sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

«O perdão libertou-me do medo»

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Enrique Bayo,

Missionário Comboniano

  

‘Caminha normalmente. Nada sugere que, há sete meses, tenha sido atingido por quatro balas de uma Kalashnikov nas pernas. Felizmente, as balas não tocaram nos seus ossos, nervos ou articulações. Este providencial – quase milagroso – acontecimento não foi o único : «Um avião da Cruz Vermelha estava disponível no dia do ataque para me transferir para um hospital em Nairobi, Quênia. A Providência tornou ainda possível que, rapidamente, se encontrasse um dador de sangue compatível e, assim, fazer a transfusão que eu precisava. Providencial, também, foi que uma das pessoas que me atacou perdeu o seu telemóvel no meu quarto, o que forneceu pistas que permitiram descobrir os autores do ataque e lançar as bases para que algo semelhante não volte a acontecer. Muitas circunstâncias felizes para me fazer ver que o Senhor estava no domínio do que me aconteceu», sublinha Christian Carlassare, bispo eleito de Rumbek.

«Eu compreendi – refere D. Carlassare – que o ataque foi para me intimidar, para me assustar e para me manter afastado de Rumbek. A minha impressão é que, durante os dez anos em que esteve vacante, a diocese foi ficando refém de um pequeno grupo de poder, com interesses específicos, a quem a minha presença incomodou.»

Poucos dias após o ataque, 41 pessoas foram presas. Seis estão atualmente na prisão e cerca de 20 estão acusadas, incluindo alguns padres e agentes pastorais. O processo judicial continua e ainda não há sentença, pelo que o bispo eleito apela à prudência, consciente da situação incerta em que se encontra. «Como posso trabalhar se ainda não está tudo esclarecido? Em qualquer caso, em diálogo com a nunciatura, estamos à procura de uma data para regressar ao Sudão do Sul. Pela minha parte, estou determinado a levar esta responsabilidade até ao fim, como um pai que não pode abandonar os seus filhos. O ataque teve lugar no Domingo do Bom Pastor e guardo na minha mente este ícone do Bom Pastor que se preocupa e dá a vida pelas suas ovelhas

Perdoar

Embora esteja consciente da oposição inevitável que qualquer pessoa que exerça autoridade, como um bispo, pode enfrentar, D. Carlassare nunca imaginou que seria alvo de uma ação tão violenta. No entanto, impressiona a sua forma de interiorizar o que aconteceu. «Desde o primeiro momento, abandonei-me nas mãos de Deus, sabendo que Ele poderia beneficiar a missão com o que me aconteceu. Nos primeiros dias acordei a pensar que tudo tinha sido um pesadelo, mas quando fui entrevistado na cama do hospital, do meu coração brotaram palavras de reconciliação e perdão que eu não tinha preparado. Conceder o perdão naquele momento foi para mim uma libertação do medo, ressentimento, desconfiança e desconforto e, assim, continuar a acreditar no processo que a Igreja está a levar a cabo no Sudão do Sul, para que este povo possa viver em paz. Com o passar do tempo, vejo o que me aconteceu como uma forma de eu carregar na minha carne as feridas deste país. Demasiados sul-sudaneses sofrem injustamente com a violência, são atacados nas estradas ou forçados a fugir das suas terras, por isso, é para mim um dom fazer causa comum com a situação de tantas pessoas.»

O ciclo de violência

O conflito interno no Sudão do Sul rasgou o tecido social e dividiu grupos étnicos. Um acordo de paz foi assinado em 2019 entre o Governo e o grupo maioritário da oposição, mas ainda há muito a fazer. Para Christian Carlassare, «a assinatura do acordo é um passo em frente para a paz porque permitiu partilhar alguns poderes e cargos governamentais, mas é necessário passar de um acordo entre ‘grandes atores’ para um acordo que chegue aos territórios onde os conflitos continuam e as feridas ainda estão abertas. Há ainda quatro milhões de refugiados ou deslocados do Sudão do Sul que perderam as suas terras, agora ocupadas por milícias ou grupos não nativos da área. As armas estão em todo o lado e alguns utilizam-nas de formas inaceitáveis. Além disso – continua o missionário comboniano –, certos grupos estão a tirar partido dos recursos de todos recorrendo a uma corrupção terrível. Fala-se do Sudão do Sul como de uma cleptocracia, enquanto a população é vítima do roubo dos seus recursos e privada da possibilidade de desenvolvimento

Neste contexto, a Igreja tem uma missão fundamental para quebrar o ciclo de violência e permitir que o país se levante : «Está presente em todas as comunidades e fala o Evangelho na língua de cada povo, com uma mensagem comum de paz, unidade e reconciliação. É urgente passar da narrativa do medo para uma narrativa positiva, que conduza à reconciliação.» A este respeito, D. Carlassare considera importante o gesto profético do Papa Francisco em 2019, quando beijou os pés dos líderes do Sudão do Sul. «Muitos perguntaram-se como foi possível que o Santo Padre se curvasse diante destes ‘pais da pátria’, que não são santos. Foi um gesto forte para pressionar os líderes sul-sudaneses a porém de lado o seu ego e aceitarem um compromisso, mas também para os fazer compreender que a única autoridade que pode ser realmente uma ajuda para o povo é a autoridade que está disposta a servir.» 

Ultrapassar inimizades

O P.e Christian chegou ao Sudão [o Sul tornou-se independente em 2011] aos 28 anos de idade com o entusiasmo da sua recente ordenação. Foi enviado para trabalhar entre o povo Nuer na comunidade de Old Fangak, que os Missionários Combonianos tinham aberto nove anos antes. Durante quinze anos, sem interrupção, realizou o seu serviço pastoral entre o povo Nuer, visitando as jovens comunidades cristãs e formando agentes pastorais.

