quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A necessidade de crise na teologia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
Acessórios são derretidos em um cadinho (ou crisol) no mercado de ouro da capital sudanesa, Cartum. A palavra crise significa separar, depurar, como se faz com o ouro.

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

‘É muito comum ouvirmos falar de crises, especialmente no momento atual, no qual um mau governo se instaurou no país. Essa palavra é constantemente ouvida em noticiários, análises econômicas e questões éticas. Entre bons analistas, é categórico o veredito de que passamos por uma crise.

dicionário de filosofia online traz como uma das definições da palavra crise (do grego krisis) o termo ‘juízo’, entendido ‘(...)como decisão final sobre um processo e ainda, generalizando, decisão de um acontecer num sentido ou noutro. (...) De um modo geral, crise designa uma fase ou uma situação perigosa, da qual pode resultar algo benéfico ou algo pernicioso para o indivíduo ou para a comunidade que por ele passa um estado transitório de incerteza e dificuldades, mas também cheio de possibilidades de renovação’.

Cabe aqui reter essa característica da definição quando falamos a respeito da teologia. Ao contrário do que muitas pessoas tendem a pensar, as crises não necessariamente indicam algo ruim, mas, como nos mostra o dicionário, é também momento de possibilidades, ainda que marcado pelas incertezas e dificuldades ao longo do processo. Se isso é mantido em mente, então qualquer teologia séria deve se mostrar disposta a entrar nos períodos de crise, naqueles em que ela faz um juízo sobre si e se coloca em situações perigosas, a fim de repensar sua relação consigo e com o próprio mundo.

Nesse sentido, somente uma teologia em crise é capaz de prosseguir. Do contrário, torna-se fechada em si, confortável no seu lugar seguro, e com respostas prontas para todas as novas situações que a sociedade do seu tempo coloca.

Uma teologia que não entra em crise em alguns momentos se torna engessada, esquecendo-se de acompanhar os sinais dos tempos. Quando isso acontece, ao invés de se mostrar como voz a ser ouvida, é vista e percebida como alguém que não tem nada de útil a dizer, como alguém que fala das ‘eras de ouro’, ou como tola que constantemente pergunta ‘Por que os dias do passado foram melhores que os de hoje?’.

Teologias em crise são fundamentais para a possibilidade de renovação da própria teologia. Se nas relações interpessoais os momentos de crise se mostram como oportunidades para se repensar a vida, as atitudes, os desejos e o sonhos, para a teologia esses momentos se mostram como reveladores de novas maneiras de falar sobre aquilo que foi narrado sobre Deus.

Ao mesmo tempo, faz despontar novos teólogos e teólogas, que estão fora do status quo criado pelos ambientes teológicos e, por isso mesmo, com maior probabilidade de não terem a mentalidade fechada em dogmatismos que, como areia movediça, puxam para dentro deles tudo o que entra em seus territórios (uma armadilha na qual muitos teólogos e teólogas caem ao longo de sua trajetória).

Se nas relações humanas vivenciar crises com coragem é salutar para se obter um crescimento pessoal e relacional, na teologia, que trata como um de seus temas a relação entre o ser humano e Deus, tais crises também se mostram imprescindíveis para o fazer teológico. Passar por elas, então, não deve ser motivo de medo ou temor, mas de confiança e esperança de que, após ela, será possível se ter uma teologia mais depurada que, falando ao seu tempo, torne-se digna de ser ouvida.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1474015/2020/09/a-necessidade-de-crise-na-teologia/


terça-feira, 29 de setembro de 2020

A história de Galileu, na relação ciência e Igreja, foi mal contada

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 

'Galileu diante do Santo Ofício',

quadro de Joseph-Nicolas Robert-Fleury

*Artigo de Guy Consolmagno, S.J., diretor do Observatório do Vaticano e

Christopher M. Graney, pesquisador adjunto do Observatório do Vaticano


‘Todos estão familiarizados com a lenda de Galileu : um dos grandes astrônomos da história que corajosamente enfrentou a Inquisição em defesa de seu argumento de que a Terra orbitava o sol, e não o contrário. Em variações recentes desse mito, a Igreja Católica foi colocada no papel de negadora da ciência, que usou as Escrituras como um porrete para desmentir as alegações de Galileu e ainda o considerou culpado de heresia.

