domingo, 31 de maio de 2020

Pentecostes : 'somos terras do Espírito'

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 7 orações especiais ao Espírito Santo
No silencioso sussurro da voz do Espírito, toda nossa realidade interior fica abençoada

*Artigo d0 Padre Adroaldo Palaoro, SJ


‘A festa de Pentecostes é a culminância de todo o tempo pascal. As primeiras comunidades cristãs tinham claro que tudo o que estava se passando nelas era obra do Espírito, e tudo o que o Espírito tinha realizado em Jesus, agora estava realizando em cada um deles(as).

Também para cada um de nós, celebrar a Páscoa significa descobrir a presença do Deus-Espírito em nosso interior e na realidade que nos envolve, ora como brisa mansa, ora como vento impetuoso.

Tanto a ‘ruah’ hebraico como o ‘pneuma’ grego significam ar, vento, sopro. É neutro em grego, masculino em latim (‘spiritus’), feminina em hebraico, pois transcende, acolhe e abençoa todas as identidades de gênero. É alento vital profundo.

Brisa suave no sufoco, vento forte na apatia. ‘O vento sopra onde quer’, vem de tudo e de sempre, nos leva onde não sabemos.

A raiz da palavra ‘ruah’, nas línguas semíticas, é ‘rwh’, que significa o espaço existente entre o céu e a terra, que pode estar em calma ou em movimento. Seria o ambiente no qual os seres vivos bebem a vida. A terra mesma era concebida como um ser vivo, o vento era sua respiração.

Nestas culturas, o sinal de vida era a respiração. ‘Ruah’ veio a significar ‘sopro vital’. Quando Deus modela o homem de barro, sopra em seu nariz o hálito de vida.

No Evangelho deste domingo, prolongando o sexto dia da criação, Jesus sopra sobre os apóstolos para comunicar seu Espírito.

Pentecostes vem nos recordar que o Espírito faz parte de nós mesmos, constitui nossa verdadeira identidade e não tem que vir de nenhum lugar. Somos habitados por ele, está em nós, antes mesmo que nós começássemos a existir. É o fundamento de nosso ser e a causa de todas as nossas possibilidades de crescer em todas as dimensões da vida. Nada podemos fazer sem ele, como também não podemos estar privados de sua presença em nenhum momento. Todas as orações, encaminhadas a pedir a vinda do Espírito, só tem sentido quando nos levam a tomar consciência de sua presença e ação em nós; tais orações ativam em nós o impulso para nos deixar conduzir por essa presença inspiradora e criativa.

Assim é o Espírito que vibra na entranha do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, nesta nossa Terra e no universo sem medida. O Espírito sopra onde quer, que é como dizer ‘em tudo’, pois ama tudo e anima tudo. É a ‘alma’ de tudo quanto vive e respira. É a esperança invencível, a aspiração irresistível de todos os seres, sem exceção. É a energia que toma forma na matéria e a faz matriz inesgotável de novas expressões de vida, sem fim.

Nesse sentido, nós somos a terra propícia onde atua o Espírito. Onde há mais carência, vulnerabilidade, pobreza... há mais e maiores possibilidades criativas. Nenhuma situação pode afastar-nos de sua visita. Toda terra baldia é boa para o Espírito. Ele é o buscador incansável e com um ‘sim’ ousado e forte recria de novo nossa história, estabelecendo o ‘cosmos’ (harmonia e beleza) em nosso ‘caos’ existencial.

As ‘terras do Espírito’ albergam milhares de nomes : chama-se  esperança para aqueles que sonham um outro mundo possível; chama-se amada paz para aqueles que vivem em meio à barbárie dos conflitos; chama-se liberdade para aqueles que foram privados dos seus direitos fundamentais; chama-se justiça para aqueles que vivem continuamente sendo espoliados e explorados; chama-se beleza, porque tudo o que foi criado é bom e precioso; chama-se humanidade porque é neste ‘húmus-chão’ onde a presença da ‘Ruah’ transforma a existência.

No silencioso sussurro da voz do Espírito, toda nossa realidade interior fica abençoada : os sentimentos contraditórios, os dinamismos opostos, os pensamentos divergentes..., se harmonizam. Ele ‘desce’ para nos encontrar e despertar nossa vida atrofiada. Com seu toque, uma identidade nova ressurge : não somos mais estrangeiros, nem inimigos de nós mesmos. Sua presença dá calor e sabor à nossa existência.

São tantas as pessoas que fazem experiência de vida no Espírito, que bebem dele, vivem dele, muitas vezes sem saber disso; elas têm uma visão aberta e são motivo de alegria e de cuidado para aqueles que delas se aproximam; homens e mulheres que levam alívio ao tecido da existência humana pois, com suas presenças, dão um toque de cor e calor à realidade; como brisa leve, situam-se junto àqueles que atravessam momentos de desânimo, de tristeza e de fracasso...

O Espírito é o artífice secreto de todas as cores e texturas da vida, da beleza, que conhecemos e daquela que ainda nos aguarda. Ele é a ‘alma do mundo’ e disso só podemos fazer aproximações, vislumbres...

Reconhecemos o Espírito pelos efeitos que provoca : sem saber de onde vem nem para onde irá, nos golpeia e clama no sofrimento dos inocentes, grita em todos os ambientes que maltratam a vida, ali onde não se respeita a dignidade e o valor das criaturas. Ele nos alcança na expressão terna de um rosto, na tonalidade de uma voz, na carícia da natureza...

