quarta-feira, 31 de março de 2021

Um Jesus para chamar de seu

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

‘A qual Jesus seguimos? Essa pergunta pode parecer um tanto quanto sem sentido. Afinal, qualquer pessoa que se diz cristã tende a afirmar que segue ao Jesus que foi considerado Cristo no Novo Testamento, o Filho de Deus, crucificado e ressuscitado pelo Pai no terceiro dia.

Dogmaticamente, a resposta está corretíssima. Mas, será que o seguimento que se faz é desse Jesus que foi crucificado e ressuscitado, que andou por toda parte fazendo o bem e libertando os que eram oprimidos pelo diabo, como afirma Pedro no livro de Atos, ou de um Jesus que foi transformado num senhor que está acima de todos e, portanto, condena aos que não o obedecem? Ou ainda, alguma outra modalidade de Jesus que se adequa melhor aos anseios de cada um?

Ao longo da história do cristianismo, diversas imagens de Jesus foram criadas. Com o passar do tempo, quanto mais afastado do contato real com a personagem histórica Jesus de Nazaré, ou até mesmo com os apóstolos que viveram com Jesus, mais essa imagem foi sendo distorcida, chegando a um ponto, principalmente no século 18, de se desconfiar do que era falado de Jesus pela Igreja, uma vez que tal discurso não se coadunava com os Evangelhos. As buscas do Jesus histórico começam de maneira mais sistemática com os trabalhos de Reimarus a partir dessa inquietação.

Ainda em nossos dias é possível perceber que são diversas as imagens de Jesus. Há um leque de possibilidades para que cada pessoa escolha qual Jesus deseja seguir. Bem na linha de um capitalismo feroz, também o seguimento de Jesus entrou em oferta. Há um Jesus próprio para cada pessoa, que se adequa perfeitamente ao tipo de vida que tal pessoa deseja ter.

Se determinada pessoa acredita que não há nenhum problema em acumular diversas riquezas na terra, não se importando com seu próximo, ou até mesmo, sonegando imposto, desobedecendo as leis, a fim de lucrar mais, há diversos discursos que se dizem cristãos que adequam Jesus a esse tipo de pessoa. Basta olhar os teólogos e teólogas da prosperidade, que justificam os resultados financeiros desses tipos de conduta como sendo a benção de Deus que alcança os que devolvem o dízimo.

Ainda, se determinada pessoa deseja um Jesus miliciano, que toma em armas, incentiva que elas sejam usadas para ‘promover segurança’, destrua terreiros e lugares de cultos de religiões de matrizes africanas por considerar ‘lugares satânicos’, também essa pessoa encontrará uma teologia que atenda a isso. Basta olhar a modalidade dos traficantes evangélicos, ou dos milicianos que se batizam no Jordão, ou de pastores que chamam jovens para ‘fazer a obra do Senhor’ contra os terreiros, ou ainda, aqueles e aquelas que pegam o texto que Jesus fala para pegar uma espada e usa isso como justificativa para armar a população.

Esses pequenos exemplos mostram que é possível falar que se segue a Jesus de Nazaré sendo que, na verdade, somente o adequa ao modo de vida que se deseja ter. No entanto, se voltarmos aos Evangelhos, em sua mensagem central (porque, nesse caso, mesmo apresentando perspectivas diferentes, todos são unânimes no ponto central da mensagem de Jesus) percebermos que não é Jesus que se adequava ao modo de vida dos que vinham a ele, mas era demandado do que desejava segui-lo que se adequasse ao modo de vida de Jesus.

Que modo de vida era esse? Do amor ao próximo, da busca do bem, da não violência, da abertura ao diferente, da não perseguição aos que criam de outra maneira, da não hipocrisia etc. Em outras palavras, o modo de vida de Jesus era o amor sem medida que leva, necessariamente, à denúncia das estruturas de morte que persistem na sociedade, e não raras as vezes, à morte daqueles e daquelas que lutam pela justiça. A crucificação de Jesus, portanto, é resultado de sua vida de amor e luta contra um Império opressor. Como consequência, morreu como bandido aos olhos desse Império. Deus, porém, o ressuscitou dentre os mortos, confirmando que a morte não tem a última palavra, ao mesmo tempo, confirmando que a vida de Jesus é a vida desejada por Deus para nós.

Diante disso, a pergunta : ‘a qual Jesus seguimos?’ deve ser respondida diariamente. Se simplesmente adequamos Jesus ao nosso modo de vida, então não somos nós que o seguimos, mas ele que nos segue.

Seguir a Jesus não é o pertencimento a um clube, mas um compromisso de vida de denunciar e lutar contra as estruturas de morte que persistem em nosso mundo. Sem isso, Jesus se tornou somente mais um produto, dentre tantos que consumimos atualmente.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1507659/2021/03/um-jesus-para-chamar-de-seu/

segunda-feira, 29 de março de 2021

A ecologia da vocação: Crises e oportunidades

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Susana Vilas Boas, LMC

(Laïcs missionnaires Comboniens)

 

‘A vocação desafia-nos desde o primeiro momento em que pensamos nela : seja pelo próprio conceito de vocação, seja por toda a dinâmica própria da vocação. Por um lado, a vocação é chamamento de Deus; por outro lado, a vocação implica o próprio ser que é chamado. O conceito «vocação» remete para a relação íntima que brota do encontro de Deus com a plenitude da autenticidade do ser humano. Por seu turno, a dinâmica da vocação dá-se como «caminho»; um caminho que nem sempre é claro e que, sendo pessoal, nunca poderá ser percorrido de modo individual (individualista).

Quando olhamos para a realidade da vocação e deparamos com os desafios do discernimento e percurso vocacional, somos como que impelidos para uma ânsia desenfreada de desejar tudo : querer viver uma vida de entrega e dádiva aos outros; querer viver uma vida mais dedicada à oração; querer realizar determinada profissão; querer viver perto da família; querer realizar grandes feitos além-fronteiras; etc. A pluralidade de caminhos pode tornar-se num ruído bloqueador do discernimento e, sem darmos por isso, acabamos por ficar surdos a nós mesmos, a Deus e a todos quantos nos poderiam ajudar neste caminhar. Muitas vezes até, caminhos conciliáveis parecem-nos impossíveis de percorrer, como se tudo se jogasse entre o ter de escolher só uma coisa ou não poder escolher tudo. Ora, a vocação tem a arte de, não apenas abrir portas à plena realização humana, como também ser ponto de encontro com Deus e com toda a Humanidade. Assim, a dimensão do bem comum está sempre presente, seja qual for a vocação. Se pensarmos no capítulo 12 da Primeira Carta aos Coríntios, S. Paulo torna evidente, pela analogia do corpo, que todos temos dons diferentes, todos somos diferentes, mas todos temos algo de específico que permite contribuir para a saúde de todo o corpo. No mesmo sentido, o Papa Francisco recorda que «no seio da sociedade floresce uma variedade inumerável de associações que intervêm em prol do bem comum, defendendo o meio ambiente natural e urbano» (Laudato Si’, n.º 232), sendo que não temos de desesperar pela ideia do querer ser tudo, como se essa fosse a nossa vocação! Ao contrário, há que banir todos os traços do desespero para deixar florir aquilo que somos e aquilo que autenticamente desejamos ser. Ao permitir-nos ser parte de um todo (abandonando a pretensão de ser super-herói e de se prescindir de tudo e de todos), contribuindo, segundo a especificidade do que somos, não apenas para a nossa plena realização, mas também para uma maior humanização do mundo em que vivemos e do qual fazemos parte. 

