domingo, 31 de outubro de 2021

Um sínodo sobre o quê?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Tem sido uma dúvida recorrente nas redes sociais. Muitas pessoas, ‘instruídas’ por quem não sabe sequer como funciona o sínodo, têm feito análises mirabolantes sobre a assembleia. Como a moda agora é transformar qualquer tema do pontificado de Francisco em enredo digno de Apocalipse, cabe a nós, que acompanhamos essa realidade de perto, refutar as teses do youtuber católico de turno.

Por trás da ‘indignação’ em relação ao sínodo que está em curso, vemos o ódio gratuito a um pontífice que está à frente de projeto eclesial ousado, cuja bandeira é retornar à essência do cristianismo. E isso não agrada em nada aos clericalistas, sejam eles padres ou leigos.

Apegados ao modelo de igreja monárquica, não aceitam a visão eclesiológica do Concílio Vaticano II. É ‘pesado demais’, para eles, considerar que a instituição é ‘povo de Deus’, e não se restringe somente à sua hierarquia. Esquecem que, na igreja pré-conciliar que eles tanto incensam e evocam, fazer pouco caso das decisões do pontífice romano, através de discursos e ações, não passaria despercebido aos olhos do Santo Ofício. Mas do jeito que esse povo é, pode até ser que exista um culto à Inquisição, regado a ‘releituras’ da história. Nunca se sabe.

E não deixa de ser interessante - e até contraditório - o fenômeno. A descentralização do papado sempre fez parte do debate dos progressistas, mas parece que são justamente os fundamentalistas a la derecha que querem libertar o catolicismo do papado, na atualidade.

Se dermos uma volta pelos ‘centros da alta cultura católica’, principalmente no Brasil, a impressão é que o ultramontanismo papista ficou para trás. E a ‘questão religiosa’, semelhante à que foi posta nos tempos da proclamação da República, promove uma romanização das práticas. A diferença é que, desta vez, não é estritamente necessário contar o papa como promotor dessa empreitada. Os luteranos do século 16 perdem feio para os antipapistas da atualidade. São os adeptos do Roma a la carte. Romanos, sim. Com Roma, não exatamente.

De um lado, os pró-reformas, que acompanham os apelos do presente, junto com o romano pontífice e grande parte do colégio cardinalício; do outro, os ritualistas, também conhecidos como ‘católicos de confraria’, que criaram uma espécie de dress-code da fé, no qual sequer o papa ‘é digno’ de se encaixar.

Trocando em miúdos, o sínodo sobre a sinodalidade trata da própria Igreja. Há quem diga que é uma ‘assembleia conciliar’ justamente por isso. Como ocorreu no último concílio ecumênico da história, é hora de a Igreja Católica fazer as contas novamente, porque os desafios de hoje são outros. E não são todas as instituições nem todos os papas que estão dispostos a trilhar esse caminho.

Se observamos bem, é um sínodo que sequer trata de um tema específico, mas foca simplesmente na sinodalidade, uma instituição que é muito mais antiga do que imaginamos. O cristianismo oriental que o diga. Tanto para a ortodoxia quanto para o catolicismo oriental (ainda que em menor proporção, por causa da submissão a Roma), o sínodo é palco de decisões, não um órgão simplesmente consultivo, como observamos na igreja latina.

No Ocidente, por exemplo, havia sínodos diocesanos, cujos primeiros registros são datados do século 6. E até o bispo de Roma, antes da instauração do Conclave, no século 12, era eleito por aclamação popular, da mesma forma que outros bispos da cristandade.

A ideia de Francisco nem é repropor esse tipo de estrutura, mas de refletir como as dioceses e os próprios leigos poderão, de alguma maneira, participar mais ativamente das decisões, como já aconteceu no passado.

Os sínodos diocesanos poderão ser reativados em vista da pastoral, contemplando as realidades locais? Grupos de representantes das conferências episcopais serão convocados a Roma, para participar de consultas públicas? Mais mulheres ocuparão posições de destaque em outros lugares, não só em Roma?

Ainda não sabemos, na prática, quais serão as medidas propostas. Mas é certo que Francisco quer, sim, transformar a Igreja numa instituição que caminhe junto. E Roma, em primeiro lugar, seria a promotora dessa sinodalidade. Por isso, justamente, a reforma começa aqui. E o sínodo, por assim dizer, é uma extensão dessa reforma.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1547735/2021/10/um-sinodo-sobre-o-que/

sábado, 30 de outubro de 2021

O diabo perguntou a três monges o que mudariam no passado

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Francisco Vêneto,

jornalista, filósofo e tradutor


‘Circula entre grupos católicos um breve conto sobre o dia em que o diabo teria aparecido a três monges e perguntado, de um por um, o que mudariam no passado.

Se eu lhe der o poder de mudar algo do seu passado, o que você mudará?

O primeiro monge, com grande zelo apostólico, respondeu rapidamente :

Eu impediria você de fazer Adão e Eva caírem no pecado, para que a humanidade não pudesse se afastar de Deus’.

O segundo monge, que tinha um coração repleto de misericórdia, respondeu :

Eu impediria você mesmo de se afastar de Deus e se condenar eternamente’.

O terceiro monge era o mais simples dos três. Em vez de responder ao diabo, ele se ajoelhou, fez o Sinal da Cruz e rezou :

Senhor, livra-me da tentação do que poderia ter sido e não foi’.

O demônio então lançou um urro estridente e, contorcendo-se de dor, desapareceu.

Atônitos, os outros dois perguntaram ao companheiro de vida consagrada :

Irmão, por que você respondeu desta forma?

Ele explicou :

Primeiro: nunca devemos dialogar com o inimigo. Segundo : ninguém no mundo tem o poder de mudar o passado. Terceiro : o diabo não está minimamente interessado em nos ajudar, mas sim em nos prender no passado para descuidarmos o presente.

Por quê? Porque o presente é o único tempo em que, pela graça divina, podemos colaborar com o próprio Deus. O ardil do diabo que mais aprisiona as pessoas e as impede de viverem o presente em união com Deus é o ‘poderia ter sido e não foi’.