Parte história, parte ficção científica, aquela lenda de Galileu é menos um conto do que um mito. Essa história afirma explicar o que aconteceu há 400 anos e aponta para um futuro em que tais erros nunca acontecerão novamente. Mas as histórias que contamos nunca são realmente sobre o passado ou sobre o futuro; são sobre os tempos em que foram escritas. O mito de Galileu reflete a forma como entendemos ciência e história, Igreja e mitologia em nossos tempos de conflito social e pandemia de Covid-19.

Consideremos um personagem-chave na história de Galileu : a grã-duquesa Christina de Lorena. Descendente da família real francesa, viúva do grão-duque Medici Fernando I da Toscana e mãe de Cosimo II, que governou essa região italiana na década de 1610. Galileu veio da Toscana e Ferdinand deu a ele seu primeiro emprego como professor, ensinando matemática a Cosimo, que fez dele seu filósofo e matemático oficial da corte.

Em dezembro de 1613, a grã-duquesa, uma mulher devotamente religiosa, perguntou ao amigo de Galileu, o monge beneditino Benedetto Castelli, sobre as coisas que Galileu havia descoberto com seu telescópio e seu apoio à ideia de Nicolau Copérnico de que a Terra, e não o sol, movia-se. Para Christina, isso parecia contrário a certos versículos bíblicos; Eclesiástes 1, 5, por exemplo, diz : ‘Nasce o sol, e o sol se põe, e apressa-se e volta ao seu lugar de onde nasceu’. Castelli, embora intimidado pela perspectiva de discutir com a realeza, educada e respeitosamente defendeu a nova ideia do movimento da Terra.

Sabemos de tudo isso porque Castelli descreveu o fato a Galileu em uma carta datada de 14 de dezembro de 1613. Galileu respondeu com uma carta a Castelli uma semana depois e, em seguida, com outra mais longa para a própria Christina. Essas cartas passaram a ser conhecidas como discussões magistrais de ciência e religião, cheias de afirmações como ‘A Sagrada Escritura e a natureza derivam igualmente da Palavra Divina, a primeira como ditado do Espírito Santo, a última como o mais obediente executor da ordem de Deus’.

Todavia, eram palavras sobre religião, um tópico em que Galileu não tinha treinamento formal nem licença da Igreja para ensinar. Em 1615, a carta a Castelli se tornou o assunto de uma queixa apresentada contra Galileu na Inquisição. A história de Galileu, cheia de política religiosa, personalidade e mesquinhez, era já pública e estava na boca das pessoas.

Christina era então uma negadora da ciência? A grã-duquesa e outros como ela rejeitaram a ciência pelas Escrituras? Na verdade não.

Razões científicas convincentes

Observemos que Galileu respondeu a Christina não por meio de argumentos científicos, mas concentrando-se na Bíblia. Isso porque Christina não discordou da ciência, mas garantiu a Castelli que tudo o que Galileu havia descoberto era verdade. Afinal, em abril de 1611, uma equipe de astrônomos jesuítas havia verificado as descobertas de Galileu, descobertas que mostravam que Júpiter tinha luas ao seu redor, que Vênus circulava o sol e assim por diante.

O problema era que as luas em volta de Júpiter ou Vênus em volta do Sol não mostravam que a Terra se movia. Essas descobertas eram totalmente compatíveis com as ideias de Tycho Brahe, o astrônomo mais capaz da geração anterior. Brahe imaginou o sol, a lua e as estrelas circundando uma Terra imóvel, enquanto os planetas circundavam o sol. Os sistemas de Brahe e Copérnico eram idênticos quando se tratava de observações envolvendo o sol, a lua e os planetas.

Mas há um problema mais sutil em ver a história de Galileu como uma narrativa da Igreja negando a ciência. Isso implica que a ciência é uma visão de mundo única e monolítica baseada em fatos imutáveis que podem ser provados objetivamente. Consideremos o sistema Brahe. Ele admirava Copérnico e seu trabalho, mas argumentou contra Copérnico. Ele fez isso com base não na Bíblia, mas no que podemos reconhecer hoje como fundamentos científicos convincentes.

Olhe para as estrelas

Por um lado, a física da época, a física geocêntrica de Aristóteles, explicava os movimentos dos corpos celestes assumindo que eram feitos de uma ‘quintessência’ leve e misteriosa, não encontrada na Terra, que naturalmente permaneceu no céu e se moveu em círculos. Em contraste, as coisas terrenas eram pesadas e naturalmente tendiam a descansar. Não havia nenhuma explicação física de como uma Terra pesada poderia se mover para sempre ao redor do sol. (As leis do movimento de Newton ainda estavam décadas longe no futuro).