Enquanto estava em Old Fangak foi nomeado bispo de Rumbek, uma diocese onde os Dincas são o grupo étnico maioritário, algo que não preocupa muito D. Carlassare, embora reconheça que o conflito do Sudão do Sul criou muita desconfiança entre os Nueres e os Dincas : «Penso que as pessoas não identificam o missionário com um determinado grupo étnico. Trabalhei entre os Nueres, mas não sou um nuer e trabalharei entre os Dincas em Rumbek sem ser dinca. Nós, missionários, devemos ser pessoas abertas e trabalhar na Igreja para diminuir a inimizade entre grupos. Os Dincas sabem que eu amo o povo Nuer, mas também sabem que os posso amar da mesma forma.»

Dom e desafio

A diocese de Rumbek é um desafio para o jovem prelado. Foi criada em 1975, mas teve de ser encerrada durante os anos de guerra civil entre o Norte e o Sul do Sudão. Devido ao conflito, a população sofreu com a fome durante a década de 1980. Nos anos 1990, a diocese foi reaberta com a presença do bispo comboniano D. Cesare Mazzolari, que revitalizou todas as estruturas eclesiásticas. «Era verdadeiramente um santo, um visionário e um profeta, e levantou a Igreja do ponto de vista pastoral e social», diz com convicção. A morte de D. Mazzolari, em 2011, deixou a sede vacante até à nomeação de D. Carlassare, que vê o trabalho realizado pelo seu antecessor como a razão da sua eleição. «Penso que a Santa Sé olhou para os Missionários Combonianos porque somos uma congregação estável e bem estabelecida no país, e que pode dar continuidade ao trabalho de D. Mazzolari. Não foi tanto a minha pessoa em concreto, mas a confiança nos Missionários Combonianos, que me trouxe a Rumbek.»

A memória de D. Mazzolari faz com que a grande maioria dos católicos de Rumbek espere a chegada do novo bispo com expectativa, algo que D. Carlassare vê como uma «espada de dois gumes», porque muitos pensam que «um bispo europeu pode dar esperança ao desenvolvimento da diocese, algo que deve ser continuado, mas nunca sem a contribuição dos cristãos». D. Mazzolari realizou numerosos projectos sociais com ajudas que provinham do estrangeiro, razão pela qual o seu sucessor insiste na necessidade de «passar para uma Igreja que cresça com os recursos disponíveis no local, que conte com participação de todas as pessoas».

Ao concluir a entrevista, D. Carlassare convidou os leitores da Além-Mar a superar a imagem negativa de África que, frequentemente, transparece nos meios de comunicação social. «Devemos saber olhar para o continente com olhos mais abertos, com um grande coração, e descobrir tudo o que a África aporta à nossa velha Europa. Não só recursos, que infelizmente causam conflitos em África, mas sobretudo a sua cultura e a sua verdadeira riqueza : as pessoas.»’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/actualidade/6/642/o-perdao-libertou-me-do-medo/

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A catedral do Bahrein, um oásis de graça no deserto

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Debora Donnini, 

da Vatican News


‘A catedral do Bahrein ergue-se no deserto como ‘um oásis de graça viva’. O cardeal Antonio Luis Tagle, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, agradeceu ao Senhor ao descrever a igreja que consagrou no passado dia 10 de dezembro no país constituído por um arquipélago de ilhas no Golfo Pérsico. Uma ação de graças que olha para a realidade dos cristãos e para além dela. ‘No deserto’, disse ele, ‘os migrantes cristãos encontram uma casa, a casa de Deus e da família de Deus; no deserto surgiu um símbolo poderoso de diálogo, solidariedade e fraternidade. Louvamos o Senhor que caminha com o seu povo no deserto e faz um pacto com ele’.

Mais de mil visitantes por dia

Uma obra de importância decisiva na região. A catedral, cuja pedra fundamental doada pelo Papa foi lançada em 2014, tornar-se, de fato, o centro dos serviços pastorais do Vicariato Apostólico da Arábia do Norte, que inclui também o Kuwait, Qatar e Arábia Saudita. É uma obra de arte sugestiva, com um projeto octogonal, uma cúpula dourada e uma acabamentos azuis no exterior. Com uma grande capacidade : pode acomodar até 2.300 pessoas. Desde a sua inauguração e consagração, mais de mil pessoas por dia foram visitá-la, e não só católicos, explica Mattia Del Prete, o arquiteto que construiu a igreja com sua equipe. Um fato que atesta a beleza do trabalho, mas também o seu papel como ponto de encontro de todos. Sete anos de trabalho, explica ele, durante os quais se conseguiu a colaboração com as autoridades locais para enfrentar, em conjunto, as dificuldades da construção. O forte apoio do Rei do Bahrein, Hamad bin Isa al Khalifa, foi importante, pois doou os 9.000 metros quadrados de terreno e também tornou possível a construção do parque de estacionamento.

O amor de Deus através da beleza

A forma recorda a tenda no deserto do povo de Israel onde, como narra o livro do Êxodo, o Senhor falou a Moisés; era o lugar da presença do Senhor. Com uma grande cúpula coberta de metal dourado que reflete a luz do sol, é ‘como um farol’ - explica Mattia Del Prete – apoiado sobre volumes de pedra que assumem tons rosados num céu vermelho ardente ao pôr-do-sol. A beleza do mármore, os acabamentos azuis no exterior e cada detalhe recordam a ‘nova estética’ proposta na arte por Kiko Argüello, iniciador do Caminho Neocatecumenal e consultor artístico da obra. Mattia Del Prete e a sua equipe se formaram com ele. O significado é fazer as pessoas, mesmo as mais pobres, perceberem, através da beleza, o amor de Deus, cujo ponto culminante é o próprio rosto de Cristo. É esse amor que se expressa antes de mais nada na criação e que suscita admiração. A beleza, de fato, faz o homem sentir-se profundamente amado.