Deixemos o passado nas mãos da Misericórdia de Deus e o futuro nas mãos da Sua Providência. Já o presente está em nossas mãos unidas às mãos de Deus’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2021/10/28/o-diabo-perguntou-a-tres-monges-o-que-mudariam-no-passado/

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Tecendo os fios da nossa existência

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo d0 Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ

  

‘Sempre que iniciamos algo, espontaneamente nosso olhar vai em busca do desfecho. Pois ‘nada dura para sempre’, diz o ditado popular. Não é diverso ao tratarmos da oração. Com muito ânimo, propusemo-nos a viver aquele momento na presença do Senhor. Enfrentamos, confiantes na graça que não falta nunca, os percalços de nos abandonarmos ao querer divino. Penetramos, corajosamente, profundezas inexploradas de nosso ser. 

Os minutos se passaram, em um silêncio cheio de uma presença. O tempo está chegando ao seu final. É preciso concluir nosso momento de oração. A vida nos chama de volta! Eis que é hora do ‘colóquio’, última oportunidade para falar (e escutar) o que ainda não tivemos oportunidade de dizer, ou que reservamos com emoção para o grand finale de nossa oração. São as palavras decisivas, que queremos que fiquem impressas no coração para retornarmos às nossas atividades.

O colóquio deve ser vivido na tranquilidade, é avesso a toda pressa e correria. Poderá inclusive ocupar parte não desprezível do tempo previsto para a oração.

Será nesse período conclusivo da nossa oração, de diálogo improvisado e espontâneo com o Senhor, em que tudo começará a se encaixar na nossa vida : momentos antes experimentados como desconectados do todo da nossa existência, sentimentos até então vividos de forma contraditória ou reprimidos. Rompidos os mecanismos de controle e supervisão, abandonados a uma conversa que vai sendo produzida à medida que acontece, o mundo todo - e dentro dele, nossa vida - vai sendo incluído. Desfilam diante de nossos olhos extasiados rostos de pessoas conhecidas, mas também de desconhecidas, situações vividas ou que desejaríamos viver, e esse caleidoscópio aparentemente desordenado vai ganhando formas e contornos amigáveis, produzindo sentimentos, apelos, questionamentos que nos atingem cada vez mais intensamente.

Ao nos despedirmos desse encontro, por vezes a última palavra virá do Senhor, às vezes será uma expressão de gratidão incontida da nossa parte. O que importa é que seja envolta por um desejo de ‘até breve!’.

O colóquio, ambiente propício para a configuração do nosso desejo primordial

Durante o tempo transcorrido em oração, quantas coisas se passam pela nossa mente e coração : talvez muitas nem sequer nos demos conta quando, furtivamente, ocupavam nossa consciência espiritual. Dentre essas forças potentes, estarão, sem dúvida, nossos desejos. Explica González Buelta :

O desejo tem uma importância decisiva para estruturar nossa afetividade e para tomar as decisões concretas que vão marcando cada dia nossa vida que pretende nascer do amor. O desejo pode ir adiante de nós como um único ponto no horizonte que focaliza nossos interesses, e dentro de nós estruturando sabiamente nossa pessoa para poder alcançar esse objetivo’.

Neste momento de ‘soltar as rédeas’ de nossos controles para saborearmos prazerosamente da Presença amorosa do nosso Deus, nossos desejos mais fundamentais se revelarão na sua potente capacidade de nos mover, fazendo convergir nossos impulsos, preocupações, projetos na direção do que, verdadeiramente, pode nos fazer viver uma vida plena de sentido!

Aqui tocamos algo central na nossa vida de oração : o tema do ‘desejo de Deus’. Quem procura, acha, diz o Evangelho. A quem bate, lhe será aberto. A atitude de busca é fundamental na vida cristã.

Podemos considerar nossa vida de oração como uma grande ‘escola de educação dos nossos desejos’. Como Inácio mandou registrar na sua Autobiografia, com relação ao tempo em Manresa, onde receberia inúmeras graças espirituais :

Neste tempo, Deus tratava-o como um mestre-escola trata uma criança, ensinando-o. E quer isto fosse pela sua rudeza e fraca inteligência, ou porque não tinha quem lhe ensinasse, ou pela firme vontade que Deus lhe tinha dado de O servir, via claramente e sempre pensou que Deus o tratava desta maneira. Pelo contrário, se duvidasse disto, pensaria ofender sua Divina Majestade’ (Aut. 27).

Creio que jamais terminaremos de aprender, pois o Senhor sempre quer se comunicar a nós de maneiras novas.

Aqueles que trilharam, em alguma de suas modalidades, a experiência espiritual dos Exercícios, já experimentaram como tudo acontece movido pela ótica do desejo : ‘No começo dos Exercícios Espirituais, acende-se o desejo, com o princípio e fundamento, para que vivamos a nossa existência ‘somente desejando e escolhendo o que mais nos conduz para o fim para o que somos criados’ (EE 23)’.

Desejando’ é o verbo escolhido por Inácio, para falar do ‘Magis’, do desejo infinito que se acende e não se apaga mais! Esse desejo central e único, vivido com a maior generosidade será o único eixo ao redor do qual irá se orquestrando com harmonia qualquer outro desejo.

A contemplação dos mistérios da vida de Cristo irá nos ajudando a filtrar nossas motivações e a descobrirmos a alegria de sermos livres no seguimento de Jesus, o homem livre por excelência :

Para conseguir esse fim, teremos que centrar o desejo na pessoa de Jesus, oferecendo-nos incondicionalmente para tudo o que ele vá suscitando dentro de nós, ao contemplar cada mistério da sua vida, em uma intensa relação pessoal com ele e com os olhos bem abertos sobre a realidade do mundo em que vivemos. O desejo vai então se purificando de falsas motivações e vai-se afinando cada vez mais, ao nos encontrar com o Jesus pobre e humilde do evangelho, inteiramente original e livre’.