Vocação : para lá das crises

Muitas vezes, as dificuldades que enfrentamos face ao discernimento vocacional são dificuldades fictícias, sombras enormes de pequenas formigas que encontraremos no caminho. Ao fazermos um discernimento acompanhado, vamo-nos libertando de fantasmas que não existem e que ofuscam a realidade quando olhamos o presente e o futuro. Em Deus, não precisamos de trabalhar em várias frentes : tentar ser feliz; procurar viver uma vida de santidade; buscar a plenitude do que somos; etc. Tudo isto faz parte de um mesmo caminho : o caminho da nossa vocação. Deus não nos chama a uma esquizofrenia de vida! Antes, discernir e viver a vocação é responder afirmativamente às verdades mais profundas do que somos e do que ansiamos ser! Como nos lembra o papa, «quando alguém reconhece a vocação de Deus [...], deve lembrar-se que isto faz parte da sua espiritualidade, é exercício da caridade e, deste modo, amadurece e se santifica» (Laudato Si’, n.º 231). O «sim» à vocação é único (e diário), mas as suas consequências são incontáveis (mais numerosas que as estrelas do céu ou os grãos de areia da praia).

Os nossos medos colocam-nos em situações contrárias ao que somos e cegam-nos quanto à amplitude da vocação : não estamos condenados a ter/viver determinada vocação, estamos abençoados com uma vocação – uma bênção que é dada e apenas aguarda ser descoberta e vivida. Dificuldades? Claro que sim! Mas, como diz a minha avó : «Deus dá o frio conforme a roupa!» Por outras palavras, os desafios podem ser grandes e as circunstâncias até podem ser adversas à vocação, mas não estamos sós neste caminho e Deus providencia sempre – no momento certo – as soluções e as ferramentas de que precisamos para seguir em frente. Se fizermos a nossa parte, Deus deixará de fazer a Sua?! Claro que não! Por isso, nada de desesperos! Ao contrário, a vocação é sempre horizonte de Esperança! 

Vocação : além dos medos!

No Movimento Perpétuo (1956), António Gedeão alerta para os medos face ao desconhecido («Onde Sancho vê moinhos / D. Quixote vê gigantes»). Também a nossa história de Portugal se faz à luz do medo do desconhecido, mas não se fica por aí! Somos os grandes descobridores, não porque nos deixamos vencer pelo medo, mas porque convertemos o medo em esperança (o Cabo das Tormentas tornou-se Cabo da Boa Esperança).

O medo nunca é gerador de vida e a vocação é sempre fecunda! Assim, ousar viver verdadeiramente é ousar vencer o medo. Ora, isto não se faz de ânimo leve (simplesmente não seria possível fazê-lo), nem pode ser assumido de maneira irresponsável (isso seria imprudência). Antes, isto alerta-nos para o facto de que a vocação é sempre possível, porque o medo pode sempre ser vencido : pela nossa vontade, mas também pela fé e ação de Deus e daqueles que nos ajudam no caminhar vocacional. 

Agarrar a oportunidade... de viver autenticamente!

«Viver a vocação [...] não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa» (Laudato Si’, n.º 219). Fechar as portas à vida não é opção! A vida é cheia de oportunidades e cheia de possibilidades. Os nossos entraves, bloqueios, medos e dificuldades de ver mais longe do que as circunstâncias que nos rodeiam não derivam de impossibilidade vocacional, mas da impossibilidade de viver a vocação – desde o início do discernimento – como algo isolado, individual e tenebroso.

Por exemplo, atualmente, a pandemia parece ter vindo dificultar a vida de muita gente e, aos mais diferentes níveis, temos vindo a sofrer as consequências tanto da doença, como das medidas que temos de adoptar para evitar a sua propagação. Dir-se-ia que este não é o tempo favorável para nada, mas... será assim? Nestes tempos conturbados, muitos são os que, como nunca, dão a vida para que outros vivam, para que outros tenham o que comer e o que vestir. Certamente, muito ainda há para fazer, mas não podemos fechar os olhos à bondade que vai irradiando por meio do desespero social em que vivemos. O que tem isto a ver com a vocação que queremos discernir? Tudo! Este tempo não é Um «vazio», nem um intervalo na nossa vida. Este é o «momento presente» e, por isso mesmo, é o tempo favorável para a descoberta, para encontrar quem, mesmo com todas as restrições a que estamos obrigados, nos acompanhe e nos ajude a ver além daquilo que conseguimos alcançar com a nossa pequena perspectiva! ’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://www.combonianos.pt/alem-mar/artigos/8/482/a-ecologia-da-vocacao-crises-e-oportunidades/

domingo, 28 de março de 2021

Crises: entre o desespero e esperança

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

‘Uma das características comuns presentes nos momentos de crise é a sensação de que ela nunca passará. Cada dia é demorado demais, uma semana nos dá a impressão de um mês e perdemos essa noção de quanto tempo realmente já se passou desde que determinada crise começou.

Nesse cenário, é comum que várias pessoas sucumbam ao desespero e à desesperança por não vislumbrarem nenhuma saída possível naquele momento em que desejariam já tê-la em mãos. Embora ambas as palavras, etimologicamente, queiram dizer a mesma coisa, em nossa linguagem ordinária se tende a colocar o desespero como sendo algo mais urgente, enquanto a desesperança seria uma atitude mais passiva. No entanto, essas duas palavras derivam do latim : de, ‘sem’; sperare/esper, ‘esperança’, de maneira que o desespero é característica de todo aquele que perdeu a esperança em algo.

Ao mesmo tempo, a experiência também nos mostra que uma das características do desespero é buscar soluções rápidas e, não dificilmente, buscar atalhos para resolução das questões que nos afligem. Assim, não é difícil observamos que são diversas as pessoas que buscam soluções milagrosas para as crises e, muitas vezes, na ânsia de encontrá-las rapidamente, tomam decisões sem muita reflexão e acabam encontrando mais problemas do que soluções.

Que tais circunstâncias sejam pratos cheios para charlatões da fé nos parece claro. Uma vez identificada, à pessoa vulnerável e que está disposta a dar tudo o que tem para sair de determinada crise, basta oferecer uma solução espiritual e que conta com o auxílio divino mediante o pagamento de alguma ‘oferta de amor’, ‘ato de fé’, ou qualquer outro nome que remeta à uma relação com alguma divindade, e pronto. Consegue-se uma nova fonte de exploração e, quiçá, um prosélito.

Por outro lado, os momentos de crises também podem se tornar oportunidades de grandes reflexões e autoconhecimento para aqueles e aquelas que conseguem, apesar de tudo, fazer isso. Olhar para dentro, procurar as motivações, perguntar-se honestamente sobre o porquê de determinadas posturas e comportamentos são questões comuns dos momentos de crise que, bem direcionados, podem resultar numa melhora considerável na qualidade de vida, e até mesmo, possibilitar vislumbrar e planejar a vida após o período de crise. Nesse sentido, a ajuda psicológica, oferecida por profissionais, pode cooperar muito.