Ali onde nosso ego se esvazia, o Espírito toma o lugar que lhe pertence, desde o princípio e para sempre.

Esse lugar não é um espaço físico nem está situado no tempo, senão que esse lugar está dentro, vai conosco lá onde vamos. São ‘terras do Espírito’, e habitá-las é nossa promessa.

A humanidade sempre sonhou e buscou a ‘terra prometida’; no entanto, esta não se reduz a um lugar geográfico ou um espaço paradisíaco. São as ‘terras do Espírito’, terras prometidas a todos que vivem a partir de sua própria interioridade.  É preciso descalçar-se para entrar nessas terras, fazer-se cada vez mais leves, mais humildes, peregrinos... Quem se deixa conduzir pelo Espírito, nenhuma terra lhe é estranha; ao contrário, tudo lhe é familiar.

Eis que nos encontramos agora no tempo do ‘distanciamento social’, para não nos contaminar. Imperceptíveis partículas nos ameaçam onde menos esperamos. E procuram minar e destruir nosso sistema vital.

Mas não devemos esquecer que há outro tipo de ‘bendito contágio’, que procura ter acesso à nossa interioridade mais profunda : é o contágio do Espírito, que nos envolve e nos pede que tiremos todas as máscaras com as quais nos defendemos dele. É o Espírito que alenta (suspira) na beleza, na arte, nas relações de amor incondicional, no cuidado compassivo, na presença solidária, nas pessoas que ajudam desinteressadamente, na hospitalidade da vida...

Jesus Ressuscitado, no encontro com os discípulos e com cada um(a) de nós, nos entregou definitivamente este Espírito, sua santa Ruah que o habitava e o levou a entregar sua vida em favor da vida.

É a ‘Ruah’ que produz o contágio espiritual e que foi derramada sobre toda a humanidade.

A Santa Ruah é a memória permanente do ‘sim’ do Abbá e de Jesus a todos nós. Não somos abandonados do Amor, nem da Misericórdia de nosso Deus. Onde menos pensamos, ali surgem sinais de um grande e apaixonado amor pela humanidade. Tanto amou Deus o mundo, tanto amou Jesus à humanidade, que nos entregaram o Espírito Santo, essa bendita contaminação que nos envolve por todos os lados, para que ‘tenhamos vida em abundância’.

Santa Ruah! Bendito contágio!

Texto bíblico : Jo 20,19-23

Na oração : Espirituais somos todos, quando deixamos que, dentro de nós, o Espírito de Deus encontre espaço livre para mover-se, sussurrar e suscitar inquietações. Ao habitar-nos, o Espírito não nos invade, nem se impõe.

  • Se abrirmos espaço à sua presença, brota uma sadia convivência que potencia o melhor de nós mesmos, sensibiliza nosso coração e abre os sentidos para que fiquem mais alertas e sintonizados com as surpresas que brotam da vida.

  • No ritmo da silenciosa respiração, sinta a ‘Santa Ruah’ tendo acesso às profundezas de seu ser, pacificando, integrando..., despertando novas energias e impulsos criativos e rompendo o medo, a apatia, a falta de sentido...’



Fonte :
*Artigo na íntegra

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Por que precisamos do Espírito Santo?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

What about the Holy Spirit?
*Artigo do Padre Paulo Ricardo


‘O Tempo Pascal dá-nos a oportunidade de entender o papel do Espírito Santo na salvação e na santificação das almas, e porque devemos recorrer a Ele não somente agora. Afinal de contas, é por meio do Espírito Santo que aplicamos em nós a redenção de Cristo.

Nota prévia. — Para os estudantes de teologia, queremos esclarecer que a finalidade deste programa é, antes de tudo, apresentar uma distinção entre a chamada redenção objetiva e a redenção subjetiva, de tal forma que as pessoas possam compreender, na prática, como é aplicada a salvação de Cristo em suas vidas.
Depois, as coisas que iremos apresentar sobre o papel do Espírito Santo na ‘economia da salvação’ — ou seja, as obras ad extra, que Deus realiza na história humana — dizem respeito às três Pessoas Divinas, como ensina o Tratado da Trindade. Na verdade, as ações de Deus são sempre ações trinitárias, e o papel que atribuímos a cada uma das Pessoas Divinas é por ‘apropriação’ (secundum quid), segundo aquilo que expõe a própria Sagrada Escritura e a Tradição da Igreja.

A economia da salvação. — A Tradição Católica ensina claramente que nosso único Deus é, ao mesmo tempo, distinto em três Pessoas igualmente divinas : Pai, e Filho, e Espírito Santo. Esse mesmo Deus, uno e trino, quer a nossa salvação e, para isso, deve nos introduzir na sua própria natureza divina, por meio de uma adoção filial. Ou seja, Ele quer fazer de nós seus filhos, mesmo sendo o homem uma pobre criatura, que ademais caiu na escravidão do pecado.

Para cumprir esse desígnio, o Pai, que habita em luz inacessível, enviou o seu Filho eterno, que veio a este mundo, tornando-se Filho do Homem (filho da Virgem Maria, dizendo com mais propriedade). E com essa carne Ele sofreu a sua Paixão, Morte e Ressurreição, em vista da redenção de todos. A partir do mistério da Cruz, portanto, nós, homens, temos acesso aos méritos da Redenção e podemos, enfim, receber a graça da libertação do pecado e da adoção como ‘filhos de Deus’.

