua vontade.

Dessa forma, delineiam-se dois caminhos possíveis para o cristianismo atual nessa questão : 1 - permanecer com a primeira visão de onipotência divina e, a partir daí, assumir para si um discurso de que há um inimigo a ser combatido e destruído para se provar que o Deus que se serve é maior e mais poderoso do que os outros deuses deste mundo (que, atualmente, são apresentados por grupos mais fundamentalistas com outros nomes, tais como ‘ideologia’, ‘comunismo’, ‘socialismo’, ‘ideologia de gênero’ etc), fortalecendo, assim, discursos e atitudes que geram morte às diversas minorias; 2 – estar disposto a ter sua mentalidade transformada pelo encontro com o Ressuscitado que revela que a única exigência de Deus é para que se ame a todos e todas, sem distinção, lutando para que haja igualdade social e de condições de possibilidade para todos e todas as pessoas na face da Terra e, por meio desse amor, mostrar a onipotência divina que consiste em estar em constante doação, criação e geração de vida para a humanidade e a natureza.

Diante disso, é sempre importante lembrar de que é na suposta fraqueza de um amor que tudo sofre, espera e crê que se mostra a verdadeira onipotência divina, conforme mostrada por Jesus Cristo.

 Enquanto a onipotência divina for vista como uma categoria bélica de um Deus que está sempre lutando para exercer o seu domínio, dizer que Deus é amor não passará de mera demagogia por parte daqueles e daquelas que se dizem cristãos e cristãs dentro dos diversos templos espalhados pelo mundo, e continuam fomentando a morte da humanidade e da natureza por meio de políticas públicas que aumentam a violência, a desigualdade e o uso indiscriminado dos bens naturais.’


Fonte :  

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Congresso de Doha. Dom Paglia: reagir à cultura do descarte

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Tratamento paliativo é um direito



Tratamentos paliativos como direito

Os tratamentos paliativos ‘representam um direito humano’, reagem à ‘cultura do descarte’ que promove a normalidade da eutanásia e o desinteresse pelos outros. São palavras de Dom Vincenzo que recordou cronologicamente todos os passos históricos para a aplicação dos tratamentos paliativos a partir da metade do século passado. O prefeito do dicastério reiterou também a importância de ser um tema ‘dentro e fora da medicina’, principalmente nos dias de hoje nos quais ‘é evidente a marginalização, a discriminação, a eliminação dos seres humanos mais frágeis como os que sofrem de uma doença grave, incurável ou incapacitante’. Portanto devemos reagir à ‘cultura do descarte’ promovendo uma ‘cultura de tratamentos paliativos’. Para realizar isso – disse Dom Paglia – ‘considero urgente intensificar a reflexão para enfrentar de maneira completa as grandes questões antropológicas e os enormes desafios éticos que temos diante das questões que se referem ao fim da vida. Por esta razão, os trabalhos destes dois dias serão direcionados na exploração da contribuição dada pelos tratamentos paliativos em relação às necessidades da pessoa que nascem das dinâmicas do espírito humano’.

A contribuição única das religiões

Ao falar sobre o tema da contribuição das religiões ‘em dar impulso concreto a esta forma de acompanhamento da pessoa doente ou doente terminal’, Dom Vincenzo evidenciou ‘a capacidade das próprias religiões de chegar às periferias da humanidade’, mas também a própria essência das religiões definidas como uma das ‘forças verdadeiras dos tratamentos paliativos’. ‘O reconhecimento da constitutiva abertura à transcendência da pessoa’, explicou, ‘consente de afirmar que a vida humana, mesmo quando é frágil e aparentemente derrotada pela doença, há uma preciosidade inviolável’. ‘Os tratamentos paliativos – disse ainda Dom Vincenzo – encarnam uma visão do homem do qual as grandes tradições religiosas são guardiãs e promotoras : é essa a contribuição mais profunda e incisiva que podem receber, em termos de motivação e de inspiração’.  Também ‘representam uma proposta concreta que se coloca num contexto de pobreza de amor pelo ser humano e de crise das relações sociais que de um desinteresse geral está chegando a uma verdadeira desintegração social que envolve todas as formas comunitárias a partir da família’.