Um segundo argumento convincente para o sistema de Brahe era o tamanho e a posição das estrelas. Se a Terra estivesse se movendo, seu movimento em relação às estrelas deveria ter sido detectado. O próprio Brahe observou estrelas com exatidão notável e precisa; mas o astrônomo não havia detectado nada. Portanto, ou a Terra não se moveu ou as estrelas estavam tão distantes que a órbita da Terra não era nada em comparação. Mas como alguém poderia saber?

Os astrônomos da época pensaram que o novo telescópio de Galileu poderia dar-lhes as respostas. Eles pensaram que poderiam medir os tamanhos aparentes das estrelas porque, como afirmou Galileu, o telescópio era capaz de ‘mostrar o disco da estrela nu e muitas vezes ampliado’. E então, supondo que essas estrelas tivessem o mesmo tamanho dos planetas ou do sol, eles poderiam calcular sua distância da Terra.

O astrônomo alemão Simon Marius, medindo os discos que viu em seu telescópio, fez o cálculo e acabou endossando o sistema de Brahe, não o de Copérnico. O mesmo fez o astrônomo jesuíta Christoph Scheiner, que observou que, se a órbita da Terra não pode ser detectada em um universo heliocêntrico, mas o tamanho de uma estrela sim, então a estrela deve ser maior do que essa órbita. Cada estrela observável teria que ser maior, tornando o Sol e todos os outros corpos celestes muito pequenos. Em contraste, no sistema geocêntrico de Brahe, os tamanhos das estrelas foram comparados com outros corpos celestes.

O problema era que ninguém na época entendia as sutilezas dos telescópios. Os telescópios focalizam os objetos de maneira imperfeita. O que deveria ser um ponto de luz em um telescópio acaba parecendo um ponto difuso. Esse local era o que os astrônomos, incluindo Galileu, estavam medindo. Uma compreensão total dos telescópios e do movimento relativo das estrelas não seria alcançada até o século 19.

Marés Altas (e Baixas)

Um terceiro argumento científico contra o movimento da Terra era que um objeto em queda não deveria cair diretamente, mas deveria parecer ligeiramente desviado se o solo ao qual ele cai fosse parte de uma Terra em rotação. Esse pequeno efeito foi sugerido pela primeira vez por cientistas jesuítas da época de Galileu. Hoje, é considerado um fator-chave nos padrões climáticos e é chamado de efeito Coriolis, em homenagem a um cientista do século 19. Os jesuítas, compreensivelmente incapazes de detectá-lo, argumentaram que sua ausência sugeria a imobilidade da Terra.

As cartas de Galileu para Castelli e Christina disseram pouco para aqueles que foram atraídos pelas ideias de Brahe por razões científicas como essas. Em vez disso, Galileu forneceria um argumento científico para o movimento da Terra no ensaio de 1616 Discurso sobre as marés e em seu famoso livro de 1632, Diálogo sobre os Sistemas de Dois Mundos, que acabou levando o cientista a seu julgamento.

Nesses dois escritos, Galileu afirmou que o duplo movimento de rotação da Terra em torno de seu próprio eixo, mais sua revolução em torno do sol, espalha os oceanos para frente e para trás diariamente em suas bacias, gerando as marés. Mas essa ação por si só não poderia explicar as marés do Mediterrâneo, que ocorrem duas vezes ao dia. Para isso, Galileu argumentou que os períodos das marés em diferentes lugares eram determinados por características locais que refletiam na oscilação da água para frente e para trás dentro da bacia local. Assim, as marés duas vezes ao dia eram características apenas do Mediterrâneo.

Em seu ensaio de 1616, Galileu afirmou que as marés do Oceano Atlântico observadas em Lisboa, Portugal, ocorriam uma vez ao dia, de acordo com sua teoria. Em 1619, entretanto, Galileu foi informado (por Richard White da Inglaterra) de que essa afirmação estava errada; as marés também acontecem duas vezes ao dia em Lisboa. Isso deveria ter provado que a teoria de Galileu era falsa. No entanto, em 1632, Galileu o apresentou novamente, com uma mudança fundamental em seu argumento de 1616 : ele omitiu todas as menções às marés do Atlântico.