Objetivamente, Jesus Cristo nos salvou, dando-nos o remédio de uma doença que antes parecia incurável. Mas esse remédio, ou seja, aquilo que Jesus alcançou na Cruz, precisa ser aplicado à alma para que surta efeito, de modo que a redenção objetiva de Jesus, como dizem os teólogos, deve ser acolhida pessoalmente, no íntimo de nossas almas, como redenção subjetiva. Ao contrário, se não houver essa acolhida, se o paciente não tomar o remédio, se nós não acolhermos os méritos da Paixão de Cristo como dom para nossa salvação, então pereceremos todos do mesmo modo (cf. Lc 13, 3).

Para aplicar esse remédio na alma, nós precisamos do Espírito Santo. Sem Ele, podemos nos considerar perdidos, pois necessitamos que nossa inteligência e vontade sejam movidas em direção a Deus.

O papel do Espírito Santo e os sacramentos. — Nas Sagradas Páginas, vemos que o Espírito Santo é enviado a todas as pessoas, a fim de movê-las para Deus. Todos os seres humanos, mesmo o mais pecador, recebem a visita do Paráclito, que procede do Pai e do Filho. E, por meio dessa visita, isto é, os toques da graça, Deus nos convida à conversão.

Se a alma acolhe o chamado divino, fugindo das distrações do mundo, recebe desde já um ‘toque’ do Espírito Santo, que a coloca num estado de busca de Deus. A pessoa ainda não batizada busca, assim, saciar sua sede em diferentes lugares : num livro, numa pregação, num filme religioso etc. Mais tarde, ela toma a decisão de mudar, procura ser católica e, finalmente, pede o Batismo. E se já for batizada, mas estiver em estado de pecado mortal, pede a Confissão. E por meio desses sacramentos, o Espírito Santo realiza uma mudança nessa alma, dando-lhe a graça santificante, um organismo espiritual, um verdadeiro estado de amizade com Deus, e esse mesmo Espírito passa a habitá-la, plantando ali um ‘germe da vida eterna’, a própria vida divina (Cf. 2 Pe 1, 4).

Aqui devemos insistir que os sacramentos, todos eles, não são coisas dispensáveis, mas instrumentos eficazes da ação do Espírito Santo. Portanto, sem os sacramentos instituídos por Cristo, os quais se encontram perfeita e plenamente na Igreja Católica, é impossível ter uma vida cristã autêntica, razão pela qual a alma dos não católicos encontra-se em situação muito grave.

O progresso da graça santificante. — Os sete sacramentos são, sim, um instrumento do Cristo Ressuscitado para nos conceder o Espírito Santo e nos assegurar a graça santificante. Essa graça nada mais é que a ‘semente’ ou ‘germe da vida eterna’, que precisa ser cultivada a fim de dar muitos frutos.

Como uma criança que cultiva uma pequena semente de feijão, colocando-a num algodão e cercando-a de todos os cuidados, nós precisamos zelar pelo nosso estado de graça, cujo valor está acima de todos os bens do universo (cf. STh I-II 113, 9 ad 2). Se a criança cuida bem de seu feijãozinho, logo ele cresce e pode ser plantado no jardim para gerar muitas vagens. Do mesmo modo, o organismo espiritual necessita de meios adequados para crescer e produzir frutos de vida eterna.

Acontece, de fato, que a graça santificante não progride em muitos corações. E a razão para isso é a falta de seu cultivo; a graça fica como que estagnada, esquecida como uma semente de feijão no saco da despensa. Desse modo, ela nunca poderá crescer pois lhe faltam terreno fértil, luz do sol e adubo adequado. Dito de outro modo, graça santificante precisa de uma vida de oração, uma vida de intimidade com o Espírito Santo, afora a recepção devota e bem disposta dos sacramentos.

A forma comum de o Espírito Santo agir numa alma, para além dos sacramentos, é a oração humilde. Ele se aproxima de quantos se colocam com o coração pobre e pedem a sua intervenção. Essas almas precisam suplicar a vinda do Pai dos pobres (pater pauperum) e confessar-lhe a própria indigência. E ainda que elas se dirijam às outras Pessoas da Trindade, à Virgem Maria ou a algum santo de devoção, o Espírito Santo não as desprezará se, contudo, fizerem uma oração sincera e humilde.

Ora, se um ateu fizer uma oração sincera, suplicando a intervenção de Jesus, mesmo que esse incrédulo não tenha certeza da existência de Deus, o Espírito Santo escutará a sua prece. Porque, na verdade, não seria por força própria, mas sim por aquela do Espírito Santo que a oração seria sincera e sairia do coração como um grito, de modo que poderíamos dizer que já não é a pessoa quem está rezando, mas o próprio Espírito Santo que diz : Abba, Pai.

Toda alma que clama por Deus, clama no Espírito Santo, mesmo não sabendo da sua existência. Porque, de fato, como canta a sequência para a solenidade de Pentecostes, sem a luz que acode, nada o homem pode, nenhum bem há nele. Quando, portanto, pedimos ajuda aos céus, esse nosso pedido não é um clamor solitário. Ao contrário, tendo o Espírito Santo nos incitado à prece, acompanha-nos inspirando o que pedir e como pedir.

A vida de oração. — Sem dúvida, a oração é um excelente meio de nos relacionarmos com o Espírito Santo e, por isso mesmo, progredirmos na santidade. Devemos, pois, rezar e rezar muito.