O desejo não pode se consumir em seu próprio ardor como uma labareda passageira e inútil. À medida em que vamos amadurecendo na liberdade, cresce em nós o desejo de um compromisso, que Inácio chama de ‘eleição de um estado de vida’ na Igreja. O que começou como um desejo interior ganhará contornos e expressões estáveis, institucionais e visíveis.

Uma vez tomada a decisão movido pela graça de Deus, o papel do desejo não termina. Antes, tornar-se-á sempre mais necessário, uma vez que o seguimento de Jesus humilhado e despojado de tudo até a cruz, com quem queremos nos identificar (EE 165 : três maneiras de humildade) pode nos colocar em situações muito duras, onde seremos arrastados até o limite de nossa capacidade de resistência; por isso é necessário fortalecer o desejo, acompanhando livremente a Jesus na sua paixão dolorosa na qual desce até o fundo do sofrimento humano, e sintonizando com sua dor pessoal e a de seu povo, que carrega a cruz espoliado hoje no meio de nós (EE 193). Rezando e contemplando a Paixão de Nosso Senhor, será esse desejo de identificação que nos permitirá ir até o fim e não desanimarmos diante das dificuldades e sofrimentos decorrentes da nossa opção por Cristo.

Na vitória de Cristo sobre a morte, o desejo finalmente se transfigura com o gozo da ressurreição que o Senhor partilha gratuitamente com seus amigos, consolando-os (Cf. EE 221). Santo Inácio dava enorme importância ao desejo. Ao escrever as Constituições da Companhia de Jesus, em um parágrafo iluminador, Inácio insistia que é realmente decisivo, para ir estruturando a pessoa em conhecer internamente a Jesus e segui-lo, ‘desejar com todas as forças possíveis quanto Cristo N.S. amou e abraçou (Constituições nº 101).

Toda nossa vida de oração se resume nisso. Uma configuração do desejo ao desejo de Jesus : ‘No centro da vida cristã, segundo a vocação de cada pessoa, iremos configurando um desejo evangelicamente lúcido e apaixonado, que é tanto mais autenticamente nosso, quanto mais é entregue ao desejo de Jesus’.

A consolação gratuitamente dada

Na oração vamos contemplando a Jesus e tentamos nos sintonizar com seu universo afetivo. ‘Tenham entre vocês os mesmos sentimentos de Cristo Jesus’ (Fl 2,5). Esta transformação não se realiza imediatamente. É um presente lento de Deus. Dentro de nós a ambiguidade se esconde nas zonas escuras do coração e às vezes resiste aos mais exigentes discernimentos. Por isso mesmo, os mestres espirituais insistem tanto na formação do coração. O processo de purificação do coração nem sempre é agradável. Como nos desprender das ambiguidades sem dor quando estão aderidas a dimensões muito sensíveis de nossa pessoa e de nossas relações? Como caminhar para um futuro desconhecido sem sentir o medo de nos desgarrarmos daquilo que é seguro?

O que vai acontecendo em nosso coração? Esta pergunta é fundamental para poder discernir os sentimentos que se movem dentro de nós, dar-lhes nome, saber de onde vêm e aonde nos levam. Ordenar o coração, alcançar a liberdade afetiva é a condição para poder ordenar toda a pessoa ‘somente’ em torno das sempre novas propostas de Deus.

A finalidade desse conversar com o Senhor na oração é ir nos conduzindo a uma cada vez maior sintonia com o coração de Jesus, ao mesmo tempo que vamos conhecendo interiormente o nosso próprio coração. Queremos ir alcançando uma maior liberdade afetiva que nos possibilitará focar somente em Deus a nossa vida.

Uma oração decidida

Uma oração que ficasse somente em uma troca de sentimentos entre nós e o Senhor, sem nenhuma incidência na nossa vida concreta, não seria uma oração cristã. Todo encontro autêntico com o Senhor pede de nós uma tomada de decisão : acolher, rejeitar, cumprir, realizar, mudar, transformar... Cada um destes verbos denota com sua força expressiva um dinamismo transformador, uma atitude diante da realidade do mundo em que nos encontramos. Se queremos verificar até que ponto nossa oração está sendo vivida de forma autêntica, basta tomar cada um destes verbos e aplicá-los à nossa experiência vivida. Colocando em forma de perguntas, seria algo como :

- O que é preciso acolher da minha oração como expressão da Vontade de Deus?

- O que devo rejeitar terminantemente e, portanto, excluir da minha vida espiritual, pois percebo que é impedimento para viver minha fé?

- O que me sinto impelido a realizar concretamente, a partir do que experimentei na minha oração?

- Que atitudes necessito reformular, reelaborar, reconstruir?

Respondendo, ainda que provisoriamente, tais questões, nossa oração revela toda sua força transformadora!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1547654/2021/10/tecendo-os-fios-da-nossa-existencia/

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Tráfico de pessoas, a outra pandemia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo da Irmã Benjamine Kimala Nanga, 

Missionária Comboniana

 

‘O meu trabalho principal como missionária é colaborar com a Red Kawsay da Conferência de Religiosos do Peru, uma rede de vida consagrada que começou em 2010 e cujo principal objetivo é lutar contra o tráfico e a exploração de seres humanos. «Kawsay» é um termo quéchua que significa «viver». A Palavra de Deus que inspira o nosso compromisso cristão é o texto evangélico de João (10,10), onde Jesus diz : «Vim para que eles possam ter vida, e vida em abundância.» A rede é constituída por mais de 38 congregações religiosas e alguns padres diocesanos.

Eu e três irmãs de outras congregações acompanhamos um grupo de mulheres e menores de Riveras de Cajamarquilla, um bairro do município de San Juan de Lurigancho, na periferia de Lima, que sofreu muito por causa dos deslizamentos de terra. O objetivo do nosso trabalho é a prevenção, sensibilização e formação em relação ao tráfico de pessoas. Fazemo-lo por meio de diversos cursos de capacitação, que visam fortalecer as mulheres, nomeadamente reforçando a auto-estima das menores e promovendo uma cultura de prevenção e cuidado contra os abusos sexuais.