Ao contrário do que muitos podem pensar, crises existenciais não são sinais de falta de fé, ou de afastamento de Deus e, muito menos, de fraqueza espiritual ou psicológica. Muito pelo contrário, nos textos bíblicos há inúmeros exemplos de profetas, reis, juízes que entraram em crises (Elias, Jeremias, Jonas, Davi, Ezequias, Gideão, somente para citar alguns). Como mostram as escrituras, nenhum deles foi condenado por isso. Antes, Deus se colocou ao lado dessas pessoas, instando para que fossem fortes, resistissem, recobrassem a esperança, uma vez que a crise não é para sempre e, uma hora, ela haveria de passar.

Nesse sentido, os apocalipses bíblicos (Daniel e João) trazem essa mensagem de esperança de que a perseguição, a dor e o sofrimento não são sem fim e, mesmo que passemos por elas, na perspectiva cristã, Deus não se mostra distante, mas caminha conosco nos fortalecendo e nos motivando a continuarmos firmes.

Sofrer com as crises é algo humano e não há nada de errado com isso. Na perspectiva cristã, cremos que o momento que passamos não é para sempre e que Deus não está acima de todos, como clamam os negacionistas que se dizem cristãos, mas entre nós, na caminhada. Esse é o motivo de nossa esperança.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1506583/2021/03/crises-entre-o-desespero-e-esperanca/

sexta-feira, 26 de março de 2021

O silêncio dos enterrados

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Alfredo J. Gonçalves, CS,

vice-presidente do Serviço de Proteção ao Migrante (SPM)

 

‘Um ano de pandemia. Um ano de intenso combate a esse inimigo silencioso, invisível e letal. Um ano em que um exército inumerável de profissionais de saúde teve que tomar decisões que deixaram esses soldados, a si próprios, com feridas abertas talvez para o resto de suas vidas. Um ano de convívio diário e impactante com o fim trágico de parentes e amigos. Um ano marcado por mais de 300 mil vítimas fatais. No fundo, uma batalha tão mortífera como poucas o têm sido ao longo da história humana.

Silêncio de uma ausência, de um espaço vazio, de um vácuo sem fundo, de um nome e de um rosto que para sempre partiram, de uma história brutal e precocemente interrompida. Silêncio dolorosamente estridente, quase ensurdecedor, como nos faz recordar a canção em homenagem a Jacob do Bandolim, composta pelo poeta Sérgio Bittencourt e imortalizada na voz de Nelson Gonçalves: ‘Naquela mesa ele sentava sempre / E me dizia sempre o que é viver melhor / Naquela mesa ele contava histórias / Que hoje na memória eu guardo e sei de cor / Naquela mesa ele juntava gente / E contava contente o que fez de manhã / E nos seus olhos era tanto brilho / Que mais que seu filho / Eu fiquei seu fã /Eu não sabia que doía tanto / Uma mesa num canto, uma casa e um jardim / Se eu soubesse o quanto dói a vida / Essa dor tão doída não doía assim / Agora resta uma mesa na sala /E hoje ninguém mais fala do seu bandolim / Naquela mesa 'tá faltando ele / E a saudade dele 'tá doendo em mim’.

Passado mais de um ano desde que o novo coronavírus desembarcou em território brasileiro, quantas ‘casas e jardins’ desertos, quantas ‘mesas num canto’, quantos sofás órfãos na sala, quantos ‘bandolins’ abandonados, quanta dor ‘tão doída’, quantas saudades sem fim? E que falta fazem aquelas histórias contadas e recontadas na roda íntima da família – gratuitamente, sabiamente, calorosamente – sobretudo quando restou apenas o eco sombrio e desolado das palavras silenciadas! Por que se apagou a luz e o brilho que ‘nos seus olhos era tanto’, deixando espalhadas ao vento as cinzas invisíveis de uma catástrofe? É como se até mesmo a memória se desvanecesse com a separação do ente querido. Nem sequer tivemos o conforto de contar com um velório decente e uma despedida digna. Partiu solitário, dividindo a tristeza e a solidão com os membros da família enlutada e destroçada.

Um golpe mortal os separou para sempre, povoando os cemitérios com os cenários mais macabros

Guerra que mata e mutila de forma aleatória e descontrolada, mas em particular abrevia a vida de não poucos anciãos ou enfermos mais vulneráveis. Assim se foram Fulano, Sicrano, Beltrano – nomes que simbolizam a tantos que riram, choraram, trabalharam, lutaram e sonharam nos mesmos caminhos que juntos trilhamos, mas que perderam o combate para o Covid-19. Assim permaneceram as famílias a quem os falecidos pertenciam. Um golpe mortal os separou para sempre, povoando os cemitérios com os cenários mais macabros, onde reina o silêncio retumbante dos enterrados.

Junto a esse silêncio – de ausência, vazio e solidão – cresce também uma voz surda e muda, mas nem por isso menos crítica e consciente do desgoverno das autoridades brasileiras. Desgoverno que não se refere somente à área da saúde. Ao contrário, reflete-se no desmonte sistemático e não raro irreversível de políticas públicas construídas a custo nas últimas décadas. Nesse desmonte, não seria difícil elencar, por exemplo, a questão do meio ambiente, das relações exteriores, da segurança dos cidadãos, da educação básica e superior, da ciência, cultura e pesquisa. Daí a ira viva, ativa e subterrânea que vai estendendo suas raízes pelo tecido esgarçado de uma sociedade dividida e fragmentada. Parafraseando o escritor estadunidense John Steinbeck, prêmio Nobel da literatura (1962), na escuridão úmida do solo, a revolta faz florescer e amadurecer com força ‘as vinhas da ira’, prontas para a vindima. Não importa quando virá a colheita, mas lentamente os brotos vão rebentando e se abrindo para o ar livre, o céu azul e a luz do sol.

Se é verdade que as derradeiras décadas do século XX representaram uma época de colheita, e se é verdade que uma geração dificilmente é premiada com mais de uma safra, também é certo que a semeadura prossegue laboriosa e conscientemente.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/periscopio/2308/2021/03/o-silencio-dos-enterrados/

terça-feira, 23 de março de 2021

Moçambique: aumento de casos de Covid, Cólera e ataques terroristas

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo da reportagem local Fundação AIS


‘Novas histórias de terror vindas de Moçambique chegam à Fundação Pontifícia ACN, quase semanalmente, mas com pouca atenção da comunidade internacional. De fato, o país do sudeste da África está sofrendo uma catástrofe humanitária atrás de outra. Desde 2017, Moçambique tem sido alvo de inúmeros ataques de jihadistas. Os objetivos perseguidos pelos grupos terroristas não são conhecidos, mas observadores sugerem uma mistura de interesses econômicos, políticos e religiosos.

Há relatos de decapitações em massa e violência inimaginável contra a população civil. O governo dos EUA classificou o grupo como um desdobramento do ‘Estado Islâmico’ (EI) e como uma organização terrorista global e impôs sanções. Dada a obscuridade dos protagonistas e seus apoiadores, no entanto, estas sanções não devem surtir efeito.

Enquanto o terrorismo jihadista continua a corroer a região ao longo da fronteira com a Tanzânia, aumentando ainda mais a miséria dos refugiados, o país também está sendo agredido pela pandemia da COVID-19. ‘Embora a primeira onda tenha sido relativamente leve, o número de pessoas infectadas disparou desde janeiro.  É alarmante como o número de mortes aumentou’, disse o responsável por projetos da ACN para a região, Ulrich Kny. Além disso, a cólera também está se espalhando devido às condições precárias de higiene nos campos de refugiados, que não têm acesso à água limpa.