É fato, porém, que muitas almas têm dificuldade de se concentrar e ouvir a voz de Deus. São como crianças que se dispersam por qualquer coisa. Nesse caso, essas almas precisam ser humildes e seguir a pedagogia da boa mãe, que sabe acalmar os filhos agitados, dando-lhes os seus brinquedos e, ao mesmo tempo, educando-os na verdade. Enquanto as crianças pintam os seus desenhos, dirigem os seus carrinhos ou cuidam de suas bonecas, a mãe lhes diz a lição. Mas se essa mãe agir com rudeza, separando os filhos dos seus ‘companheiros de diversão’, ela só conseguirá deixá-los mais agitados e dispersos.

Na vida de oração, mutatis mutandis, a pessoa pode precisar de alguns ‘brinquedos’ para se concentrar, pois algumas almas são tão agitadas que, diante do Santíssimo na capela, ou elas se agitam mais ou simplesmente paralisam, ficam em stand by, sem se darem conta do Deus que está presente ali. E mesmo se essas almas forem disciplinadas, por exemplo, e passarem um ano ‘rezando’ desse modo, elas não colherão fruto algum e o diabo não deixará de incutir nelas um desprezo pela intimidade com Deus.

A oração, no entanto, como ensina Santa Teresa, é um trato de amizade com quem você sabe que o ama. Rezar é falar com Deus. E para realizar este trato íntimo de diálogo com Deus, pode-se recorrer a esses ‘brinquedos’ : pode ser durante o trânsito; pode ser numa caminhada; pode ser escrevendo uma carta para Deus, desde que tudo isso seja feito como diálogo sincero, como um colóquio entre amigos. No início da vida de oração, aliás, a alma é mesmo como uma criança e precisa de estímulos para se recolher. Por isso, a melhor maneira de rezar nesse estágio é aquela em que a pessoa consegue ter uma conversa com Deus, seja onde for : andando, dirigindo ou lavando a louça.

Um recurso eficaz para quem gosta de fazer suas orações na capela e, no entanto, sente-se muito agitado, é o caderno espiritual. Com essas folhas, a pessoa poderá escrever sua carta para Deus, expressando-se ali com toda segurança e simplicidade.

Enfim, se essas almas forem constantes, mesmo que sua oração seja de apenas 15 minutos, elas certamente colherão, na vida cotidiana, os frutos do Espírito Santo, porque, de verdade, é no dia a dia que os bens de Deus se revelam : é a maior paciência diante de uma contrariedade; é a resistência diante de um desejo impuro; é o cumprimento de uma tarefa difícil etc. Todas essas pequenas mudanças, que acontecem lentamente, surgem a partir da perseverança na oração.

Veni, Sancte Spiritus’. — Mais uma vez queremos insistir : o progresso na santidade depende necessariamente do nosso abandono ao Paráclito. Precisamos do Espírito Santo para que a semente da graça santificante gere, em nós, frutos de vida eterna. Por isso nós lhe chamamos, no Credo de Niceia e Constantinopla, ‘Dominum et vivificantem’ : Dominum, porque é Senhor, e vivificantem, porque nos enche da Vida (do grego ζωη ou zoé).

Tal geração pode ser muito rápida, como em São Paulo Apóstolo e São Francisco de Assis, mas, na maior parte dos casos, acontece lentamente, passo por passo, como o crescimento de uma planta. Requerem-se, portanto, paciência, perseverança e, sobretudo, abandono ao Espírito Santo, e, aos poucos, Ele mesmo fará brotar os novos ramos e as folhas até, finalmente, aparecerem os frutos. Ou seja, Ele nos concederá o ‘dom da graça’. O Espírito Santo produzirá em nós o acolhimento pessoal (redenção subjetiva) dos méritos obtidos por Cristo na Cruz para a salvação universal dos homens (redenção objetiva).

Para facilitar esse relacionamento com o Espírito Santo, a Igreja nos oferece, nestes dias, a novena de Pentecostes. Trata-se de pedir incessantemente com todos os santos e anjos : Veni, Sancte Spiritus, nessa oração da sequência de Pentecostes, que o ‘gênio do cristianismo’ adaptou belissimamente ao canto gregoriano (existe também uma versão em vernáculo para o Brasil). Recomendamos a todos a récita dessa oração, que se encontra disponível no Lecionário.

Na primeira estrofe, diz-se assim : Veni, Sancte Spiritus, et emitte caelitus lucis tuae radium, isto é, ‘Espírito de Deus, enviai dos céus um raio de luz’. É apenas por meio da luz de Deus que enxergamos o mundo com visão sobrenatural. Como sugere a sequência nas sétima e oitava estrofes, aqueles que vivem na carne olham para esta vida e veem tudo sujo (sordidum), seco (aridum), ferido e doente (saucium). Para quem vive na carne, tudo é difícil (rigidum), de modo que o coração permanece frio (frigidum) e os caminhos, desviados (devium) de Deus.

Somente o Espírito Santo pode transformar essa visão. A sequência, por isso, pede assim : Lava quod est sordidum (ao sujo lavai) / riga quod est aridum (ao seco regai) / sana quod est saucium (curai o doente). O interessante desses três versos é que, ordenadamente, eles passam do ser menos animado ao mais animado, do mineral, passando pelo vegetal, ao animal : lava, por exemplo, a pedra suja, rega a planta seca, cura o animal ferido.