Uma experiência de diálogo e de encontro

A atenção aos detalhes, explica o arquiteto, visa dar uma maior participação na liturgia utilizando todos os instrumentos técnicos : a forma octogonal, os planos inclinados, a coroa misteriosa - uma reprodução dos afrescos de Kiko feita com uma técnica inovadora de alvenaria - que se refere à iconografia oriental. É um espaço circular na base da cúpula, inteiramente em afresco, com painéis que ilustram os principais episódios da vida de Jesus e o Cristo Pantocrator no centro. Os espaços modernos e acolhedores estão portanto ao serviço das pessoas, das relações com o próximo. Mattia Del Prete descreve emocionalmente o diálogo que foi estabelecido com o rei Hamad. Mas também com os trabalhadores, recordando como no dia da inauguração todos se cumprimentaram com um abraço fraterno : uma explosão de alegria coletiva. Também se destaca a importância da estátua da Virgem Maria com o Menino nos braços e o Rosário nas mãos, as capelas laterais marcantes e a Fonte Batismal escavada no chão e rica em símbolos, começando pelos sete degraus abaixo, onde é possível receber o Batismo por imersão. Além disso, a utilização do plano inclinado sobre o qual os bancos estão dispostos permite uma perfeita visibilidade também nos últimos bancos.

Um sinal de acolhida aos trabalhadores migrantes

Uma obra de amor, portanto, cujo projeto começou com o então Vigário Apostólico da Arábia do Norte, dom Camillo Ballin, recorda dom Paul Hinder, Vigário Apostólico da Arábia do Sul que, desde 13 de maio de 2020, é também Administrador Apostólico da Arábia do Norte, após a morte de dom Ballin. Dom Hinder lembra-se do momento da consagração como uma festa. É, de fato, ‘uma bela construção’, diz ele. A comunidade católica no Bahrein, cerca de 80.000 batizados, é maioritariamente composta por trabalhadores imigrantes de diferentes países, especialmente da Ásia. Dom Hinder também se detém nos muitos gestos de abertura do Rei e da Casa Real, uma tradição que começou com o pai do atual Rei. Ele explica como a catedral é também um ponto de referência importante para os católicos que vivem na Arábia Saudita, que podem vir participar da missa.

Um caminho que continua

Esta catedral é também um sinal de beleza e, portanto, de acolhida a estas pessoas que vivem fora do seu país de origem. ‘É também um lugar onde se podem sentir em casa’, sublinha dom Hinder, afirmando que é importante que tenham pontos de referência para a sua fé, mas também um sentimento de pertença à comunidade católica. No que diz respeito à assinatura pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã de Al-Azhar do documento sobre Fraternidade humana para a paz mundial e a convivência comum, que teve lugar em 2019 em Abu Dhabi, ele destaca como esse documento é, de certa forma, um ponto de não retorno : ‘Há um caminho que vai em frente, há um respeito mútuo e uma aceitação que tem crescido e parece-me que é importante que experimentemos isto entre as igrejas mas também entre as religiões’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2021-12/catedral-do-bahrein-um-oasis-de-graca-no-deserto-tagle.html

domingo, 26 de dezembro de 2021

O grande ausente dos tempos modernos: o silêncio

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Ana Lydia Sawaya 

 

‘O mundo de hoje precisa reaprender o silêncio. O silêncio que se experimenta quando se vive no campo e se observa a natureza, o céu, a lua, as estrelas, o rio, as árvores e o seu burburinho, o vento que assobia – o silêncio eloquente que fala com uma voz suave. Esse silêncio preenche, não é vazio. Restaura, endireita, reordena a vida e o instante em que se vive. 

No constante barulho da cidade, na correria da vida cheia de preocupações e afazeres, as pessoas se desumanizam, se esvaziam e se perdem. Não são mais si mesmas, não sabem mais quem são; tornam-se como bolhas vazias – ocupam espaço, mas são ocas por dentro e estouram facilmente. 

Perde-se o rosto e perde-se a si mesmo. A incrementar esse vazio está o uso excessivo das mídias digitais. São estas que estão na base da diminuição do Q.I. e da inteligência das crianças como têm mostrado vários estudos. Estar sempre ligado ao celular, ao computador ou à tevê contribui para um esvaziamento ainda maior. As crianças e os adolescentes se tornam assim, presas fáceis da sociedade de consumo, insatisfeitas, inseguras e violentas. 

Tudo isso é consequência da falta de silêncio. O que é o silêncio? O silêncio é uma suspensão do falar, uma interrupção dos afazeres e do barulho, do contato direto com as pessoas, para viver um momento em que se entra em si, um tempo para conversar com Deus. Este silêncio pode dar medo, mas é só no começo. Se mergulharmos nele, conseguiremos ouvir a voz de Deus (Dt 6,4-7) : ‘Escuta Israel, o Senhor é o nosso Deus. Lembre-se Dele e fale Dele para os seus filhos, quando comeres e quando dormires, quando caminhares pela rua, quando te deitares e quando te levantares’. 

Os momentos de silêncio servem para escutar Deus que nos fala por meio do que está acontecendo fora e dentro de nós. O Espírito de Deus age sempre e é o único que nos pode dar o sentido das coisas e dos eventos. Só a partir do silêncio saberemos o que é justo pensar e como agir. A sabedoria nasce só em quem habita no silêncio. É da experiência do silêncio que nasce a palavra. A palavra se nutre do silêncio, precisa do silêncio. Disse alguém : como a mais luminosa das estrelas tem necessidade da noite para iluminar, a palavra tem necessidade do silêncio para iluminar. 