Mais de 600 mil refugiados

Centenas de milhares de refugiados das partes norte do país encontraram refúgio na capital da província de Cabo Delgado e suas comunidades vizinhas. Segundo a ONU, até o final de 2020 havia quase 670.000 pessoas deslocadas.

Ataques foram realizados em nove dos 17 distritos da província de Cabo Delgado. A violência é direcionada a toda a comunidade, não apenas aos cristãos, relatou a Irmã Aparecida Ramos Queiroz, responsável pela coordenação de projetos de auxílio na diocese de Pemba.

Tanto instituições muçulmanas quanto cristãs estão sendo atacadas. Nós, cristãos, não somos o alvo principal dos insurgentes. Várias igrejas foram completamente destruídas; seis das 23 paróquias da diocese de Pemba estão desertas – a situação é tão instável que a maioria dos membros da paróquia fugiu. Apesar disso, uma irmã religiosa e um jovem vigário paroquial ainda estão trabalhando em uma das aldeias abandonadas da paróquia para servir aquelas pessoas que são muito pobres até mesmo para fugir’, disse a Irmã.

Cuidados religiosos com os refugiados

O governo começou a reassentar os refugiados de Pemba para outras partes do país. ‘Muitos encontram abrigo com outras famílias, outras em novos assentamentos de refugiados. A maioria dos padres e irmãs das áreas de conflito fugiram com membros de suas paróquias. Eles agora tentam continuar seu trabalho pastoral entre os refugiados de suas paróquias’, diz Ulrich.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2021/03/23/mocambique-aumento-de-casos-de-covid-colera-e-ataques-terroristas/

domingo, 21 de março de 2021

Plataforma de streaming quer evangelizar com conteúdos católicos

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo da Redação Central da revista ACI Digital 


‘Será lançada no Brasil uma nova plataforma de streaming por assinatura com conteúdo católico. Com o nome de Magnificat, tirado da oração de Nossa Senhora proferia quando ela visitou Santa Isabel, o serviço tem como proposta ‘evangelizar através da arte’ e surgiu após momentos de oração de um de seus fundadores.

Manoel Calaça Júnior, sócio fundador Magnificat, explicou a ACI Digital que a ideia deste projeto ‘veio como uma inspiração de Nossa Senhora’ durante um período de retiro espiritual em uma comunidade católica de Goiânia (GO), em 2020.

Calaça conta que sempre ‘buscava alguns conteúdos católicos, filmes, documentários e via que, aqui no Brasil, a quantidade de material disponibilizado era muito pequena e a qualidade nem sempre tão boa’.

Foi durante a ‘oração diária que fazia todas as noites na capela da comunidade’ que ele pensou : ‘por que não uma plataforma totalmente diferente, 100% católica, sempre buscando a evangelização como item primário?’. Assim ‘surgiu a ideia’ da plataforma para oferecer conteúdo on demand.

A Magnificat é uma parceria da Caikron Tecnologia, que está desde 2010 no mercado tecnológico de streamings e aplicativos, e a Kolbe Arte Produções, especialista em conteúdo católico.

Assim como a Kolbe, a Caikron tem a Igreja Católica como base, ou seja, a fé em Nossa Senhora, a fé em Jesus, a fé da Igreja Católica mesmo’, ressaltou Calaça.

De acordo com ele, o novo serviço de streamimg quer ‘mostrar a nossa religião no Brasil e no mundo também’.

A plataforma anuncia mais de 120 horas de conteúdo disponíveis em mais de 50 títulos com materiais dublados e legendados. Entre os conteúdos estarão filmes, séries, lives, shows, cursos, músicas, podcasts e livros e o acesso poderá acontecer por celular, computador e televisão.

O pré-lançamento de Magnificat será no dia 25 de março, festa da Anunciação, quando será disponibilizada uma programação especial com podcast, clipe, documentário e filme.

Em julho, ocorrerá o lançamento, durante o Mutirão de Comunicação (Muticom), evento promovido pela Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Para mais informações sobre Magnificat e o pré-lançamento, basta se cadastrar no site da plataforma.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://www.acidigital.com/noticias/plataforma-de-streaming-quer-evangelizar-com-conteudos-catolicos-77312


sexta-feira, 19 de março de 2021

7 armas poderosas para o combate espiritual

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Philip Kosloski,

escritor e designer gráfico

 

‘São Paulo escreveu em sua carta aos Efésios : ‘Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares’ (Efésios 6, 12).

É uma verdadeira guerra espiritual, e o diabo deseja muito nos afastar de Deus, para nos conduzir à ruína eterna.

Aqui está uma lista de 7 armas poderosas para o combate espiritual que a Igreja nos incentiva a usar.

1. Confissão de pecados

A confissão de pecados é a principal maneira que temos de pôr fim à nossa vida de pecado e começar um novo caminho. Não é por acaso que o diabo tentou implacavelmente assustar São João Vianney para longe de ouvir as confissões de pecadores obstinados.

2. Receber a Sagrada Comunhão

O sacramento da Sagrada Eucaristia é ainda mais poderoso para afastar a influência do diabo. Isso faz todo o sentido, pois a Sagrada Eucaristia é a presença real de Jesus Cristo, e os demônios não têm absolutamente nenhum poder diante do próprio Deus.

3. Entregar-se à Virgem Maria

Segundo o exorcista italiano pe. Sante Babolin, ‘enquanto invocava com insistência a Santíssima Virgem Maria, o diabo respondeu-me : ‘não aguento mais Aquela (Maria) e também não te suporto mais.’’

4. Colocar-se sob a intercessão de São José

Pe. Donald Calloway afirma essa conexão, mostrando como São José desempenhou um papel central na vida do Beato Bartolo Longo, um ex-devoto do demônio. Calloway explica que Bartolo tornou-se ‘muito dedicado a São José, orava a ele todos os dias e gostava particularmente de seu título de ‘Terror dos Demônios’. Bartolo tinha um amor tão grande por São José dizia a todos para recorrer ao santo em sua luta contra tentações de qualquer tipo.’

5. O Escapulário

De acordo com uma história, um dia o escapulário de São Francisco caiu. Antes que ele recolocasse, o diabo uivou : ‘tire este hábito que rouba tantas almas de nós!’ Então Francisco fez o diabo admitir que há três coisas os demônios mais temem : ‘o Santo Nome de Jesus, o Santo Nome de Maria e o Santo Escapulário do Carmelo’.

6. Ter um hábito diário de oração

Satanás ama a desordem e fará tudo o que puder para interromper nossa vida de oração. É por isso que é vital estabelecer uma rotina de oração em que não se reze apenas quando se lembra, mas também em horários e durações determinados. Desta forma, mostramos a Deus nossas prioridades e expulsamos Satanás de nossas vidas.

7. Permanecer humilde

É uma atitude reconhecida há dois mil anos : humildade, fé, oração, receber os sacramentos (missa, confissão), viver uma vida cristã em conformidade com o Evangelho, fazer obras de caridade e perdoar os inimigos.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2021/03/18/7-armas-poderosas-para-o-combate-espiritual/

quinta-feira, 18 de março de 2021

Basílica de São Paulo Fora dos Muros: um sinal de conversão

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Marinella Bandini,

Jornalista


‘A Basílica de São Paulo Fora dos Muros fica sobre o túmulo de São Paulo, martirizado em Roma em 67. No local de sua morte foi erguida outra basílica em sua homenagem e há também a Abadia das Três Fontes – assim batizada devido à tradição que diz que fontes de água surgiram do chão após os três saltos da cabeça de Paulo ao ser cortada de seu corpo.