Na oitava estrofe, o Espírito é chamado de ferreiro, que vai atiçar o fogo para transformar a dureza do ferro. No fogo do amor de Deus, aquele material ‘rígido’ torna-se ‘flexível’ (flecte quod est rigidum); a sua ‘frieza’ é ‘aquecida’ (fove quod est frigidum) e, finalmente, o seu ‘desvio’ é ‘endireitado’ (rege quod est devium).

É fato bem concreto que, sem a luz sobrenatural da graça, enxergamos apenas sujeira, aridez e doença, e por elas somos movidos. E isso é perceptível mesmo entre as pessoas ditas ‘de Igreja’. Elas vivem ainda na carne e, por isso, veem apenas os membros miseráveis do santo Corpo de Cristo; vão à missa por moralismo, pelas sensações que irão sentir com algum canto, sermão ou rito, pela teologia da prosperidade ou pela possibilidade de conseguir algum relacionamento amoroso. Mas não são movidas pelo Espírito Santo.

Sem o Espírito Santo, nós iniciamos uma boa obra mas não a levamos à perfeição, de modo que nossa participação na Igreja se torna cada vez mais indiferente, fria e árida. E a própria Igreja se torna, para nós, um ambiente ‘sujo’, ‘rígido’, ‘torto’ e ‘doente, ainda que estejamos num mosteiro beneditino, na cartuxa ou na melhor paróquia do mundo.

A finalidade de tudo quanto dissemos até agora é, ao fim e ao cabo, libertar-nos, por meio do Espírito Santo, dessa visão tortuosa e carnal, a fim de que Ele aplique em nós a salvação de Jesus, mais especificamente, o salutis exitum, isto é, o êxito final da alegria eterna (perenne gaudium). No caminhar de nossa vida, o Espírito Santo deve nos dar as virtudes (virtutis meritum), com as quais iremos crescendo na santidade até chegarmos a nossa meta (salutis exitum), à perfeição final. Porque apenas desse modo seremos objetos concretos da redenção de Cristo, teremos a redenção subjetiva perfeitamente realizada em nossas almas.

Portanto, comecemos imediatamente a suplicar a presença do Espírito Santo, repetindo o exemplo dos Apóstolos e da Virgem Maria, que rezaram com perseverança durante nove dias, até a chegada do Senhor. A novena de Pentecostes é um microcosmos de como deve ser a nossa vida inteira. Com o auxílio de nossa Mãe Santíssima, aprenderemos a viver na intimidade do Espírito, o socorro do Céu. Ela, a Virgem Maria, os santos e os anjos bem podem se unir a nossa oração da sequência e dizer conosco : Veni, Sancte Spiritus, et emitte caelitus lucis tuae radium!

E o ‘Pai dos pobres’ (pater pauperum), ‘doador dos dons’ (dator munerum), e ‘luz dos corações’ (lumen cordium) virá logo em nosso auxílio, porque Ele é o ‘consolo que acalma’ (consolator optime), o ‘hóspede da alma’ (hospes animae), o nosso ‘doce alívio’ (dulce refrigerium).

Sim, Luz beatíssima, enche os corações dos teus fiéis (O lux beatissima, reple cordis intima tuorum fidelium).’



Fonte :
*Artigo na íntegra

quarta-feira, 27 de maio de 2020

“Deoversão” versus introversão: recolher-nos não em nós mesmos, mas em Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*A partir de texto de Martín Ugarteche Fernández, via A12

  
‘Martín Ugarteche Fernández escreveu um texto no qual explica a diferença entre a introversão e um conceito que pode soar novo para muita gente : a deoversão.

O texto parte de um livro escrito pelo Padre Penido sobre o cardeal Newman, no qual, entre vários outros aspectos da personalidade do santo inglês, ele destaca a ‘deoversão’. Trata-se, à primeira vista, de uma ‘modalidade da introversão’, mas há notável diferença entre os dois conceitos : a introversão consiste em ficar ensimesmado, ‘voltado para dentro de si mesmo’, enquanto a ‘deoversão’ é um voltar-se para Deus, é um movimento interior em direção a Ele, uma espécie de subida que se faz na experiência de comunhão com Ele.

Ambos os conceitos têm a ver com o silêncio, mas a ‘deoversão’ envolve um silêncio muito mais profundo que a simples ausência de palavras : é a capacidade de estarmos atentos e guardar os fatos no coração, a exemplo de Maria, Mãe de Jesus e nossa.

O homem e a mulher silentes discernem quando é conveniente falar e quando é conveniente calar. O critério fundamental para este discernimento é a caridade. Às vezes, esse desejo pode responder a uma necessidade que temos de estar a sós com Deus, de ouvir com mais clareza a Sua voz, de deixar que a Sua Palavra acaricie e renove o nosso coração, depois de um momento muito intenso de atividade. Se este for o caso, não querer falar parece plenamente justificado e, inclusive, pode ser uma manifestação de um chamado especial que Deus nos faz neste momento particular da nossa vida.

A ‘deoversão’ deveria ser uma experiência comum entre nós, cristãos, já que, desde o nosso Batismo, a Santíssima Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – habita em nosso coração. Ao fazermos um movimento de ‘introspecção’, de reentrar em nós mesmos, a nossa experiência deveria ser de profunda comunhão com Deus, que ‘é mais íntimo a mim do que eu mesmo’, como dizia Santo Agostinho.

Esta constatação de que a solidão não é o mais profundo em nós, já que fomos criados à imagem e semelhança de Deus e fomos feitos partícipes do amor trinitário por meio do nosso Batismo, também está presente numa das obras literárias de Karol Wojtyla, que depois veio a se tornar o Papa São João Paulo II : referimo-nos à sua obra teatral ‘Raio de paternidade’ :

‘Não me fizestes como um ser fechado, não me fechastes totalmente. A solidão não está, de fato, no mais profundo do meu ser, mas emerge num ponto bem preciso’.