A minha principal atividade é realizar cursos de formação para professores, administradores, gestores, assistentes, pessoal de apoio, autoridades (polícia, fiscais e pessoal de centros de admissão de menores), catequistas e pais. Fiz um curso de formação ministrado pelo Ministério do Interior do Peru; isso permitiu-me conhecer as leis e falar com fundamento, e não apenas com a experiência.

O sofrimento das vítimas

Conheci diferentes realidades no Peru e contactei muitos jovens que partilharam a sua situação pessoal : falta de trabalho, dificuldade em estudar, situação familiar complicada, etc. São essas situações que facilitam o tráfico humano, um problema de dimensões cada vez maiores. Esta forma de escravidão moderna realiza-se com diferentes propósitos e afeta, sobretudo, as pessoas mais vulneráveis. Em muitos ambientes, a maioria das vítimas são jovens e, em particular, raparigas com menos de 18 anos. 

Um dos casos que mais me impressionou foi o de uma rapariga de 17 anos, originária de uma aldeia da selva peruana. No final da escola secundária foi para a cidade para se preparar para o exame de acesso à universidade. Não passou, pois tinha um nível de estudos mais baixo do que os estudantes da cidade. Para permanecer na cidade, as necessidades foram-se acumulando : estudo, renda do quarto, alimentação... Sem querer, caiu na exploração sexual.

Foi contratada para trabalhar num cibercafé, um local que fornecia serviços de Internet. Um dia, quando lhe liguei, ela disse-me calmamente : «Irmã, podes ligar-me mais tarde?» Ao ouvi-la responder dessa forma, pensei que alguma coisa não estava bem. Dias depois, liguei-lhe novamente. Ela contou-me que já não trabalhava no cibercafé porque tinha sido obrigada a assinar um contrato por um mês para prestar serviços sexuais a homens. Ouvi-a sem a julgar. Com o problema acrescido da pandemia, não pode continuar e regressou à sua aldeia.

As distâncias são um dos principais problemas que enfrentamos, pois muitos dos nossos destinatários (jovens e professores) vivem em áreas muito remotas e de difícil acesso, o que dificulta a continuidade. Outra dificuldade é que, em muitos casos, as pessoas não sabem bem o que significa a expressão «tráfico humano». Muitos ficam confusos e pensam que tem que ver com «tratar bem as pessoas».

Ignoram que o tráfico de seres humanos é uma prática que viola os direitos humanos fundamentais. Um crime que não distingue fronteiras e que tem cada vez mais vítimas no Peru : há menores e adultos que são raptados, coagidos, detidos e reduzidos a vários tipos de exploração sexual; forçados a mendigar nas ruas, onde vivem em condições sub-humanas; ou sofrem com a remoção ilegal dos seus órgãos. Este é um grande problema e tem muitas facetas. Os mais afetados são as crianças e adolescentes.

Tráfico de pessoas em tempo de pandemia

Por causa da pandemia, este ano a situação é muito difícil também para as mulheres, por isso ajudamo-las com produtos alimentares e de higiene básicos, e aproveitamos a oportunidade para sensibilizar e protegê-las da covid-19 e contra o tráfico de seres humanos. Noutras paróquias criámos as chamadas «ollas comunes» [panelas comuns] : compramos os alimentos e as mães, organizadas em grupos, revezam-se para cozinhar e distribuir a comida de acordo com o número de pessoas em cada família. 

Embora as fronteiras estivessem fechadas devido à covid-19, o tráfico de seres humanos aumentou. Os traficantes usam outras formas para continuar a atrair e enganar potenciais vítimas, principalmente através da Internet e das redes sociais. Basta pensar em qualquer jovem que perdeu o emprego durante a pandemia e ainda está desempregado, e se alguém lhe oferecer uma oportunidade de emprego no estrangeiro, dizendo-lhe : «Quando a pandemia acabar e as fronteiras abrirem, convido-te para ires a esse país... ou podes ir para os Estados Unidos ou para a Europa, onde podes trabalhar e estudar ao mesmo tempo.» Aquele jovem vai acreditar, pensando que essa oferta é verdadeira.

Por impossibilidade de nos deslocarmos no país devido à pandemia, oferecemos cursos de formação para jovens e professores por videoconferência. Informamos sobre as estratégias que os traficantes usam para convencer as pessoas, alertamos para o perigo que é dar informação pessoal ao primeiro que encontram e de aceitar desconhecidos nas redes sociais. Que investiguem e descubram primeiro se será verdade quando recebem propostas de trabalho. Na ausência de aulas presenciais, difundimos vídeos em que falamos de tráfico, das suas causas e consequências físicas e psicológicas com o objetivo de prevenir este flagelo.

Graças ao nosso trabalho, temos visto resultados e as pessoas começaram a reportar mais frequentemente o tráfico. Não há muito tempo, uma jovem disse-me : «Irmã, ontem à noite vi uma oferta de emprego na Internet. E como nos tinhas falado disto, perguntei-lhe se era verdade. Depois de dois dias, a informação tinha desaparecido. Era um anúncio falso

Nestes anos também aprendi a relativizar muitas questões específicas da minha cultura. No meu país, o Chade, falar de sexo é tabu, mas aqui tenho de falar claramente com jovens que chamam as coisas pelo seu nome, sem complexos, mas com respeito. No início não foi fácil. Também vejo que é necessário adaptar a nossa linguagem ao contexto onde trabalhamos.