O silêncio é deixar o espaço ao Outro e ao outro. É fazer o outro ser. É a origem da caridade. O silêncio é aquilo que permite a nudez e a transparência das coisas. É necessário habitar o silêncio para poder gerar e criar ambientes de vida. É o silêncio que impede que a vida seja gasta só com coisas a fazer. É o silêncio que nos ensina a esperança e nos permite viver numa dimensão de excedência e de abundância. Só quem habita o silêncio experimenta a plenitude da vida. E habitar o silêncio significa voltar sempre a ele como à nossa casa.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2021/12/20/o-grande-ausente-dos-tempos-modernos-o-silencio/#

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

O Natal do silêncio e da oração

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Ricardo Perna, 

jornalista

 

Na clausura, tudo se faz de forma diferente


‘No Mosteiro da Cartuxa, em Évora, o Natal é diferente. Em silêncio e contemplação, os monges vivem este tempo de festa com tanto ou maior entusiasmo que as famílias que se reúnem. A FAMÍLIA CRISTÃ esteve lá, visitou a clausura e conta-lhe a história de um Natal diferente do habitual.

Se alguém lhe dissesse que os seus ingredientes de um Natal perfeito eram jejum, oração prolongada e silêncio, acharia estranho? Pois bem, era muito pouco provável que, de fato, alguém lhe dissesse isso, pois é possível que os únicos que utilizam esses ingredientes sejam monges e vivam em clausura no Mosteiro Cartuxa Scala Coeli, em Évora (e noutros mosteiros que a congregação tem em todo o mundo) e não têm contacto com ninguém.

Os monges da Cartuxa serão, provavelmente, os mais radicais na escolha da forma de passar o Natal. Jejum, oração e silêncio parecem estranhos a quem pensa no Natal como a festa da família, quando todos se reúnem à volta da mesa para festejar, ou vão juntos à Missa do Galo, que é uma celebração alegre e de ação de graças. Mas fazem todo o sentido. «Por ser, para nós, um dia de festa tão importante, pede-nos uma união maior com Deus e portanto passamo-lo em silêncio e oração. É uma vivência tão forte da liturgia e da união com Deus que não nos dá vontade de falar», diz-nos o Pe. Antão Lopez, superior da comunidade da Cartuxa, monge há 60 anos, 50 deles passados ali, em Évora.

Num mosteiro em que se divide o dia em três partes idênticas (oito horas cada) de descanso, oração ou leitura e trabalho, as festas maiores da Igreja são celebradas com ainda mais empenho e oração. Existem, na Cartuxa, três momentos comunitários : uma oração à meia-noite, missa pela manhã e oração de vésperas pela tarde. Comunitários, mas em silêncio, que o convívio entre os monges apenas acontece aos domingos, depois da missa dominical e durante o almoço.

No Natal, no entanto, o processo é ligeiramente diferente. O dia 24 é de jejum a pão e água, «em memória da morte de Nosso Senhor», como o é todas as sextas-feiras ou vésperas de dias santos. À noite, pelas 23 horas, começa a Missa do Galo, conforme é mais vulgarmente conhecida, e as orações prolongam-se por cerca de quatro horas, ao que se segue o descanso. No dia 25, segue a festa da celebração do nascimento de Jesus, mas sempre em silêncio, com as orações das horas intermédias a serem rezadas nas celas. «Temos muita liturgia, mas não temos convivência neste dia, a não ser com Deus», explica-nos o Pe. Antão.

Esta convivência mais comunitária surge apenas dia 26. «No dia 26 é como se fosse domingo. Comemos juntos ao almoço e ficamos durante a tarde em convívio até ao lanche, que também partilhamos em conjunto, ao contrário dos domingos normais», conta o Pe. Antão. Um processo que deixa espantados os noviços, e as próprias famílias dos monges, que «reclamam» destas regras, comenta o Pe. Antão, divertido. «Os noviços estranham, mas quando nos sintonizamos com a nossa oração, eles compreendem e faz sentido. Já as nossas mães reclamam muito (risos)», confidencia o sacerdote espanhol, que conta que nesta altura do ano não há visitas nem comunicações. «Nós renunciamos à nossa família de sangue, e não os visitamos, são eles quem nos visita. Este é um dos maiores sacrifícios que os jovens que entram na Cartuxa sentem, e na altura do Natal mais um pouco. O Natal vive-se na Cartuxa em família. Dia 24 estamos em família em oração, dia 25 gostamos de estar em silêncio a falar com Deus, e 26 estamos juntos, mas sem a família de sangue. Até procuramos evitar que venham nesta altura, vêm mais no verão, até porque seria complicado ter aqui todas as famílias, e nós não queremos ‘perder’ esse tempo, já que queremos estar em oração. Mas sabemos que é doloroso, por outro lado, passar esse tempo sem eles», diz.

Um isolamento nem sempre isolado por causa da fé das pessoas

O Mosteiro da Cartuxa não está aberto a visitas. Se por um lado é essencial que assim seja, para preservar o isolamento em que os monges resolveram viver, por outro é uma pena que não se possa sentir a paz e o silêncio retemperador que ali se vive, conforme testemunhou a reportagem da FAMÍLIA CRISTÃ. Os corredores vazios e o silêncio que penetra no espírito elevam a alma. Cheios deste espírito de Deus, os monges nem precisam de trocar prendas no Natal. A oração é o presente de Deus e o convívio, o presente que oferecem uns aos outros os cinco monges que ali vivem. «Não trocamos prendas, somos comunistas (risos). Temos na cela apenas o que precisamos, e não temos nada para dar a ninguém. Entre nós não somos sequer ‘proprietários da bengala que usamos’, diz a nossa Regra de vida, e por isso o convívio e a conversa é o presente que trocamos uns com os outros», conta o Pe. Antão.

Mas isso não significa que o Natal não seja marcado por gestos externos. «No dia de Natal enfeitamos mais a igreja e temos um presépio grande», conta o Pe. Antão, que recorda um monge português, antigo jogador do Sporting, que, «por ser negro, colocava Baltazar, o Rei Mago negro, sempre à frente dos outros dois». «Fazemos um grande presépio e vamos avançando os Reis Magos um pouco cada dia. Só no dia 6 de janeiro é que são colocados frente ao Menino Jesus», diz o sacerdote e monge.