O primeiro núcleo da basílica de São Paulo Fora dos Muros foi uma pequena igreja construída por Constantino. Foi ampliada em 384 pelos ‘três imperadores’ –  Valentiniano II, Teodósio e Arcadio – , e sobreviveu até o incêndio de 1823. Depois foi reconstruída em estilo neoclássico, mantendo-se fiel à estrutura original.

Por mais de 1300 anos, os monges beneditinos têm sido os guardiões do lugar. Hoje em dia, o carisma beneditino está entrelaçado com o ecumênico. Entre as iniciativas mais conhecidas estão o Colóquio Ecumênico Paulino e a Semana da Unidade Cristã, que termina no dia 25 de janeiro, e a Festa da Conversão de São Paulo. Desde 2008, o início do Ano Paulino, com a chama paulina, acesa por monges, permanece acesa no átrio da basílica.

No passado, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, realizava-se o terceiro escrutínio dos aspirantes ao Batismo. No lugar dedicado ao apóstolo convertido no caminho de Damasco, pela primeira vez os catecúmenos escutaram a palavra de Deus num serviço litúrgico, chamado ‘in aperitione aurium’ : num sentido espiritual, seus ouvidos foram abertos à palavra da vida eterna.

Como São Paulo e os catecúmenos, renovemos nosso caminho de conversão :

Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não incorre na condenação, mas passou da morte para a vidaJoão 5, 24.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2021/03/17/basilica-de-sao-paulo-fora-dos-muros-um-sinal-de-conversao/

domingo, 14 de março de 2021

Terço de São Bento


Livro ‘Terço de São Bento’ surge num momento de grande dificuldade para todo o mundo. A obra composta pelo monge beneditino do Mosteiro de São Bento de São Paulo, Dom João Baptista Barbosa Neto, OSB durante a pandemia, tem como objetivo auxiliar espiritualmente os católicos e demais devotos de São Bento (480-547) a manterem-se firmes na fé, alegres na esperança, pacientes na tribulação.

Existem diversos tipos de terços utilizando-se do instrumento tradicional de contas católico, no qual se costuma rezar Pais-Nossos e Ave-Marias, como o Terço da Divina Misericórdia, o Terço da Divina Providência e o Terço de São José, além, obviamente da terço tradicional mariano, só para mencionar alguns. Esta variedade de invocações visa aumentar a devoção da prática meditativa e devocional a determinado santo ou situação específica, o que ajuda a nutrir a esperança e a fortalecer a fé em Deus.

O Terço de São Bento tem como núcleo oracional a oração da Medalha de São Bento. Nos cinco mistérios meditados a oração é recitada. Além disso, frases da regra escrita pelo próprio São Bento (RB) são relembradas a todo instante, uma maneira de o fiel também conhecer a única obra escrita pelo santo.

Em tempos difíceis como o que estamos vivendo, é necessário alimentar nossa alma. Sabemos que além das dores físicas causadas pelo vírus da Covid 19, da morte e das consequências dela na vida de todos, acaba por também atingir nossa dimensão espiritual, que em muitos casos fica bastante abalada.

São Bento é um destes santos invocados contra os males físicos, mas também os da alma. Como bem sabemos, ele quando iniciava qualquer projeto ou quando se encontrava diante do mal, fazia o sinal da cruz, confiando sempre na misericórdia divina. Foi a partir de sua convicção que conseguiu sair ileso de atentados contra sua própria vida. Ele nos ensina a nunca perder a fé e a esperança na misericórdia de Deus que nos conduz todos juntos à vida eterna.

Devido à sua fama de exorcista se tornou muito popular a Medalha de São Bento com orações que se acredita ter sido usada pelo santo de Núrsia. Também nós, como ele poderemos obter muitas graças se nos entregarmos totalmente aos cuidados do Senhor.

O livro traz ainda uma sugestão de oração para toda uma semana, de domingo a sábado, desde à manhã, à tarde e à noite, com frases jaculatórias para rezar e repetir durante toda a jornada, um convite a uma vida espiritual mais intensa, uma experiência com a mensagem da luz que emana da cruz de Cristo.

Tanto a recitação do terço quanto as orações diárias propostas, buscam confortar o coração e a alma do crente, de uma maneira equilibrada e teológica, trazendo confiança interior e força para enfrentar as adversidades.

O livro será lançado no dia 21 de março, dia do Trânsito (morte) de São Bento, às 21h numa live especial no perfil do instagram @djoaobaptista, e pode ser adquirido pelo site : https://www.livrarialoyola.com.br/produto/terco-de-sao-bento-635518 com entrega para todo o Brasil. 


Título: Terço de São Bento

Autor: Dom João Baptista Barbosa Neto, OSB

Selo Corvo Amigo (Tocando a vida com leveza Editora)

Dimensões: 10,5cm x 14,8cm

Número de Páginas: 41

ISBN: 978-65-990943-2-3


sexta-feira, 12 de março de 2021

‘E vós, quem dizeis que eu sou?’ Jesus Cristo, ‘verdadeiro Deus’ – Terceira Pregação da Quaresma de 2021

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo do Frei Raniero Cantalamessa, OFMCap,

pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)

Tradução : P. Ricardo Farias, OFMCap

 

Recordemos brevemente o tema e o espírito destas meditações quaresmais. Propusemo-nos em reagir à tendência difundidíssima de falar da Igreja ‘etsi Christus non daretur’, como se Cristo não existisse, como se fosse possível entender tudo dela, prescindindo dele. Propusemo-nos, porém, em reagir a isso de um modo diverso do habitual : não buscando convencer o mundo e seus meios de comunicação de erro, mas renovando e intensificando a nossa fé em Cristo. Não em chave apologética, mas espiritual.

Para falar de Cristo, escolhemos a via mais segura, que é a do dogma : Cristo verdadeiro homem, Cristo verdadeiro Deus, Cristo uma só pessoa. Aquela do dogma é uma via por nada velha e ultrapassada. ‘A terminologia dogmática da Igreja primitiva – escreveu Kierkegaard, um dos maiores representantes do pensamento moderno existencialista – é como um castelo encantado, onde repousam em um sono profundo os príncipes e as princesas mais graciosos. Basta apenas despertá-los, para que se levantem em toda a sua glória [1].

Assim, trata-se justamente disso : de despertar os dogmas, de infundir neles vida, como quando o Espírito entrou nos ossos ressequidos vistos por Ezequiel e ‘eles viveram e se puseram de pé’ (Ez 37,10). Na vez passada, buscamos fazer isso, em relação ao dogma de Jesus ‘verdadeiro homem’; hoje, queremos fazê-lo com o dogma de Cristo ‘verdadeiro Deus’.

O dogma de Cristo ‘verdadeiro Deus’

Em 111 ou 112 depois de Cristo, Plínio, o Jovem, governador da Bitínia e do Ponto, escreveu uma carta ao Imperador Trajano, pedindo-lhe indicações sobre como se comportar nos processos instaurados contra os cristãos. Segundo as informações tomadas – escreve ao Imperador – ‘toda a sua culpa ou erro consistia em se reunirem habitualmente em um dia estabelecido antes da aurora e entoar, em coros alternados, um hino a Cristo como a um Deus’ : carmen Christo quasi Deo dicere [2]. Estamos na Ásia Menor, há poucos anos da morte do último apóstolo, João, e os cristãos proclamam já no canto a divindade de Cristo! A fé na divindade de Cristo nasce com o nascer da Igreja.