Aqui a vida é muito simples, somos muito próximas das pessoas e trabalhamos com elas. É uma população vulnerável que precisa de se envolver na procura de soluções, pois só assim podem avançar. Quando termino um curso com jovens, pergunto-lhes : «O que farias? Que compromisso assumes para ser um agente multiplicador desta formação?» Às vezes dizem que querem fazer alguma coisa, mas não sabem, por isso digo-lhes que ponham as ideias na mesa e falem sobre o tema. Muitos grupos ligam-me para me falar das atividades que estão a fazer. Tudo isso me encoraja e ajuda-me a continuar a trabalhar, porque esse era o sonho de São Daniel Comboni : formar líderes que gerem a mudança, formar a Igreja local.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://www.combonianos.pt/alem-mar/actualidade/6/602/trafico-de-pessoas-a-outra-pandemia/

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Conversar de coração a coração

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo d0 Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ


‘Quando vamos rezar, como em qualquer outro encontro interpessoal, não é simples nos lançarmos de imediato a profundas partilhas e trocas de afeto. Muitas vezes é preciso pacientemente aguardar o momento, realizar passos preliminares, ir-nos aproximando um ao outro progressivamente. Mas chegará a ocasião em que o afeto não cabe mais dentro do peito e explodirá. É a hora de deixar o coração falar, livremente, amorosamente. Chegamos ao que Inácio chama de ‘colóquio’.

O colóquio como diálogo com o Senhor na oração é para Inácio o momento de falar ‘de coração a coração’, isto é, apaixonadamente, com intenso afeto. Para que nossa oração seja verdadeiramente autêntico diálogo com o Senhor, há uma experiência de base que precisamos recuperar : a de sermos amados por Deus!

Sentir-se amado : Não vivemos sem essa experiência, ou viveremos uma vida muito triste. É interessante notar como, em momentos-chave da sua vida, vemos brotar nos Evangelhos a revelação que Jesus é amado pelo Pai. Pois esse Amor imenso é que moveu o Senhor a se lançar a anunciar a Boa-Nova e a enfrentar a Paixão, morrendo por nós na cruz. Pois é exatamente nestes dois momentos decisivos (Batismo = início da missão pública, e Transfiguração = subida para Jerusalém = preparação para a Paixão) que ecoará, forte e claro, a voz do Pai : ‘Este é meu Filho muito amado!’. Se olhamos para a nossa história de vida, encontraremos certamente situações similares em que, em meio a incertezas, sofrimentos e ameaças, o sentimento repousante e seguro de sermos amados nos impediu de naufragarmos.

O que nos permitirá enfrentar o que nos espera no futuro (situações de dor, incompreensão, renúncias que temos que fazer, etc.) é necessário antes de mais nada compreender, sentir, experimentar que Aquele que está nos falando é alguém que nos ama de um modo antes inimaginável. Sem essa experiência de sentirmo-nos amados por Ele, suas palavras e atitudes não terão nenhum efeito transformador sobre minha vida concreta. Lembremos sempre da palavra do evangelho na Transfiguração : ‘Esse é meu Filho muito amado : escutai-O!’ (Mc 9,7)

Uma oração que penetra até o coração, no centro da pessoa e produz movimentos afetivos intensos. Explana González Buelta sobre o tema :

A realidade que entra em nós através dos impactos dos sentidos processados por nosso pensamento é levada até a afetividade. Se é percebida como boa, produz em nós sentimentos de agrado e de acolhida. Se é percebida como desagradável ou ameaçadora, sentimo-nos feridos e nos fechamos. A afetividade tem muitos matizes diferentes que conformam um universo apaixonante mas complexo, no centro mesmo de nossa pessoa. A realidade pode produzir em nós os sentimentos que são estados afetivos suaves e de curta duração, as emoções intensas e breves, e as paixões que são intensas e se instalam dentro de nós por longo tempo. Os estados de ânimo são duráveis e suaves.  Nem todos os impactos afetivos passam antes por nosso pensamento. Às vezes são tão intensos que se chocam diretamente e com força em nossa afetividade’.

Ao tocar nesse tema dos afetos, sinto necessidade de avisar que precisamos estar atentos a uma coisa : que não sejamos engolidos por nossos afetos! E o que era um encontro amoroso com o Senhor da minha vida se perca em expressões de sentimentalismos superficiais e desconectados, sem incidência na minha vida e prática pastoral. 

González Buelta, fiel à tradição inaciana, coloca-nos diante de um universo binário ‘agradável/desagradável’, ‘consolação/desolação’, ‘a favor/contra Deus’. Grande parte das nossas energias na oração serão consumidas nesse sentir, identificar, classificar e reagir ao que experimentamos na oração. Sem medo de olhar o que está se passando no nosso interior e os seus diversos graus de intensidade : sentimentos (estados afetivos suaves e de curta duração), emoções (intensas e breves) e as temidas paixões (intensas e que se instalam para ficar). Acima destas, também falamos em ‘estados de ânimo’, duráveis e suaves.

Quando rezo de forma livre, aberta, o meu universo interior desdobra-se e desvela-se diante de mim e de Deus. Pois é ali onde se dá o encontro escondido e secreto com o amor de nossas vidas. Quando nos detemos na oração a conversar com o Senhor, nos voltaremos para os sentimentos que despontam no mais íntimo de nós, para saboreá-los, deixá-los fruir dentro de nós, e observaremos para onde eles nos conduzem.

A afetividade tem um peso decisivo na vida : Ainda que nos consideremos muito racionais e equilibrados, sabemos que as grandes decisões de nossa vida não as tomamos com base em silogismos ou intrincados raciocínios, mas movidos pelo ímpeto das paixões. Comenta González Buelta a respeito :

‘Pondus meum, amor meus’ (Santo Agostinho, Confissões XIII, 9,10). O que eu amo, isso é o peso que inclina meu coração. ‘O afetivo é o efetivo’, o que sentimos profundamente acaba por inclinar nossa pessoa nessa direção.  Por isso é fundamental fazer-nos conscientes do que acontece no nosso coração. ‘Poderosas razões tem o coração que a razão não conhece’. Às vezes uma pessoa toma uma decisão surpreendente para todos, até para ela mesma. Mas não é mais que o momento de deixar sair à luz um processo que caminhou durante muito tempo na escuridão ignorada do coração. A maturidade emocional supõe o dar-se conta dos próprios sentimentos e dos pensamentos que esses sentimentos geram. Dar-se conta dos sentimentos, dar-lhes nome e dialogar com eles é decisivo no crescimento humano e espiritual’.