Muitas vezes, em nossa vida, a resposta mais adequada às situações e pessoas com as quais lidamos é realmente a de calar, a de rezar e pedir a Deus alguma luz, antes de dizer ou fazer alguma coisa concreta. Isto não significa isolamento, mas reverência e constatação de que precisamos da ajuda de Deus para sermos de ajuda aos outros. Pode ser que, em algumas situações, realmente Deus nos peça a nossa intervenção, inclusive através de uma correção fraterna. Os mestres espirituais dizem que isto nunca deve ser feito em momentos de ira ou exaltação, mas quando estamos tranquilos. A outra pessoa deve perceber que a nossa intenção é realmente ajudar. Mesmo assim, a nossa correção pode não ser bem aceita num primeiro momento. Isso foi previsto por Nosso Senhor, quando explicou aos Seus discípulos como devia ser feita a correção numa comunidade cristã (Cf. Mt 18,15-18).

O máximo exemplo de silêncio nos vem do Senhor Jesus. Basta uma leitura atenta da Sua Paixão para percebermos como o Senhor escolhe os momentos para calar e falar, sempre visando a salvação de todos, inclusive daqueles que O crucificaram.

Depois d’Ele, a nossa Mãe, Santa Maria, nos oferece um elevado exemplo de silêncio. São pouquíssimas as suas palavras nos Evangelhos, sempre reverentes e em sintonia com a vontade de Deus. Talvez um dos momentos mais emblemáticos seja o das Bodas de Caná, passagem que é uma verdadeira escola de silêncio e de intimidade com Seu Filho, manifestada em gestos e palavras. O que a leva a intervir, a pedir o milagre, é a preocupação com os noivos, própria de quem é mãe e intercessora em favor de todos os homens e mulheres.

Peçamos a Ela que nos ajude a viver o silêncio, a saber quando falar e quando calar, para que tanto a fala quanto o silêncio sejam em nós uma concretização do amor, como o foram na vida dela.’



Fonte :
*Artigo na íntegra

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Uganda. A voz dos que não desistem


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 O médico italiano Antonio Loro com sua esposa e um grupo de jovens no hospital em Campala, Uganda
O médico italiano Antonio Loro com sua esposa e um grupo de jovens no hospital em Campala, Uganda

*Artigo de Antonella Palermo


‘Antonio Loro trabalha desde 2009 em Campala, capital da Uganda. Médico cirurgião, pediatra, nos fala sobre a situação social e da saúde da região, proporcionando-nos histórias de unidade, solidariedade, vida.  

O isolamento torna o país ainda mais frágil

Em Uganda o lockdown foi aplicado de forma muito restritiva; provavelmente nesta semana reabrirão os transportes e outras atividades. Pode-se dizer que criou uma situação muito difícil para um país que já vive em grande sofrimento, que está lutando de um ponto de vista econômico, como muitos no continente. ‘O impacto foi terrível’, comenta o doutor Antonio Loro. ‘Foram certamente medidas necessárias, acredito que o Governo fez bem - especifica – mas a situação social é muito frágil. A população está sofrendo, mas o governo parece se mostrar muito próximo ao povo, com contínuas comunicações pelo rádio a respeito da necessidade de limpeza, e de lavar as mãos. Também foram distribuidas máscaras gratuitas para todos, e também alimentos : feijão, um pouco de açúcar e um pouco de sabão. Mas aqui 80% da economia é informal e por isso o impacto sobre os trabalhadores foi terrível’.

O mistério do vírus com baixa carga viral

No hospital quisemos dar um sinal particular : ficar sempre aberto’, afirma o doutor Loro. ‘É claro, trabalhamos em regime mais lento, não tendo transportes, mas continuamos a manter contato com as organizações não governamentais com as quais cooperamos, continuamos a consultar as crianças, também operamos, embora com 20% das nossas possibilidades. Há alguns dias aumentamos um pouco o nosso ritmo e dentro de uma semana esperamos colocá-lo na normalidade’. É curioso pensar que não houve vítimas do coronavírus. ‘Na África Oriental não chegamos a 2 mil casos de contágio – disse o médico - e em Uganda na última quinta-feira (21/05) tínhamos 198 casos e nenhuma morte. A questão é : o vírus está circulando ou existem fatores nessas regiões que o detêm? Minha ideia é que alguma coisa existe - talvez seja descoberta no futuro - e que leva a um contágio muito baixo’. O fato é que não há pesquisas confiáveis, se pensarmos que seriam necessários 450 mil testes para testar 1% da população ugandesa, enquanto os testes realizados até agora estão abaixo de 100 mil, um número muito pequeno.

Comunicação do governo e distanciamento inviável

O problema realmente grande é como impor o distanciamento social nesses países, especialmente em favelas onde isso não é viável. ‘Os barracos geralmente são de 6 metros por 6 onde moram até 8 pessoas. O distanciamento nestes casos é impensável. No entanto, apesar disso, os números não estão crescendo exponencialmente. O governo tem feito um excelente trabalho - comenta o médico - e a população está muito, muito consciente dos riscos. Fora de cada loja há um lugar onde pode-se lavar as mãos’.