Uma nova fraternidade

Reinventar uma nova fraternidade é o desafio antropológico e social dos nossos dias e o mandato específico que o Papa Francisco entregou à Pontifícia Academia para a Vida por ocasião do 25º aniversário da sua instituição. Também por este lado – disse Dom Vincenzo Paglia no seu discurso em Doha – as religiões têm uma palavra muito especial a ser dita. A tarefa de ‘custodiar’ o outro e a criação é bem diferente das atitudes prevaricadoras, predatórias e destruidoras que são frequentes nos homens (não somente contra a natureza e a terra, mas também contra o irmão, principalmente quando é visto como um obstáculo ou sem utilidade para seus próprios objetivos). A comunidade dos tratamentos paliativos testemunha um novo modo de conviver que coloca no centro a pessoa e o seu bem estar ao qual não apenas o indivíduo, mas tende toda a comunidade, na reciprocidade. Nesta comunidade o bem de cada um é perseguido como o bem de todos. Os tratamentos paliativos representam um direito humano e vários programas internacionais estão se organizando para colocá-los em ação. Mas o verdadeiro direito humano é continuar a ser reconhecido e acolhidos como membros da sociedade, como parte de uma comunidade’.’


Fonte :  

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Reflexões sobre o vácuo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  Na nossa vida de oração por vezes também há vácuos. A oração, na sua essência, é tirar tempo só para Deus; estar lá para Ele e à espera Dele. E isso pode significar termos de enfrentar o vazio.
*Artigo do Padre Nuno Tovar Lemos, SJ



Intrigaram-me, na parede, três pontos de saída de gás. Imaginei que servissem para ajudar à respiração de alguém mais aflito. Percebi que uma das saídas era de ar e a outra de oxigênio. Mas a 3ª? Apanhei uma enfermeira de passagem pela sala. O que tem esta saída? Vácuo, disse ela apressadamente. Comentei que me parecia estranho que aplicassem vácuo nas narinas de uma pessoa com deficiências respiratórias… Ela riu-se e esclareceu que o vácuo não se aplicava no paciente mas que se ligava à máquina que ajudava a pessoa a respirar. Que esta máquina necessitava de vácuo para funcionar.

Não cheguei a perceber como é que a máquina funciona mas, desde aí, tenho pensado muito neste fato curioso do vácuo poder ajudar à respiração. E pareceu-me que isto não acontece só nos hospitais mas em muitas situações da vida. (O que é um aparente contra-senso porque o vácuo, em si, é uma ausência, uma falta). Parece-me mesmo que a História, muitas vezes, não avança por incrementos mas sim por vácuos. Chamei-lhe ‘Princípio do Vácuo’. Seria assim :

Os vazios nem sempre são uma desgraça; podem ser o espaço necessário para o surgir de novas realidades.

Alguns exemplos :

Ouvi recentemente de uma mãe que o filho tinha vindo reclamar não ter nada para fazer e que ela, em vez de o entreter, lhe tinha respondido simplesmente que era natural, que às vezes não temos nada para fazer. E lembrei-me de ter ouvido esta frase de uma psicóloga infantil : ‘as crianças precisam de se aborrecer’. Hoje em dia queremos muito ocupar as crianças com atividades úteis e estimulantes para que desenvolvam ao máximo todas as suas capacidades. Se vemos uma criança desocupada vamos logo entretê-la ou dar-lhe coisas para fazer. A psicóloga dizia que é um erro super-ocupar e super-estimular as crianças. Do vazio podem surgir muitas coisas boas como o estimular da criatividade, o fortalecimento de um mundo interior próprio e uma certa não dependência em relação aos estímulos exteriores. Tudo isto podem ser lições preciosas para o futuro da criança. É o vácuo a ajudar a respirar bem…

Na nossa vida de oração por vezes também há vácuos. A oração, na sua essência, é tirar tempo só para Deus; estar lá para Ele e à espera Dele. E isso pode significar termos de enfrentar o vazio. Não me refiro àqueles vazios deliberados a que chamamos ‘silêncio’ mas aos que nos são impostos, bem contra nossa vontade, e que nos aparecem como fracassos espirituais : queríamos ‘sentir’ a presença de Deus e Ele parece ausente, queríamos concentrar-nos e nem sequer conseguimos parar interiormente, queríamos chegar a alguma conclusão e estamos como diante de uma parede em branco.