Devido à nossa formação, cultura, temperamento, temos receio de liberar toda a afetividade que trazemos dentro de nós na oração, como se isso fosse algo inconveniente ou até mesmo ‘pecaminoso’. Nada mais alheio à experiência espiritual dos grandes santos da Igreja, que usavam até mesmo expressões carregadas de sentido erótico para expressar o amor que sentiam por Jesus, inspirando-se no Cântico dos cânticos e sua simbólica nupcial.

Na oração amorosa, experimentamos a diferença entre fazer algo por fazer (por obrigação) e fazer por amor. Abissal diferença, sentida nos seus efeitos em nós e nas pessoas que amamos!

Sempre na origem : amar e sentir-se amado por Alguém, sentir-se amado por um ser pessoal, com o qual nos podemos relacionar, é decisivo para ser pessoas. Não nos basta dizer que Deus é a Força, a Natureza e tantas outras expressões vagas de uma transcendência diluída e impessoal. Devemos viver conscientemente a relação que cada um estabelece com Deus, estando bem atentos ao que vai acontecendo dentro de nós, sem relegar às sombras a dimensão afetiva desta relação.

Hoje vemos se multiplicar métodos de oração e meditação onde a dimensão pessoal de encontro com Alguém desaparece. Quando rezamos, rezamos a Alguém? Na presença de Alguém? Estabelecemos um diálogo ou trata-se, no máximo, de um solilóquio? Nosso Deus é Comunidade de Amor, Deus-Trindade. Esse fato faz alguma diferença para minha oração pessoal? Estamos diante de um ponto fundamental, pois como vou me sentir amado(a) se não há quem me ame?

No nosso diálogo com o Senhor, fazemos a experiência de muitas forças, pulsões e atrações que entram em ação quando queremos nos abrir aos demais, vencer nossos temores e inseguranças que se mostram quando nos expomos ao amor do outro. Quanto maior for a dimensão da decisão a ser tomada, mais forte experimentaremos resistências para colocar em prática o que se nos revela como sendo Vontade de Deus. 

É importante que, quando essas tensões vierem à tona na nossa oração, que tenhamos coragem e abertura para conversar sobre elas com o Senhor e com nosso guia espiritual. Por vezes tais mecanismos atuam de modo inconsciente, submersos, tornando-se de difícil detecção. Nestas horas, requer-se algo bem difícil : tranquilidade e paciência. Não devemos nos apavorar nem nos deixarmos paralisar por esses medos. Eles fazem parte da nossa vida, são expressões de nossa limitada condição humana.

Com o passar dos anos, fui aprendendo algo importante : que, na maior parte das ocasiões, será preciso procurar avançar sem seguranças e com visibilidade bem moderada. Em outras palavras : na fé! Talvez duvidemos de nossas próprias energias, o horizonte permanece insistentemente nebuloso, mas não posso deixar de sentir que há uma Presença que caminha comigo e não me permite desistir ou vacilar.

Se há algo que só tem valor quando se experimenta concretamente, é o amor! Não adianta nada discursar sobre o amor, procurar argumentos para convencer alguém a respeito dele. Nada substitui a experiência concreta, viva, atual, de sermos amados. O mesmo vale quando queremos retribuir ao amor recebido. Ao falar de responder ao amor, de retribuir tanto amor recebido, é preciso, contudo, fazer uma observação de peso : o amor verdadeiro é gratuito!

A eficácia do amor não pode ignorar a dimensão afetiva nem destruir as dimensões de gratuidade que existem em todo amor verdadeiro, que de maneira nenhuma pode reduzir-se à contabilidade como se se tratasse de um investimento bem calculado. O amor presta atenção a cada pessoa concreta e ao momento presente, mas situa os instantes pontuais de comunhão ou de ajuda na história de uma relação. Cada pessoa não é amada como uma fruta que eu capturei em minha mão, isolada de tudo para o meu próprio benefício, mas sim situada em uma rede de relações que a constituem como pessoa. Por isso todo amor está aberto a outros, à comunidade e ao povo em seu conjunto. O amor verdadeiro é sempre concreto e universal, tem nomes próprios, mas nunca constrói uma cerca ao redor deles’.

Benjamin Buelta nesse parágrafo que acabamos de ler toca pontos preciosos para nossa consideração. O primeiro deles que gostaria de comentar brevemente é o da eficácia do amor. A palavra ‘eficácia’ pareceria não cair nada bem ao se falar do amor, do amor gratuito. Pois, à primeira vista, falar de eficácia implicaria planejar estratégias de ação, buscar elementos que garantam o ‘sucesso’ da empresa do amor. Como medir a ‘eficácia’ do amor? Numericamente? Por extensão? Tarefa complicada! Aos olhos do mundo, o amor de Jesus não foi nada ‘eficaz’. Talvez entenderíamos o que o autor significa por ‘eficaz’ com termos tais como ‘concreto’, ‘encarnado’ ou mesmo ‘real’. Aqui não ‘falamos’ de amor ou de amar; trata-se de ‘amar de verdade!’.

O segundo ponto que me chamou a atenção é que se trata de um ‘amor aberto a outros’, que nem por isso abandona seu ser concreto, mas, simplesmente, recusa-se a se fechar em si mesmo. ‘Tem nomes próprios, mas nunca constrói uma cerca ao redor deles’ : gratuidade, altruísmo são essenciais nesse amor-serviço! Na nossa oração, contemplando e nos confrontando com o Homem Livre por excelência, Jesus de Nazaré, teremos ocasião de ponderar honestamente a qualidade do nosso amor pelos demais.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1546281/2021/10/conversar-de-coracao-a-coracao/

sábado, 23 de outubro de 2021

Padre, sua vida também importa!

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Eliseu Donisete de Paiva Gomes,

da Arquidiocese de Mariana, MG


‘Desde 2015 no Brasil, por iniciativa do CVV (Centro de Valorização da Vida), da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) em conjunto com o CFM (Conselho Federal de Medicina), iniciou-se uma campanha de prevenção ao suicídio, que recebeu o nome de ‘Setembro Amarelo’, justamente porque o dia 10 do referido mês é o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio.