Este isolamento dos monges da Cartuxa não significa um corte com o mundo de fora. Seria impossível, a avaliar pela quantidade de telefonemas, cartas e pedidos que recebem. O Pe. Antão celebra semanalmente uma missa numa capela do mosteiro que está fora da clausura e que tem sempre «cerca de 30 carros parados à porta», com amigos, vizinhos e pessoas que vêm de longe porque «gostam da simplicidade de uma missa toda rezada».

De fora vêm também muitas prendas na altura do Natal. «Doces, comidas, oferecem-nos até demais para nós. Recebemos muito porque os amigos se lembram de nós», reconhece o superior do mosteiro da Cartuxa. Prendas, mas intenções de oração também. «Como superior, que atende também o telefone, esse é um assunto para mim comovente. Ao contrário de outros mosteiros da Cartuxa, aqui há muita religiosidade popular e muito pedido de oração, por telefone, carta ou e-mail. Pedem que reze pelo filho que tem o casamento em crise, ou o marido que está a morrer, nem se identificam, por vezes. Rezamos por todas as intenções que nos são pedidas, nas várias missas que temos. E algumas pessoas ligam-nos mais tarde a falar sobre o que sucedeu e como a graça foi atingida. Tínhamos um padre de Lisboa que nos encomendava muitas intenções da sua paróquia, e depois ligava-nos sempre a dizer como tinham corrido as coisas», diz o Pe. Antão, que acrescenta que «não precisamos do feedback, porque sabemos que Deus nos escuta, mas é sempre agradável receber essas notícias». No Natal, não há intenções especiais. «São as mesmas de todo o ano. Mas ligam-nos muitas vezes para desejar um Feliz Natal», conta.

Em silêncio e contemplação, o Natal tem um sabor tão igual para estes monges como para as famílias que se reúnem em festa ruidosa. O Deus Menino nasce para todos, e cada um vive essa festa ao seu jeito particular. E você que nos lê, como escolhe viver o seu Natal?’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2014/12/23/o-natal-do-silencio-e-da-oracao/

https://pt.aleteia.org/2014/12/23/o-natal-do-silencio-e-da-oracao/2/

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Ponto de vista: um Deus vulnerável e improvável

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

‘Nesta semana se comemora o Natal no Ocidente. Em tempos de pandemia, muito provavelmente, tais comemorações se mostrarão bem mais reservadas para uma parcela da população que está atenta aos cuidados que ainda se precisa ter para evitar a proliferação da Covid-19. Da mesma forma, dado o grande número de mortes que o país teve por causa das omissões do Governo Federal na aquisição de vacinas, muitas famílias estarão sem seus entes queridos, vivenciando ainda momentos de luto por causa deles, tornando suas celebrações mais íntimas e introspectivas.

Há ainda aqueles e aquelas que, contrariando todas as normas de segurança, passarão em grandes festas, comendo e bebendo como se não houvesse pandemia ou amanhã. Em contraste a esses, infelizmente, também haverá aqueles e aquelas que passarão sem nada para comer, visto que a fome voltou a ser uma realidade no país, fruto de um governo que visa a morte de seus cidadãos.

Em todos esses cenários é possível perceber, dado o contexto em que vivemos, a marca da vulnerabilidade. Claramente, o último grupo se mostra como mais vulnerável de todos, uma vez que não possuem, muitas vezes, nem mesmo a opção de se protegerem do vírus. Essa vulnerabilidade, por sua vez, se voltarmos para as narrativas dos evangelistas, coloca-se como marca característica da maneira como Deus se revelou à humanidade : na situação de vulnerável. O bebê na manjedoura, cercado de pessoas anônimas, sábios e pastores que observavam o tempo em que estavam, um casal pobre se refugiando em um lugar vulnerável para dar luz revelam muito bem o cenário escolhido por Deus para o anúncio de sua salvação.

A narrativa do nascimento de Jesus, tão lembrada nessa época, chama nossa atenção para aquilo que os evangelistas mostraram tão claramente : Deus se encontra junto aos vulneráveis, e tem por eles a sua preferência. Longe das pompas dos grandes palácios e das grandes riquezas, Deus se revelou entre as pessoas simples, em um lugar remoto, na improbabilidade.

Essas características da improbabilidade e da vulnerabilidade, por sua vez, não são uma invenção dos evangelistas, visto já estarem presentes em outras narrativas de nascimentos bíblicos, como, por exemplo, o de Isaque e o de Moisés. Um Deus que se revela no improvável e no vulnerável é marca do Deus bíblico e, consequentemente, marca do próprio Jesus, que de acordo com a fé cristã, é o próprio Deus encarnado.

Lembrar-se do Natal, no entanto, não tem a ver com a exaltação da pobreza, como se Deus quisesse que todas as pessoas estivessem em situações de vulnerabilidade. Discursos desse gênero só fazem sentido para os poderosos deste mundo que desejam que suas riquezas aumentem, mesmo que para isso milhões de pessoas devam morrer.

Muito pelo contrário, a mensagem do Natal visa a afirmar que mesmo na improbabilidade e vulnerabilidade, Deus se revela trazendo sua salvação da morte e a esperança de que dias melhores haverá de surgir. Se todo nascimento de uma criança é um sinal de que Deus ainda acredita na humanidade, a narrativa do Natal mostra isso em sua radicalidade. O nascimento daquele bebê em vulnerabilidade revela que, mesmo que improvável, a salvação de Deus chega ao seu povo. É na verdadeira humanidade que Deus se revela como é, no paradoxo de um amor vulnerável e, no entanto, firme; improvável e, contudo, digno de fé. Lembrar-se disso é o primeiro passo para se celebrar o Natal em perspectiva cristã.