O hospital CoRSU é um farol

Doutor Antonio Loro trabalha em um hospital particular no-profit que ‘se tornou um farol para toda a região, não apenas em Uganda, pela especialidade em cirurgia plástica e ortopedia’. Foi fundado pela CBM (Christian Blind Mission), uma organização sem fins lucrativos que atua desde 1908 para assistir, cuidar, incluir e dar uma melhor qualidade de vida às pessoas com deficiência que vivem nos países mais pobres. Doutor Loro afirma que ‘chegam em Campala crianças vindas do Sudão do Sul, Ruanda, Burundi, Quênia, Congo. Cobrimos talvez 5-10% das necessidades ortopédicas pediátricas nesta área, mas também devemos considerar que as forças no campo de especialistas são muito limitadas e não comparáveis com as da Europa Ocidental’. ‘Somos 50 ortopedistas para toda a população ugandesa de 43 milhões de pessoas. Pode-se imaginar o que podemos fazer. No Sudão do Sul há 3, no Congo 10. É uma montanha de exigências. Já operamos mais de 70.000 crianças nestes dez anos. Muitos deles foram socialmente reintegrados. Muitos voltaram para a escola. O médico explica que o sucesso desta oferta, embora mínimo em relação às necessidades, deve-se ao acesso gratuito (a cirurgia é subsidiada e para as crianças carentes é gratuita) e à disponibilidade econômica graças às doações feitas às organizações internacionais que possibilitaram a compra de materiais e equipamentos adequados’.

As mortes silenciosas

O médico explica que em Uganda, a Covid tem encoberto as outras doenças silenciosas que continuam a causar vítimas. ‘Aqui, ainda hoje, dezenas de crianças morrerão de malária, provavelmente cerca de vinte mães por complicações relacionadas ao parto, talvez cinquenta por tuberculose e outras tantas por HIV’. ‘Para meu campo específico o que vemos são doenças relacionadas à pobreza e à miséria : infecções por falta de água potável, a higiene nas aldeias é muito escassa, assim como a nutrição. As dificuldades logísticas desempenham um papel importante. Meus colegas plásticos têm que lutar diariamente com queimaduras. Crianças caem, em brincadeiras, nas fogueiras no chão. Na minha área, tenho que lidar com infecções ósseas, tumores, desnutrição, tuberculose’. Há também o aspecto demográfico : a população aqui é muito jovem. Dos 43 milhões de habitantes, milhões têm menos de 18. ‘São números assustadores - acrescenta o médico - e especifica que ‘nascem 2 milhões de crianças por ano: destas, uma parte fica doente, outra nasce com doenças congênitas, e outra ainda terá necessidade dos serviços que o governo está tentando dar, mas a parcela do orçamento destinada à Saúde está abaixo de 12% do orçamento anual’.

Histórias de coragem para ganhar a vida

À noite há o toque de recolher para evitar crimes. ‘Crianças com doenças abdominais graves ou mães que têm que dar à luz acabam morrendo na rua’, conta Antonio Loro. Mas também surgem histórias de não resignação : ‘Causou grande comoção a história de uma enfermeira do norte de Uganda que, nesse período de lockdown, desafiou tudo e foi com um carrinho de mão buscar uma mãe em trabalho de parto e a empurrou por mais de 4 km, ao longo de uma estrada de terra no escuro, sozinha. E conseguiu salvá-la’. Conta também outra história, a de uma senhora que foi ajudada pelos vizinhos na hora do parto. ‘Para sair à noite é preciso de autocertificação. Estava escuro e não se podia chegar ao hospital porque havia problemas de eletricidade, devido ao mau tempo. Eles fizeram o parto com lanternas. Espero que chamem a criança de ‘luz’’. Isso é realmente fantástico. Também há histórias mais tristes, mas a solidariedade contagiou, como diz o Papa Francisco’.’


Fonte :
*Artigo na íntegra

sábado, 23 de maio de 2020

Ascensão: proximidade radical

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

ascension | Colin Dye
*Artigo d0 Padre Adroaldo Palaoro, SJ



‘O Mistério Pascal é uma realidade única : nem a ressurreição, nem a ascensão, nem o sentar-se à direita do Pai, nem a glorificação, nem a vinda do Espírito, são fatos separados.

As diferentes ‘expressões’ do Mistério Pascal, pertencem ao hoje como ao ontem, são tão nossas como foram para Pedro, João ou Madalena. Não aconteceram só no passado, mas também estão acontecendo neste instante. São realidades que estão afetando nossa própria vida. Podemos e devemos vivê-las como os(as) discípulos(as) de Jesus as viveram.

Para nós seguidores(as) de Jesus, ascensão é abertura para o cotidiano, para a realidade do serviço. É preciso partir e viver o chamado do Mestre para prolongar, neste mundo, seu modo de ser e de viver.

A ascensão de Jesus não significa evasão aos céus – ‘Homens da Galileia, por que ficai aqui, parados, olhando para o céu?’ (At. 1,11) – mas imersão na vida. Aquele que Vive não escapou do mundo; sua ascensão significa expansão e presença no universo inteiro, plenificando tudo em todos; Ele agora assume todos os rostos, identifica-se com toda a humanidade e continua a caminhar pelas Galileias dos excluídos, das periferias, dos pobres, acampa junto aqueles que vivem às margens...

Ao celebrarmos a entrada de Jesus na glória, não celebramos uma despedida ou um distanciamento, mas um novo modo de presença; celebramos a proximidade radical d’Aquele que é, realmente, o Emanuel, o Deus-conosco para sempre.