Mas o que é desta fé hoje? Façamos, primeiramente, uma breve reconstrução da história do dogma da divindade de Cristo. Ele foi sancionado solenemente no Concílio de Niceia de 325, com as palavras que repetimos no Credo : ‘Creio em um só Senhor, Jesus Cristo... Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai’. Para além dos termos usados, o sentido profundo da definição de Niceia – como se deduz de Santo Atanásio, que foi sua testemunha e intérprete mais fidedigno – era que, em toda língua e em toda época, Cristo deve ser reconhecido como Deus no sentido mais forte e mais alto que a palavra ‘Deus’ tem em determinada língua e cultura, e não em qualquer outro sentido derivado e secundário.

Foi preciso quase um século de assentamento antes que esta verdade fosse recebida, na sua radicalidade, por toda a cristandade. Uma vez superados os refluxos de arianismo devidos à chegada de povos bárbaros que tinham recebido a primeira evangelização dos heréticos (Godos, Visigodos e Longobardos), o dogma se tornou patrimônio pacífico de toda a cristandade, seja oriental como ocidental.

A Reforma Protestante o manteve intacto, e mais, aumentou sua centralidade; contudo, inseriu nele um elemento que, mais tarde, dará margem a prolongamentos negativos. Para reagir ao formalismo e ao nominalismo que reduziam os dogmas a exercícios de virtuosismo especulativo, os reformadores protestantes afirmam: ‘Conhecer Cristo significa reconhecer os seus benefícios, não indagar as suas naturezas e os modos da encarnação [3]. O Cristo ‘para mim’ se torna mais importante do que o Cristo ‘em si’. Ao conhecimento objetivo, dogmático, opõe-se um conhecimento subjetivo, íntimo; ao testemunho exterior da Igreja e das próprias Escrituras sobre Jesus, antepõe-se o ‘testemunho interior’, que o Espírito Santo presta a Jesus no coração de cada fiel.

O Iluminismo e o racionalismo encontraram nisso o terreno adequado para a demolição do dogma. Para Kant, o que conta é o ideal moral proposto por Cristo, mais do que a sua pessoa. A teologia liberal do século XIX reduz praticamente o cristianismo apenas à dimensão ética e, particularmente, à experiência da paternidade de Deus. Despoja-se o Evangelho de todo o sobrenatural : milagres, visões, a ressurreição de Cristo. O cristianismo torna-se apenas um sublime ideal ético que pode prescindir da divindade de Cristo e, até mesmo, da sua existência histórica. Gandhi, que, infelizmente, conhecera o cristianismo nesta versão redutiva, escreveu : ‘Não me importaria nem mesmo se alguém demonstrasse que o homem Jesus, na realidade, jamais viveu, e que o que se lê nos evangelhos não é nada mais do que fruto da imaginação do autor. Apesar de que o sermão da montanha permanecesse verdadeiro aos meus olhos’.

A versão mais próxima a nós desta tendência redutiva do cristianismo é aquela popularizada por Bultmann, em nome, desta vez, da demitologização : ‘A fórmula ‘Cristo é Deus’ – ele escreve – é falsa, em todo sentido, quando ‘Deus’ é considerado como ser objetivável, seja ela entendida segundo Ário ou segundo Niceia, em sentido ortodoxo ou liberal. Ela está correta se ‘Deus’ for entendido como o evento da atuação divina [4]. Em palavras menos veladas : Cristo não é Deus, mas em Cristo  (ou opera) Deus. Estamos bem distantes, como se vê, do dogma definido em Niceia. Diz-se de querer, deste modo, interpretar o dogma antigo com categorias modernas, mas, na realidade, não se faz outra coisa a não ser repropor, às vezes nos mesmos termos, soluções arcaicas (Paulo de Samósata, Marcelo de Ancira, Fotino), já avaliadas e rejeitadas pela consciência da Igreja.

Se, das discussões dos teólogos, considerando-se diversas reflexões, passa-se ao que, da divindade de Cristo, pensa o povo comum nos países cristãos, fica-se sem palavras. Após um concílio local dominado pelos opositores de Niceia (Rimini, ano 359), São Jerônimo escreveu : O mundo inteiro ‘emitiu um gemido e se surpreendeu em se rever ariano [5]. Nós teríamos muito mais razão que ele de gemer e fazer nossa a sua exclamação de estupor.

Cristo ‘verdadeiro Deus’ nos Evangelhos

Mas agora, devemos ter fé em nosso intuito. Por isso, deixemos de lado o que pensa o mundo e busquemos despertar em nós a fé na divindade de Cristo. Uma fé luminosa, não desfocada, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, isto é, não só crida, mas também vivida. Também vivida, a Jesus não interessa tanto o que dizem dele ‘os homens’, mas o que dizem dele os seus discípulos. A pergunta está perenemente no ar : ‘E vós, quem dizeis que eu sou?’ (Mt 16,15). É a ela que queremos buscar responder nesta meditação.

Partamos justamente dos evangelhos. Nos sinóticos, a divindade de Cristo jamais é declarada abertamente, mas é continuamente subentendida. Recordemos algumas frases de Jesus : ‘O Filho do Homem tem, na terra, autoridade para perdoar pecados’ (Mt 9,6); ‘Ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho’ (Mt 11,27); ‘O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão’ (frase esta, presente idêntica em todos os três Sinóticos) [6]. ‘O Filho do Homem é senhor também do sábado’ (Mc 2,28); ‘Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, ele se assentará em seu trono glorioso. Todas as nações da terra serão reunidas diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos’ (Mt 25,31-32). Quem, a não ser Deus, pode perdoar os pecados em nome próprio e se proclamar juiz final da humanidade e da história?

Assim como basta um fio de cabelo ou uma gota de saliva para reconstruir o DNA de uma pessoa, assim, basta apenas uma linha do Evangelho, lida sem preconceitos, para reconstruir o DNA de Jesus, para descobrir o que ele pensava de si mesmo, mas não podia dizer abertamente para não ser incompreendido. A transcendência divina de Cristo literalmente transpira de cada página do Evangelho.

Mas é sobretudo João quem fez da divindade de Cristo o objetivo primário do seu evangelho, o tema que tudo unifica. Ele conclui o seu evangelho dizendo : ‘Estes (sinais), porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome’ (Jo 20,31), e conclui a sua Primeira Carta quase com as mesmas palavras :  ‘Eu vos escrevo estas coisas, a vós que credes no nome do Filho de Deus, para que saibais que tendes a vida eterna’ (lJo 5,13).

Um dia, como tantos outro, estava celebrando a Missa em um mosteiro de clausura. O trecho evangélico da liturgia era a página de João, em que Jesus pronuncia repetidamente o seu ‘Eu Sou’ : ‘De fato, se não crerdes que ‘Eu Sou’, morrereis nos vossos pecados... Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então sabereis que ‘Eu Sou’... Antes que Abraão existisse, Eu Sou’ (Jo 8,24.28.58). O fato de que as palavras ‘Eu Sou’, contrariamente a toda regra gramatical, no lecionário fossem escritas com duas maiúsculas, unido certamente a alguma outra causa mais misteriosa, fez acender uma fagulha. Aquela palavra ‘explodiu’ dentro de mim.