Feliz Natal.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1556675/2021/12/ponto-de-vista-um-deus-vulneravel-e-improvavel/

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Repensar o pensar natalício para mudar que tipo de vida?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Miguel Oliveira Panão, 

professor

 

‘Aproximamo-nos do Natal e existem dois pensamentos que começam a preencher a cabeça de muitas pessoas : prendas e comida. As prendas relacionam-se com o presépio na medida em que Jesus (aparentemente) também as recebeu dos reis magos. Talvez a diferença seja que as prendas que Jesus recebeu tinham um significado especial relacionado com a sua missão neste planeta – ouro = realeza, incenso = divindade, mirra (planta medicinal) = o que iria sofrer – e será que pensamos na missão de cada pessoa nesta terra quando oferecemos algo a alguém? Por outro lado, dado o momento de reunir a família ao redor da mesa, a comida a preparar é uma preocupação em muitas casas, exceto nas que têm pouco para comer. Talvez haja nestes dois pensamentos uma oportunidade de conversão.

As prendas no contexto da época natalícia são motivo para repetidas reflexões sobre o consumismo, mas creio que essas têm servido de pouco porque todos os anos a corrida às prendas é sistemática. Ninguém acaba por fugir a essa situação, exceto aqueles que não têm possibilidades financeiras. Antigamente, no tempo da minha mãe, oferecia-se uma laranja e um chapéu de chuva de chocolate e essa era a alegria das crianças. Que sentido tem uma prenda oferecida? Pode ser o que precisamos, ou o que sabemos que o outro gosta, mas o sentido profundo de hoje que me parece valer a pena descobrir é – «quero-te bem.» Pensar no bem do outro é mais importante do que qualquer prenda que lhe possamos oferecer.

A comida é um desafio ambiental. Em países como os Estados Unidos da América, o consumo de carne no Natal tem levado as comunidades cristãs a repensar essa opção por escolhas mais ecológicas. Claro que nos países africanos, onde ter uma galinha é um luxo, ou em Portugal que habitualmente se opta pelo peixe, repensar o consumo de carne no Natal pode fazer pouco sentido. Porém, por detrás da comida está o sentido de sobriedade e, mais uma vez, em querer o bem do outro. Reduzir a quantidade de comida diminui as sobras que podem ser deitadas ao lixo, mas se se optar por uma dieta mais vegetal, contribuímos para a saúde dos familiares que nos visitam e, no silêncio ou sorriso com que acolhemos, ou nos despedimos, dizemos – «quero-te bem.»

Quero-te bem’ através de sinais e gestos concretos na época de Natal é dizer ao outro aquilo que Deus lhe diz a cada instante. As pessoas não precisam de prendas e comida, mas de carinho e manifestações de amor fraterno. Se falta o amor ao redor da mesa, sente-se mais a ausência de Deus e o sinal será a divisão experimentada entre as pessoas ou as faltas de atenção. Recuperar o espírito de Natal como a presença de Jesus entre nós, misticamente, usando o que parece mundano, significa colocar amor e sobriedade em tudo o que fazemos em relação aos outros. Sinto que se fala pouco de Deus no Natal, mas se realizarmos gestos de amor, serão esses a linguagem gestual que falará de Deus aos outros, ainda que não se dêem conta disso. Mas repensar o Natal não passa somente pelas prendas e comida.

Noutros tempos, sem televisão, eram as histórias que animavam as noites de Natal. Os mais velhos tinham a experiência de vida e a imaginação para se tornarem, naquela noite, contadores de histórias. As histórias tinham repercussões maiores do que o entretenimento, pois continham uma filosofia de interioridade que levava quem as escutava a pensa na vida profunda, antecipando os desejos de mudança no ano novo que se aproximava. Hoje fazem-se maratonas de filmes, ou de programas para entreter as pessoas, mas suspeito que o efeito não seja o mesmo que o produzido pelas histórias. Com um mundo de entretenimento nas mãos de cada pessoa, são, também, mais frequentes os momentos em que cada um pode isolar-se com o seu ecrã. Algo tem de mudar.

Ao mudar o clima com o seu comportamento, o ser humano demonstrou que a cultura tem o mesmo poder de transformação planetária que um meteorito. Tanto quanto sabemos, até ao momento, somos o universo que pensa sobre si mesmo e evolui mediante escolhas orientadas por intenções. Não somos capazes de formular leis físicas para essas escolhas, como fazemos para a queda de um meteorito. Por isso, o ser humano precisa de tomar consciência do quanto a face do planeta depende dessas escolhas. O Natal, as prendas, a comida, as histórias que partilhamos, e o ‘quero-te bem’ são apenas alguma fruta da época para meditar.

O que sinto necessidade de mudança está ao nível da vida interior.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/649/repensar-o-pensar-natalicio-para-mudar-que-tipo-de-vida/

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Prolongamento de conflitos desafia atuação de entidades e aumenta migração forçada

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Avanço do Taleban causa deslocamentos forçados no Afeganistão e, potencialmente, refugiados em outros países. (Foto: Edris Lutfi/ACNUR)

*Artigo de Ramana Rech Duarte 


‘Com a retomada do poder pelo grupo radical Talibã no Afeganistão, imagens do aeroporto de Cabul e aviões apinhados de gente desesperada para fugir do país chocaram o mundo. Mesmo antes do retorno do grupo, o país da Ásia Central já era o terceiro do mundo em geração de refugiados, atrás apenas da Síria e Venezuela, segundo dados do Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) de 2020.

A guerra na região corre desde os anos de 1970 e os conflitos nunca cessaram por completo, gerando migração forçada tanto no âmbito interno quanto externo.

Na década de 90, ficou evidente para a comunidade internacional a tendência de prolongamento de crises como essas. O fenômeno tem ampliado preocupações sobre o desrespeito contínuo aos direitos humanos e criado dificuldades para a atuação de organizações humanitárias.