Ao ‘subir aos céus’, Jesus se faz mais radicalmente próximo de todos, ultrapassando tempo e espaço. ascensão não é afastamento, mas uma maneira nova de fazer-se presente a todos e em todos os lugares.

O único que Jesus faz é restabelecer e assegurar a proximidade e comunicação com toda a humanidade. Isto deve nos dar uma grande alegria, pois Ele permanece aqui na terra, junto a nós. Assim, a ascensão de Jesus nos desafia a romper a estreiteza de nossa vida para expandi-la a horizontes mais inspiradores.

Na festa da ascensão deste ano, a liturgia nos propõe a cena final do evangelho de Mateus; embora não fale expressamente da ‘elevação’ de Jesus ao céu, nele se condensa todo o caminho anterior, e se abre ao mundo inteiro, como presença e promessa de vida.

Mateus termina seu evangelho narrando um breve encontro entre Jesus Ressuscitado e o grupo dos onze que havia regressado à Galileia, depois de receber a mensagem das mulheres que tinham ido ao sepulcro. Este encontro acontece longe de Jerusalém, afastado do lugar onde eles tinham vivido a experiência traumática da paixão de Jesus. Esta distância física é também existencial. Depois da crise, do medo, do desespero que os havia paralisado, o Mestre os convida a voltar à Galileia, às origens, para percorrer de novo os caminhos, para ‘fazer memória’ das experiências junto d’Ele e que agora hão de reler de forma diferente.

A ascensão é a festa por excelência da nova proximidade de Jesus. No entanto, devido à situação pandêmica, celebramos fisicamente distanciados uns dos outros; mas, a ascensão pode ser um momento oportuno para ativar outras maneiras de nos fazer próximos, inspirados na proximidade do Ressuscitado.

A festa da ascensão pode também ser uma ocasião para desvelar (tirar a máscara) o farisaísmo que está latente em todos nós : a vivência camuflada de um distanciamento humano.

O isolamento sanitário pôs às claras esta dura realidade : já levamos anos praticando o distanciamento político, a polarização religiosa, o enfrentamento de extremos, a separação ideológica, a distância como meio para nos fechar em nossas posições fanáticas, preconceituosas e intolerantes. Uma voz surda sempre esteve presente : devemos nos separar dos outros, daqueles que pensam diferente, sentem diferente, vivem diferente, assumem posições e opções diferentes...

Não podemos deixar que a atual crise sanitária acentue mais ainda os diferentes distanciamentos que estavam escondidos, mas que agora vieram à tona com mais força.

Esta é a dura contradição que estamos vivendo : se, estar separados fisicamente de nossos seres queridos e vizinhos é o mais eficaz para combater a pandemia, precisamos, então, buscar outras expressões de proximidade para que essa distância não se converta em ecossistema e modo de vida. A distância sanitária não pode servir de cortina de fumaça para reforçar outras distâncias que se abrem diante de nós, no campo social-político-religioso-cultural...

Não podemos deixar que o sonho do Reino, o projeto universal de Jesus, se dilua em meio às distâncias artificiais que desumanizam. Hoje, mais do que nunca, devemos celebrar e recordar que juntos, unidos, orientados para um horizonte comum, poderemos enfrentar qualquer crise que nos venha. Talvez, esta pandemia nos oferece uma ótima oportunidade para crermos nisso, de verdade : de transformar declarações ocas em atos sólidos, de resumir tudo o que é a humanidade numa só palavra : proximidade. Proximidade com aqueles que sofrem, com aqueles que buscam um mundo melhor, com aqueles que menos tem, com aqueles que se sentem excluídos... Em meio a um mundo onde a distância e a suspeita crescem e se enraízam, a ascensão é a alternativa de proximidade e colaboração que todos precisamos.

Não nos sobram muitas outras oportunidades de transformar este sonho em realidade. Vivemos na distância, necessária no momento, mas não façamos dela nosso estilo de vida; não devemos convertê-la em meio que determine o que somos. Somos chamados a ser algo mais que compartimentos estanques e seguros, isolados. Podemos ser ‘praça comum’ de encontro e diálogo, de mãos estendidas e ouvidos atentos para dar forma a isso que tanto precisamos : sentir-nos próximos uns dos outros.

À luz da ascensão podemos afirmar : fisicamente distanciados é quando nos sentimos mais próximos.

Podemos recordar o constante convite de Jesus a provocar encontros que ajudem a integrar, a reunir, a religar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas... esperando por sinergia. Na verdade, Ele provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do ‘Reino de Deus’.

Como homem e como mulher, trazemos esta força interior que nos faz ‘sair de nós mesmos’ e criar laços, fortalecer a comunhão, romper distâncias...

O ser humano não é feito para viver só; ele necessita conviver, viver-com-os-outros; ele é um ser constitutivamente aberto, essencialmente em referência a outras pessoas : estabelece com os outros uma interação, entrelaça-se com eles, e forma um nós : a comunidade.

Textos bíblicos : Mt 28,16-20

Na oração : Jesus vive sua proximidade radical através dos seus(suas) seguidores(as) que se fazem próximos. A ‘opção de vida’ em favor do próximo é o indicador de uma vida aberta e comprometida na construção de uma convivência social na qual predomine a ternura e não a dureza de coração, o respeito à vida e o amor e não a violência e a exclusão.

  • De quem eu sou próximo, ou, como me faço próximo, nestes tempos de isolamento social?


Fonte :
*Artigo na íntegra