Eu sabia, dos meus estudos, que no evangelho de João havia numerosos ‘Eu Sou’, ego eimi, pronunciados por Jesus. Sabia que isso era um fato importante para a sua cristologia; que, com esses, Jesus se atribui o nome que Deus reivindica para si em Isaías : ‘Para que saibais e acrediteis em mim, e compreendais que Eu sou’ (Is 43,10). Mas o meu conhecimento era literário e inerte, e não suscitava emoções particulares. Naquele dia, era algo totalmente diverso. Estávamos no tempo pascal e parecia que o próprio Ressuscitado proclamasse o seu nome divino no céu e na terra. O seu ‘Eu Sou!’ iluminava e enchia o universo. Eu me sentia muito pequeno, como alguém que assiste, por acaso e distante, uma cena improvisa e extraordinária, ou a um grandioso espetáculo da natureza. Não se tratou mais do que uma simples emoção de fé, nada mais, porém, daquelas que, quando passam, deixam no coração uma marca indelével.

É de causar estupor a iniciativa que o Espírito de Jesus permitiu a João levar a termo. Ele abraçou os temas, símbolos, expectativas, enfim tudo aquilo que havia de religiosamente vivo, seja no mundo judaico, como no helenístico, pondo tudo isso a serviço de uma única ideia, melhor, de uma única pessoa : Jesus Cristo é o Filho de Deus e o Salvador do mundo. Ele aprendeu a língua dos homens do seu tempo, para gritar em seu meio, com todas as próprias forças, a única verdade que salva, a Palavra por excelência, ‘o Verbo’.

Somente uma certeza revelada, que tem por detrás de si a autoridade e a própria força de Deus e do seu Espírito, podia ser explicada em um livro com tal insistência e coerência, chegando, de inúmeros pontos diversos, sempre à mesma conclusão : a identidade total da natureza entre o Pai e o Filho : ‘Eu e o Pai somos um’ (Jo 10,30). Um ‘’ (neutro unum), note-se bem, não uma só pessoa (masculino unus)!

‘Corde creditur : crê-se com o coração’

Assim como para a humanidade, também a propósito da divindade de Cristo, agora podemos mostrar como o antigo dogma, objetivo e ontológico, é capaz de acolher e valorizar o dado moderno subjetivo e funcional, enquanto, como vimos, o contrário foi um tanto difícil. Nenhuma das chamadas ‘cristologias a partir de baixo’, aquelas, para entendermos, que partem do Jesus ‘profeta escatológico e sumo revelador do Pai’, ou do Cristo, ‘o homem em quem a consciência de Deus atingiu o seu máximo nível’ (F. Schleiermacher), ou ainda, do Cristo ‘pessoa humana em quem subsiste a natureza divina’ (e não pessoa divina que subsiste em uma natureza humana!) : nenhuma, repito, destas cristologias conseguiu se elevar até abraçar o verdadeiro mistério da fé cristã e salvaguardar a plena divindade de Cristo. A razão do insucesso é explicada por Jesus e foi bem compreendida por João, que a expõe : ‘Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu’ (Jo 3,13). De fato, é possível para Deus, se assim o quiser, fazer-se homem, mas não é possível ao homem fazer-se Deus!

Com estas premissas, podemos voltar a valorizar toda a dimensão subjetiva e personalista do dogma : o Cristo ‘para mim’, posto em primeiro plano pelos Reformadores, o Cristo conhecido por seus benefícios e pelo testemunho interior do Espírito. Este é o melhor fruto do ecumenismo, o das ‘diferenças reconciliadas’, não opostas, como diz o nosso Santo Padre. Não é uma concessão ‘pro bono pacis’, mas uma necessidade e um enriquecimento recíproco. Todos nós precisamos dar à nossa fé esta dimensão pessoal, íntima, para que ela não seja repetição morta de fórmulas antigas ou modernas. Sobre este ponto, somos todos chamados em causa : católicos, ortodoxos e protestantes, da mesma maneira.

São Paulo diz que ‘é com o coração que se crê para a justiça; e com a boca, professa-se a fé para a salvação’ (Rm 10,10). ‘É das raízes do coração que sobe a fé’, comenta Agostinho [7]. Na visão católica, como naquela ortodoxa, e também, em seguida, naquela protestante, a profissão da reta fé, isto é, o segundo momento deste processo, frequentemente tomou tanto relevo ao ponto de deixar na sombra aquele primeiro momento que se desenvolve nas profundidades escondidas do coração. Todos os tratados De fide, escritos após Niceia, tratam da ortodoxia da fé; hoje, dir-se-ia da fides quae, não da fides qua, das coisas a serem cridas, não do ato pessoal do crer.

Este primeiro ato de fé, justamente porque acontece no coração, é um ato ‘singular’, que pode ser feito apenas pelo indivíduo, em total solidão com Deus. No evangelho de João, ouvimos Jesus fazer repetidamente a pergunta : ‘Crês isto?’ (Jo 9,35; Jo 11,26); e, cada vez, esta pergunta suscita do coração o grito da fé : ‘Sim, Senhor, eu creio!’. Também o símbolo de fé da Igreja começa assim, no singular : ‘Creio’, não : ‘Cremos’.

Também nós devemos aceitar passar por este momento, de se submeter a este exame. Se, à pergunta de Jesus : ‘Crês isto?’, alguém responde imediatamente, sem nem pensar : ‘Claro que creio’, e acha até estranho que uma pergunta semelhante seja dirigida a um fiel, a um sacerdote ou a um bispo, quer dizer provavelmente que ainda não descobriu o que significa realmente crer, jamais experimentou a grande vertigem da razão que precede o ato de fé. A divindade de Cristo é o cume mais alto, o Evereste da fé. Crer em um Deus nascido em um estábulo e morto em uma cruz! Isto é muito mais exigente do que crer em um Deus distante, que cada um pode representar ao próprio gosto.

É preciso começar a demolir em nós, fiéis e homens da Igreja, a falsa persuasão de que estamos bem no que se refere à fé e que, no mais, devemos trabalhar ainda pela caridade. Talvez não seja um bem, quem sabe, por um pouco de tempo, não querer demonstrar a ninguém, mas interiorizar a fé, redescobrir as suas raízes no coração!

Devemos recriar as condições para uma retomada da fé na divindade de Cristo. Reproduzir o impulso de fé do qual nasceu o dogma de Niceia. O corpo da Igreja outrora produziu um esforço supremo, com o qual se ergueu, na fé, acima de todos os sistemas humanos e de todas as resistências da razão. A maré da fé uma vez subiu a um nível máximo e sua marca permaneceu na rocha. No entanto, é preciso que se repita a subida, não basta a marca. Não basta repetir o Credo de Niceia; é preciso renovar o impulso de fé que então se teve na divindade de Cristo e do qual não houve igual nos séculos.

A praxe da Igreja (e não só da Igreja Católica!) prevê uma profissão de fé da parte do candidato, antes de receber o mandato de ensinar teologia. Esta profissão de fé tem comportado, frequentemente, além da recitação do credo, o compromisso de ensinar algumas coisas precisas – e a não ensinar outras igualmente precisas – que, naquele momento da história, eram temas particularmente sensíveis. Pensemos no juramento contra o modernismo.