O ACNUR destaca que a continuidade de conflitos agrava a migração de crise. Em 2020, foram 48 milhões de pessoas deslocadas internamente, enquanto dez anos atrás esse número era de 25 milhões. O porta-voz da agência, Luiz Fernando Godinho, disse que a continuidade dos conflitos impede que essas pessoas retornem a seus locais de origem de forma segura e voluntária.

Para o representante da ACNUR, não há organização capaz de resolver as questões humanitárias frutos da violência armada. É preciso vontade e coordenação política para declarar um cessar-fogo. ‘Essa é a única maneira de reduzir o número de pessoas refugiadas no mundo.’

Redução de danos

A vida acaba se tornando insustentável para aqueles que vivem em regiões conflituosas. Segundo o professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, Daniel Rio Tinto, a guerra se difunde na comunidade local e molda todos os aspectos da vida social e política.

Comércios saqueados, ocupação de escolas e hospitais e queima de plantações passam a ser recorrentes, ‘o que torna difícil e pouco prático reconstruir essa infraestrutura ou retomar as atividades normais’, explica Tinto.

A dilatação de guerras está associada a uma maior propensão de conflitos dentro de um mesmo Estado. Essas crises, geralmente, têm menor avanço militar em função do objetivo político e, por isso, costumam se esticar. Ainda que não sofram violências físicas, os civis vivem sob ameaças existenciais, como efeito colateral dos conflitos. 

Nesse cenário de crise incessante, as organizações internacionais buscam minimizar os efeitos para a população ao oferecer serviços básicos, como alimentação, moradia e atendimento em saúde. Embora seja o mínimo, a atuação das entidades humanitárias pode fazer a diferença entre a vida e a morte das pessoas da região.

Prolongamento de conflitos

O chefe da Delegação Regional do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) para o Cone Sul, Alexandre Formisano, afirma que a extensão de conflitos por décadas é o principal desafio para a organização. As violências armadas costumavam durar entre dois a quatro anos, período no qual o CICV trabalhava de forma emergencial. 

Isso [prolongamento de conflitos] está nos forçando a ter uma reflexão mais profunda sobre como trabalhar em contextos de violência prolongada, em parceria com outros atores e garantir mais a sustentabilidade dessas ações’, comenta Formisano. 

Uma pesquisa do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS) publicada em maio de 2020 indica que 60% dos conflitos armados atuais persistem por mais de uma década. Na maioria das vezes, eles incluem a proliferação e sofisticação de grupos armados não-estatais. 

André Zuzarte, vice-coordenador do Centro de Proteção a Refugiados e Imigrantes (CEPRI), lembra que o recrutamento da população civil para a luta armada retroalimenta esses conflitos. Hoje, as milícias detém grande poder de fogo e, diversas vezes, são financiadas por atores estrangeiros com interesses no país em crise.

Essas regiões já são bastante castigadas por governos corruptos, a pobreza, falta de infraestrutura básica, e a guerra vem destruir o mínimo que existia’, diz Zuzarte. ‘Muitos veem a adesão a grupos paramilitares como a única saída’, completa.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://migramundo.com/prolongamento-de-conflitos-desafia-atuacao-de-entidades-e-aumenta-migracao-forcada/

sábado, 18 de dezembro de 2021

Deus não é indiferente

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Capa da obra 'A Peste', de Albert Camus

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

‘Há algumas semanas, falamos sobre o primeiro sermão do padre Paneloux, na obra A Peste de Albert Camus. Neste texto, pretendo falar sobre o segundo sermão desse padre. Tal sermão é marcado pelo presenciar de Paneloux da morte de uma criança que foi acometida pela peste. Esse fato é o motivador da mudança de tom e perspectiva do padre jesuíta.

Em seu segundo sermão, alguns pontos se mostram bastante contrastante em relação ao anterior. Em primeiro lugar, o vós é substituído pelo nós. Essa simples mudança pronominal revela também uma mudança de atitude frente aos seus concidadãos. Ao dizer o nós, o padre se coloca também como alguém que é sofredor e responsável junto com sua comunidade. O trecho abaixo deixa isso claro :

Meus irmãos, é preciso sermos aquele que fica (...) Meus irmãos, disse por fim Paneloux, anunciando que ia terminar, o amor de Deus é um amor difícil. Ele supõe o abandono total de si mesmo e o desdém da sua pessoa. Mas só Ele pode apagar o sofrimento e a morte das crianças, só Ele, em todo o caso, pode torná-los necessários, pois é impossível compreendê-los, e não podemos senão desejá-los. Eis a difícil lição que queria compartilhar convosco. Eis a fé, cruel aos olhos dos homens, decisiva aos olhos de Deus, de que é preciso aproximarmo-nos. Perante esta imagem terrível, é preciso que nos igualemos. Neste cume, tudo se confundirá e se igualará, a verdade brotará da injustiça aparente (CAMUS, s/d, p. 246,248).

No segundo sermão é possível perceber a marca da caridade. Enquanto no primeiro havia a necessidade de explicação da peste e saber dizer sua causa e seus motivos, nesse, a postura é mais serena frente a ela. Paneloux tem claro que algumas coisas são inexplicáveis aos olhos de Deus, como a morte de uma criança. Nesse momento, questiona sobre a compensação eterna frente ao sofrimento momentâneo desse menino que sofre e morre. Chega a dizer que um cristão não diria um discurso assim para o menino que está a morrer, uma vez que o Mestre sofreu na carne e na alma a angústia e a dor humanas, sacrificando tudo no maior dos martírios de seu tempo.

Em certo momento de seu sermão, Paneloux interroga aos seus ouvintes : ‘Meus irmãos, a hora chegou. É necessário crer em tudo ou negar tudo. E quem, entre nós, ousaria negar tudo?’ (CAMUS, s/d, p. 216).

Paneloux lança o grande desafio, que é também o desafio do evangelho, do salto de fé. Esse salto, que exige o lançar-se inteiramente, em total entrega em resposta à radicalidade do amor de Deus, mesmo sem compreender quais são seus planos. Esse aceitar tudo, porém não em simples fatalismo, porém como fatalismo ativo, implicaria ver qualquer indiferença como criminosa.