De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), recolhidos no ano de 2012, aproximadamente 800 mil pessoas cometem suicídio anualmente. É sem dúvida uma estatística muita assustadora, que atinge pessoas de todas as idades, gênero, classe social, cor, crentes, ateus, padres, freiras, etc. Estima-se que no mundo a cada 40 segundos alguém comete suicídio. No Brasil são 10 mil suicídios por ano, uma média de 27 brasileiros por dia, ou seja, a cada hora, uma pessoa tira sua vida no país.

Nesse cenário é preciso também falar sobre o suicídio na vida sacerdotal, que nos últimos anos tem aumentado de forma bastante expressiva. No Brasil entre os anos de 2017 e 2018 foram 20 padres que tiraram a própria vida, e desde que a pandemia começou já se tem notícias que no país 7 padres cometeram suicídio. Vários são os questionamentos que vão surgindo como forma de encontrar respostas para esse triste e preocupante cenário.

Quais os principais fatores que têm contribuído para o suicídio na vida sacerdotal? 

Estresse profissional

Uma pesquisa realizada em 2008 pela ISMA-BR (International Stress Management Association), voltada ao desenvolvimento da prevenção e do tratamento de stress no mundo, apontou que a vida sacerdotal é uma das profissões mais estressantes da atualidade. Nessa pesquisa, além de padres e religiosos, foram entrevistados profissionais de diversas áreas, dando destaque para os agentes de segurança pública, empresários e motoristas de ônibus, que comumente são profissões tidas como muito estressantes. Mas entre todas as profissões, os sacerdotes são os que mais experimentam o estresse profissional. Na pesquisa dos 1,6 mil padres e freiras entrevistados, 28% deles, quase 500, se sentiam ‘emocionalmente exaustos’.

O sacerdote é visto por muitos como se fosse um ‘super-homem’, e que por isso, tem que estar 24 horas disponível para atender a todas as solicitações da comunidade da qual ele foi constituído pároco e pastor. Mas no dia a dia da missão sacerdotal, ele precisa ser mais do que pastor, porque as demandas são tão variadas, que passam a exigir dele aptidões que estão para além da formação que recebeu no processo formativo.

 Na comunidade paroquial o sacerdote vai ter que lidar com construções e reformas de capelas, administração financeira e contábil, cuidar e zelar por todo o patrimônio paroquial, muitas vezes terá que atuar como psicólogo na orientação dos fiéis, em outros momentos terá que resolver conflitos entre membros das pastorais e lidar com problemas sociais, além é claro, da administração dos Sacramentos, reuniões e formações pastorais. Tudo isso, faz com que o sacerdote, com essa sobrecarga de trabalho, não tenha tempo para cuidar de si, da sua vida espiritual, da saúde mental, do seu lazer e descanso, e em pouco tempo, vai entrar num processo de estresse, esgotamento e desmotivação. 

Depressão  

Outro fator que pode desencadear o suicídio é a depressão. Em todo o mundo, aproximadamente 300 milhões de pessoas, de todas as idades, sofrem com esse transtorno. E o sacerdote, que também é gente, é ser humano, está sujeito a desenvolver esse transtorno mental. Depressão não é ausência ou falta de Deus. Se fosse assim, os padres nunca teriam esse transtorno. Inclusive muitos homens e mulheres de fé que o mundo já viu, tiveram lutas fortes contra a depressão, como por exemplo, São Francisco de Sales e Santa Terezinha do Menino Jesus. No caso específico do sacerdote, a depressão ocorre sobretudo por causa do isolamento, da falta de convivência com os demais presbíteros, não se sentir valorizado e nem realizado no ministério, dependência e conflitos afetivos, desequilíbrio emocional, entre outros. Se o sacerdote não procura ajuda, não dá o grito de socorro diante dessas situações, poderá entrar num quadro de depressão, e consequentemente até chegar ao suicídio.

Cobrança excessiva

O tempo de formação até o sacerdócio ministerial, em se tratando das dioceses, dura aproximadamente oito anos, sendo um ano de Propedêutico, três anos de Filosofia e quatro anos de Teologia. Esse longo tempo vai ajudá-lo a se preparar acadêmica, espiritual e humanamente para estar à frente de uma comunidade paroquial. No entanto, isso não dá ao sacerdote poderes especiais, como se ele tivesse uma varinha de condão, para resolver todos os problemas da comunidade. Muitas vezes a ideia que transparece no meio do povo é que o padre é incansável, e isso é uma grande mentira. Assim como qualquer pessoa, o sacerdote se cansa, tem as suas crises, experimenta dores, enfermidades, sofrimentos, chora, fica triste, tem suas alegrias e realizações. Não se pode esquecer que antes de ser padre, ele é um ser humano. Nesse sentido, os fiéis precisam entender que quando as cobranças se tornam excessivas, elas de nada ajudam. Ao contrário, vão contribuir para gerar um maior desgaste na vida dos sacerdotes.

O que pode ser feito para ajudar os sacerdotes?

O primeiro passo é que cada sacerdote não se esqueça de cuidar de si mesmo. Como diz o ditado popular : ‘Quem gosta da gente somos nós mesmos’. E aqui entra uma importante iniciativa em muitas dioceses, a chamada Pastoral Presbiteral, que visa proporcionar encontros, momentos de formação, partilha e convivência entre os presbíteros, auxiliando-os nesse cuidado permanente da saúde mental. 

Um segundo passo é o envolvimento da própria comunidade eclesial que deve sentir-se responsável no processo de cuidado dos seus sacerdotes. Não é apenas rezar por eles, mas ser presença afetiva, amiga e carinhosa, de forma que esse cuidado proporcione ao sacerdote uma vida mais saudável que o fortaleça na sua vocação e missão. O padre cuida, mas também precisa ser cuidado.  

Um último passo é o cuidado dos bispos com os seus sacerdotes. E deve ser um cuidado paternal, afinal o bispo é pai, e como tal precisa estar atento e ser próximo dos seus filhos sacerdotes, sobretudo quando estes estão passando por situações mais delicadas e de fragilidades na saúde mental.