Ninguém gosta desta experiência. É desconfortável e faz pensar que a oração está a correr mal. Quando isto acontece vem logo a tentação de irmos fazer outra coisa ou de enchermos artificialmente a oração de ideias bonitas ou de emoções forçadas. No entanto, se permanecermos fielmente diante do Mistério durante esses vácuos da oração, daí podem eventualmente resultar coisas boas : uma maior humildade diante do Mistério de Deus, uma maior paciência e fidelidade para com Ele, a descoberta de uma nova maneira de rezar, uma maior abertura a algo novo que Deus queira dar ou uma compreensão mais sincera de quem diz não O encontrar. No fim até talvez possamos ser sugados – precisamente por esse vácuo – para mais dentro do Mistério que não controlamos. Aconteceu isto com Jesus na Sua ressurreição, depois daquele vácuo na cruz, um vazio tão grande que Jesus chegou a dizer ‘Meu Deus, porque me abandonaste?’.

Nas nossas histórias pessoais também há fases de vazio. Há ausências pontuais (de pessoas, de dinheiro, de alegria, etc) e há também, por vezes, um vazio grande que se instala, enche tudo e ao qual chamamos ‘crise’. Não quero fazer o elogio da crise, seria um disparate (para além das crises serem dolorosas, nelas, por vezes, a pessoa faz os piores ‘negócios’ da sua vida). Mas temos de reconhecer que muitos saltos de crescimento pessoal se dão no pós-crise. Às vezes parece que é preciso chegarmos ao fundo para podermos ensaiar novas maneiras de estar na vida, eventualmente mais livres e mais criativas.

O princípio do vácuo aplica-se também às instituições. E até mesmo à Igreja. Mas as instituições têm em geral horror ao vácuo e a Igreja não é exceção. Seria normal (sobretudo numa comunidade que tem Deus por Senhor) haver vácuos. Mas nós enchemo-los. Por exemplo, seria normal na Igreja enfrentar o vácuo do não-saber (Deus é tão infinitamente grande e diferente de tudo!). Mas qual é o padre que diz ‘não sei’? Parece que não podemos ter dúvidas, parece que temos sempre mais respostas do que questões. Seria normal, numa comunidade de adoração, o vácuo do não-fazer, o simples estar diante do Mistério. E daí vir-nos-ia certamente alguma paz e profundidade de vida. Mas nós andamos todos atarefadíssimos, sem mãos a medir, desde os padres às catequistas e, por vezes, nem nas exposições do Santíssimo nos calamos. Seria normal na Igreja os vácuos do não-saber-como-fazer (particularmente nestes tempos de tantas mudanças civilizacionais) mas nos parece que temos planos para tudo e que o Direito Canônico (mal interpretado) dispensa qualquer necessidade de discernimento. Seria normal, numa Comunidade em que ‘a messe é grande e os trabalhadores são poucos’ (Lc 10, 2), haver vácuos do não-haver-quem-faça e esses vácuos puxarem pelos mais novos (na idade ou na fé) para assumirem lideranças e essas lideranças revelarem carismas e gerarem comunidades mais participativas. Mas este processo abre vazios e causa inseguranças. Preferimos então seguir o caminho ‘seguro’ : ter as mesmas pessoas de sempre a ocupar os mesmos espaços de sempre e a fazerem as mesmas coisas de sempre, mesmo que daí resultem leigos e padres super-ocupados e stressados, sem tempo para escutar a Deus e aos irmãos. E sem qualquer tipo de criatividade missionária.

Ou seja : por vezes, na Igreja e nas nossas vidas, é preciso que algumas coisas fiquem a descoberto para que possam surgir outras novas. É a lei da História e a essência do Mistério Pascal. Mas é difícil conviver com o vácuo e fugimos dele ‘como o diabo da cruz’.

Só não entendemos que, ao fechar a torneira do vácuo, estamos também a dificultar também o processo de entrada de ar novo.’


Fonte :