Agora, a conclamação é à responsabilidade pelo outro, como fruto do entregar-se totalmente a Deus, aceitando tudo em oposição ao negar tudo. No primeiro sermão, percebemos que a condenação vinha porque o Deus apresentado por Paneloux não aceitava ser ignorado e se sentia amado recebendo a visita de seu povo. Dessa forma, não aceitava a indiferença, antes essa era a causa de sua condenação por meio da peste, ou seja, havia a exigência da reciprocidade : porque eu amo, você não pode ser indiferente a esse amor. Se o for, não posso aceitar e não tenho outra escolha a não ser condená-lo a fim de que se arrependa.

No segundo, porém, é o lançar-se diante do inexplicável de Deus, do seu amor infinito, em ato de fé, que gera em nós a atitude de não ser indiferente, uma vez que Deus é sempre amor e nunca indiferente.

Ao nos assemelhamos àquele a quem amamos, ficar e se importar se torna a escolha radical frente ao mal do mundo. É o ver de longe que nos fala Hebreus 11, contemplando com os olhos da fé, que nos faz ‘caminhar para frente, na sombra, um pouco às cegas, e tentar fazer o bem. Quanto ao resto, necessário esperar, entregando-nos a Deus, aceitar a morte das crianças, não buscar refúgio’ (CAMUS, s/d, p. 216).’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1555510/2021/12/deus-nao-e-indiferente/

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Catequistas instituídos, exorcismo e outras tarefas

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Aula de Catequese em pequena comunidade cambojana

*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Agora é pra valer. Com o rito de instituição de ministério do catequista formalizado, agora resta aplicá-lo nas paróquias. Caberá ao bispo decidir quem poderá receber esse reconhecimento ou não. O documento é claro.

Por outro lado, será um desafio convencer os 'leigos clericalizados' que tal reconhecimento é um modo de reforçar a importância desse serviço, não de elevá-lo ao ‘grau’ de sei-lá-o-que. E aquela velha mania de hierarquizar tudo; até o que, pela sua própria natureza, não entra nos moldes de nenhum ‘organograma’ humano.

Jesus Cristo foi o primeiro catequista. Era um mestre de vida que, com seu testemunho, formou discípulos. Portanto, o modelo do catequista é o próprio Cristo.

E os catequistas, por sua vez, são chamados a criar, a partir da sua missão, uma sequela Christi - pessoas sensíveis à voz de Deus, que o coloquem acima de tudo em suas vidas, e mais : que façam do cristianismo um ideal de vida, não uma ideologia que baila à mercê das modas político-ritualísticas de turno.

O ministério do catequista nunca foi algo marginal ou considerado de 'segunda categoria' dentro da história do cristianismo. E quando o Papa Francisco o formaliza, simplesmente faz jus à história dessa prática.

Basta nos recordarmos do que foi o catecumenato na Igreja primitiva, principalmente entre os séculos II e V. Essa preparação para o sacramento do batismo e do crisma era dividida em etapas : primeiro, o candidato era apresentado para a comunidade; depois, participava de uma formação, que poderia durar até 3 anos; por fim, era feito um escrutínio para avaliar se a conduta da pessoa correspondia aos princípios da religião. Caso houvesse a aprovação, o catecúmeno poderia se preparar para receber os sacramentos já na quaresma seguinte.

A carta de Agostinho ao diácono Deogratias, a De catechizandis rudibus, escrita em torno de 400 d.C, traz uma metodologia de ensino feita para os 'rudes', ou seja, àqueles que se preparavam para o batismo. Nada mais era que uma lista de orientações ao instrutor (catequista) sobre como introduzir o neoconvertido aos conteúdos básicos da fé.

Ensinar é para poucos. E despertar interesse pela religião nos tempos de hoje é mais desafiador ainda.

E o Papa Francisco, sabendo que a catequese é a ponta de lança de qualquer projeto de evangelização, dá a ela o lugar devido. E mais : oferece todos os subsídios para que esse serviço, no dia a dia das paróquias, cresça em qualidade.

No documento sobre o rito da instituição do ministério, publicado esta semana pela Congregação para o Culto Divino, mais uma prova de que Francisco não quer que o protagonismo dos leigos se reduza a um slogan, como tem acontecido em muitos lugares. Mas que, concretamente, esses agentes de pastoral assumam a tarefa de 'repropor' o cristianismo ao homem moderno. Tanto que o Vaticano orienta que seminaristas recém-aprovados para o diaconato e freiras evitem assumir a função, justamente para dar espaço ao laicado.

O prefeito da congregação, Dom Arthur Roche, em carta aos presidentes das conferências episcopais, surpreendeu ao falar que o papel de catequista não está restrito ao ensinamento, mas trata-se de uma verdadeira diaconia que engloba o cuidado para com os doentes, a coordenação de iniciativas pastorais e o auxílio direto aos sacerdotes.

Tanto que, num trecho, recorda uma faculdade já prevista pelo rito de iniciação de adultos, e que pode ser exercida por catequistas : a realização de exorcismos menores, caso o bispo considere oportuno. Na Igreja Católica, há dois tipos de exorcismo : os solenes ou maiores, aplicados em caso de possessão (que só podem ser presididos por um bispo ou um padre autorizado) e os menores, que são orações de libertação voltadas especialmente para o catecúmenos.

Ministério dos leitores, acólitos e catequistas para todos os leigos, enquanto um sínodo sobre a sinodalidade reflete, justamente, o papel de todos os batizados na Igreja Católica. Mais católico que isso, impossível. E há quem diga que Francisco não seja católico. Certamente, quem faz essa afirmação, nem sabe o que é catolicidade.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1555886/2021/12/catequistas-instituidos-exorcismo-e-outras-tarefas/