Assim como Jesus, que foi enviado pelo Pai, e deseja que nenhum daqueles que lhe foram confiados se percam (cf. Jo 6,39), o bispo, o presbitério e o povo, devem fazer o mesmo a fim de que nenhum sacerdote perca a sua vida por falta de cuidado, atenção e amor. Padre, a sua vida também importa!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1544623/2021/10/padre-sua-vida-tambem-importa/

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Quando a 'vocação' impede o reconhecimento da função como um 'trabalho'

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Camila Campos Marçal da Cruz


‘Vivemos de tal modo que o trabalho remunerado ocupa um lugar central nas nossas vidas. Trabalhamos para (sobre)viver e trabalhamos tanto que nem temos tempo para pensar sobre o modo que vivemos (Isso não é por acaso, mas não vamos entrar nesse mérito agora). Nesse cenário, assistimos no Brasil, de um lado, um crescente movimento de pessoas questionando essa centralidade do trabalho e levantando a bandeira da busca por um trabalho que tenha propósito. Ao mesmo tempo, assistimos, de outro lado, a perda de direitos já conquistados pelo trabalhador, a precarização do trabalho e o aumento da informalidade e do desemprego.

Tal realidade - independente de qual seja a nossa situação específica - nos leva a um estado de angústia e insegurança constante. Estamos sempre com medo : seja por não conseguir um trabalho, seja de perder o emprego, seja de não dar conta por se sentir sobrecarregado de tanto trabalhar. Isso tudo, por si só, já é adoecedor. Mas será que isso acontece também quando seguimos uma vocação? Sim. Gostar da própria profissão e/ou do trabalho, não nos torna imunes aos efeitos desse contexto de instabilidade, nem aos efeitos da realidade cotidiana do trabalho em si. Na verdade, ter o privilégio de seguir uma vocação, seja ela qual for, pode ser usado, inclusive, para que determinados trabalhos não sejam reconhecidos como tal e portanto, não tenham seus direitos regulamentados. Como bons exemplos disso temos os trabalhos das mães e donas de casa e as profissões de professor e cuidadores.

Além disso, a nossa dificuldade (ensinada) em reconhecer algumas profissões como trabalho, pode nos impedir de perceber as necessidades humanas da pessoa que exerce aquela função. Fato é que, se é trabalho, tem impacto no sujeito e na sua saúde. Para entender isso melhor, vamos esclarecer o que compreendemos como trabalho e vocação. Consideramos trabalho qualquer conjunto de atividades que uma pessoa exerça com um fim determinado ou de forma regular, seja este remunerado ou não. Entendemos por vocação, uma tendência ou chamado que uma pessoa sente para seguir uma função ou profissão específica. Agora vamos falar especificamente da vocação religiosa.

De acordo com a legislação trabalhista brasileira, pessoas que cumprem funções religiosas não configuram emprego. O que não quer dizer que as pessoas envolvidas com ele não sofram com as mesmas questões relacionadas a trabalho. E quais são as características do trabalho religioso que ficam submersas por conta do seu não reconhecimento? A vida sacerdotal é uma vida com mais atribuições do que se costuma imaginar. Além das atividades de cunho espiritual, que mais comumente associamos a eles, tais como a realização de missas, batizados, crismas, casamentos, o trabalhador religioso pode/precisa se dedicar a atividades assistenciais, tais como visita a doentes, escuta aos fiéis; atividades de ensino universitário e também voltadas para a comunidade de fiéis e à própria formação de novos sacerdotes; atividades administrativas que vão desde gestão contábil à gestão das atividades da comunidade religiosa, passando por organização de eventos, comunicação, divulgação, cuidado com a rotina da casa, entre outros.

No livro Sofrimento psíquico dos presbíteros, o autor, psicólogo William Pereira, fez uma pesquisa qualitativa com padres e freiras e os entrevistados relataram um nível de exaustão emocional superior à categoria de policiais, executivos e motoristas de ônibus. Além de todas as funções que os sacerdotes precisam exercer, paira sobre seus ombros a exigência de ser um modelo de virtude e santidade para toda a comunidade. E essa cobrança (externa e interna) começa desde o tempo de formação sacerdotal. Se não tiver muito cuidado, o religioso corre o risco de negligenciar a própria vida, espiritual-física-emocional.

Ao ingressar na comunidade religiosa, faz-se votos de realizar qualquer atividade que seja necessária, seja ela de cunho religioso ou não. Aderir a isso é um gesto de liberdade, que traz com isso uma responsabilidade com o outro e consigo mesmo. Sendo assim, precisamos estar atentos para que esse trabalho, juntamente com outros fatores, não seja um fator de adoecimento. O fato de dedicar a vida a servir, é belíssimo, mas isso não elimina automaticamente o fato de que se trata de um ser humano e que portanto, para servir, precisa se cuidar. E o que seria esse cuidado?

Esse cuidado implica em lembrar da sua própria humanidade e agir de forma preventiva, priorizando o cuidado com a integralidade da sua pessoa em todos os âmbitos da vida : cuidando da alimentação, fazendo atividade física, separando tempo para lazer, tempo para descanso, tempo para cultivo das relações afetivas, tempo para se escutar. Autocuidado engloba também estar atento aos sinais do nosso corpo e ser ativo na busca de compreensão desses sinais. Se você se sente constantemente exausto/esgotado; se percebe que caiu o seu rendimento; se se sente ansioso para executar suas funções e/ou cumprir prazos; se precisa conviver com pessoas que te colocam em situações humilhantes e constrangedoras; se identifica alguma alteração significativa no sono ou na alimentação; se não tem interesse em atividades que antes proporcionavam prazer; se se sente constantemente irritado ou sem energia… procure ajuda!

Com uma ajuda profissional, pode-se verificar quais os ajustes são necessários e possíveis de serem feitos na sua vida/rotina, que podem te trazer mais qualidade de vida e bem estar! Lembre-se : vocação sacerdotal não é um emprego, mas é trabalho (e muito)! Se cuide!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1544622/2021/10/quando-a-vocacao-impede-o-reconhecimento-da-funcao-como-um-trabalho/