A mim parece que se deveria verificar sobretudo uma coisa : que quem ensina teologia aos futuros ministros do Evangelho creia firmemente na divindade de Cristo. Verificar isto mediante um discernimento fraterno e franco, melhor do que com um juramento. Houve toda uma geração de sacerdotes após o Concílio (certamente, não por causa do Concílio!) que saiu do seminário e se apresentou à ordenação com ideias muito confusas e desfocadas sobre quem é o Jesus que devia anunciar ao povo e tornar presente no altar na Missa. Muitas crises sacerdotais, estou convencido, começaram e começam aqui.

Ecumenismo e evangelização

O que evidenciamos tem importantes consequências também para o ecumenismo cristão. Existem, de fato, dois ecumenismos possíveis : o da fé e o da incredulidade; um que reúne todos aqueles que creem que Jesus é o Filho de Deus e que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, e um que reúne todos aqueles que se limitam a ‘interpretar’ (cada um à própria maneira e segundo o próprio sistema filosófico) estas coisas. Um ecumenismo no qual, no máximo, todos creem as mesmas coisas porque ninguém crê mais realmente em nada, no sentido forte da palavra ‘crer’.

A distinção fundamental dos espíritos, no âmbito da fé, não é a que distingue entre católicos, ortodoxos e protestantes, mas a que distingue aqueles que creem no Cristo Filho de Deus e aqueles que não creem; segundo São Paulo, ‘todos os que, em todo lugar, invocam o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso’ (1Cor 1,2), e os que não o invocam.

Há uma unidade nova e invisível que vai se formando e que passa pelas diversas Igrejas. Esta unidade invisível e espiritual, por sua vez, tem necessidade vital do discernimento da teologia e do magistério, para não cair no perigo do fundamentalismo ou na vã presunção de poder formar uma espécie de Igreja transversal, fora das Igrejas existentes e, particularmente, da Igreja Católica. Mas, uma vez vislumbrada e superada esta tentação, trata-se de um fato que não podemos mais nos permitir ignorar.

O verdadeiro ‘ecumenismo espiritual’ não consiste somente em rezar pela unidade dos cristãos, mas em compartilhar a mesma experiência do Espírito Santo. Consiste naquela que Agostinho chama ‘societas sanctorum’, a comunhão dos santos, que, às vezes, dolorosamente, pode não coincidir com a ‘communio sacramentorum’, ou seja, compartilhar dos mesmos sinais sacramentais.

A fé na divindade é importante sobretudo em vista da evangelização. Existem edifícios ou estruturas metálicas feitas de forma que, se você tocar em um determinado ponto ou levantar uma determinada pedra, tudo desmorona. Assim é o edifício da fé cristã, e esta sua ‘pedra angular’ é a divindade de Cristo. Removida esta, tudo se desagrega e desmorona, começando pela fé na Trindade. De quem se forma a Trindade, Cristo não é Deus? Não por nada, basta se por entre parênteses a divindade de Cristo, que se põe entre parênteses também a Trindade.

Santo Agostinho dizia : ‘Não é grande coisa crer que Jesus morreu; nisto creem até os pagãos e os ímpios; todos creem nisso. Mas é algo realmente grande crer que ele ressuscitou’. E concluía : ‘A fé dos cristãos é a ressurreição de Cristo [8]. A mesma coisa se deve dizer da humanidade e divindade de Cristo, cujas morte e ressurreição são as respectivas manifestações. Todos creem que Jesus seja homem; o que faz a diversidade entre crentes e não crentes é crer que ele também seja Deus. A fé dos cristãos é a divindade de Cristo!

‘Conhecer Cristo é reconhecer os seus benefícios’

Conhecer Cristo é reconhecer os seus benefícios’, nós ouvimos. Concluamos justamente recordando dois destes benefícios, que são os mais capazes de responder às necessidades profundas do homem de hoje e de sempre : a necessidade de sentido e a necessidade de vida.

Não é verdade que o homem moderno deixou de se propor a questão sobre o sentido da vida. Há alguns anos, um conhecido intelectual escreveu : ‘A religião morrerá. Não é um desejo, muito menos uma profecia. Já é um fato que está aguardando seu cumprimento... Passada a nossa geração e talvez aquela de nossos filhos, ninguém mais considerará a necessidade de dar um sentido à vida um problema realmente fundamental... A técnica levou a religião ao seu crepúsculo [9]. Claro, não se interroga sobre o sentido último da vida quem se prestou a outras coisas... Mas, quando estas vão desaparecendo – juventude, saúde, fama – muitos voltam a se propor aquela pergunta. Fazem-na ainda mais neste tempo de pandemia em que, fechados frequentemente em casa, homens e mulheres finalmente têm tido o tempo de refletir e se interrogar.

Há uma pintura, dentre as mais famosas da arte moderna, que representa visivelmente aonde leva a convicção de que a vida não tem sentido. Em um fundo avermelhado que inspira angústia, um homem atravessa correndo uma ponte, passando por dois indivíduos que parecem alheios e indiferentes a tudo; tem os olhos rabiscados; com as mãos em torno à boca, emite um grito e se entende que é um grito de desespero.

Jesus disse : ‘Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, não caminha na escuridão’ (Jo 8,12). Quem crê em Cristo, tem a possibilidade de resistir à grande tentação da falta de sentido da vida, que frequentemente leva ao suicídio. Quem crê em Cristo não caminha nas trevas : sabe de onde vem, sabe para onde vai e o que fazer enquanto isso. Sobretudo, sabe que é amado por alguém e que este alguém deu a vida para demonstrá-lo!

Jesus também disse : ‘Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá’ (Jo 11,25). E o evangelista, mais tarde, escreverá aos cristãos : ‘Eu vos escrevo estas coisas, a vós que credes no nome do Filho de Deus, para que saibais que tendes a vida eterna (...). Ele é o verdadeiro Deus e a Vida eterna’ (1Jo 5,13.20). justamente porque Cristo é ‘verdadeiro Deus’, é também ‘vida eterna’ e dá a vida eterna. Isto não nos tira necessariamente o medo da morte, mas dá ao fiel a certeza de que a nossa vida não termina com ela.

Repensemos em algo de tudo isso quando, domingo, proclamamos o segundo artigo do Credo :

Creio em um só Senhor, Jesus Cristo,

Filho unigênito de Deus,

nascido do Pai antes de todos os séculos :

Deus de Deus, luz da luz,

Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,

gerado, não criado,

consubstancial ao Pai.

Por ele todas as coisas foram feitas.

 

Fonte :

*Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2021-03/cantalamessa-terceira-meditacao-divindade-de-cristo-texto-integr.html

------------------------

[1] Cf. Søren Kierkegaard, Diario, II, A 110 (anno 1837).

[2] Cf. Plínio, o Jovem, Epistularum liber, X,96.

[3] Cf. Filipe Melâncton, Loci theologici, in Corpus Reformatorum, Brunsvigae 1854, p. 85.

[4] Cf. R. Bultmann, Glauben und Verstehen, II, Tübingen 1938, p. 258.

[5] Cf. S. Jerônimo, Dialogus contra Luciferianos, 19 (PL 23, 181) : «Ingemuit totus orbis et arianum se esse miratus est».

[6] Mc 13,31; Mt 24,35; Lc 21,33.

[7] Cf. Santo Agostinho, Comentário ao Evangelho de João, 26,2 (PL 35,1607).

[8] Cf. Santo Agostinho, Enarrationes in Psalmos 120, 6.

[9] Na revista ‘MicroMega’ 2, 2000, pp. 187s.