O argumento científico de Galileu era falacioso. A ciência da época – a evidência observável, o raciocínio mais correto – estava contra ele e sua teoria. E seus oponentes sabiam disso. Francesco Ingoli, um sacerdote teatino que desempenhou um papel na censura da obra de Copérnico pela Igreja em 1616, citou o problema do tamanho das estrelas e o problema da queda dos corpos. Melchoir Inchofer, S.J., que desempenhou um papel na rejeição do Diálogo, observou o problema do tamanho das estrelas; o sacerdote Zaccaria Pasqualigo, também envolvido nessa rejeição, destacou a questão dos períodos das marés. Portanto, quando homens da Igreja ou uma mulher real argumentam contra Galileu, eles não estavam negando a ciência. Eles tinham a ciência a seu lado.

No entanto, como sabemos agora, estavam errados.

A natureza da Ciência

Isso não quer dizer que Galileu finalmente provou estar ‘certo’. O que dá ao mito de Galileu sua ambiguidade é que o argumento é supostamente sobre ‘ciência’ e ‘fatos’ versus pessoas poderosas que atacam a ‘verdade’. Mas ninguém hoje vê o universo como Galileu o via. A Terra pode não ser o centro do universo, mas também o sol não é; ele é apenas uma estrela em uma galáxia de estrelas, que, por sua vez, é uma entre um universo de galáxias. E a compreensão atual do universo mal tem 100 anos e vem com suas próprias ‘quintessências’ misteriosas, como ‘matéria escura’ e ‘energia escura’. Quem sabe como a ciência descreverá o universo daqui a 100 ou 400 anos? Qualquer história de Galileu que termine com uma finalidade triunfante não compreende a natureza da própria ciência.

Além disso, tal história deixa passar as coisas sobre Galileu que o tornaram grande : sua visão mais ampla; o talento artístico que lhe permitiu ver e intuir a verdade ainda que de forma incompleta; sua habilidade matemática para fazer as perguntas certas e sugerir maneiras de buscar respostas; seu gênio para comunicar suas ideias a um público amplo e influente.

Mas assim como devemos reconhecer que a ciência não é monolítica nem sempre certa, também devemos ser cautelosos ao tratar o outro lado dessa equação, a Igreja, como se ela também fosse uma única entidade falando a uma única voz. Mesmo na época de Galileu, muitos clérigos (como Castelli) defenderam seu lado. Na verdade, um dos enigmas fascinantes de toda a história é que por muitos anos parecia que o papa Urbano VIII, que seria a força por trás do julgamento de Galileu, era ele mesmo um homem adepto a Galileu.

A história de Galileu certamente não é uma história da Igreja versus a ciência. Mas o julgamento de Galileu foi de fato uma terrível injustiça. Os historiadores debatem a raiz dessa infâmia. Alguns culpam as personalidades envolvidas. Outros citam as pressões políticas e econômicas envolvendo a Santa Sé e a riqueza da família Médici, representada pela grã-duquesa Christina. Outros ainda citam a convulsão da Guerra dos Trinta Anos, que atingiu seu auge durante a época do julgamento de Galileu. Todas essas pressões eram reais. Nenhuma justifica um julgamento de heresia.

E vamos encarar uma verdade : na escala de coisas que a Igreja se engana, a história de Galileu está competindo com muitos outros pecados que sempre estão diante de nós. Para citar apenas um exemplo : uma geração após Galileu, os padres jesuítas em Maryland teriam escravos. Esse racismo infecta a sociedade até hoje.

Estudamos o que aconteceu na história para imaginar um futuro melhor. Essa é a relevância imediata da história de Galileu para nós hoje. Mas devemos ter cuidado para que as histórias que contamos a nós mesmos não se encaixem perfeitamente em estereótipos contemporâneos como uma ‘negação da ciência’.

Se não diagnosticarmos os problemas corretamente, não poderemos encontrar boas soluções. Você não trata a Covid-19 como se fosse uma gripe. Você não trata o racismo sistêmico como se fosse meramente uma questão econômica. Você não trata os erros que a Igreja cometeu com Galileu assumindo que foi devido à negação da ciência pela Igreja. E você não trata o problema da negação da ciência hoje por meio de uma ficção de que estava supostamente na raiz da história de Galileu.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1473773/2020/09/a-historia-de-galileu-na-relacao-ciencia-e-igreja-foi-mal-contada/

 

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Como as religiões têm reagido ao isolamento durante a pandemia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
Padre Fábio de Melo é um exemplo dos padres que se adaptaram à nova realidade, celebrando suas missas dominicais através de lives (Reprodução Instagram @pefabiodemelo)

*Artigo do Padre Wladimir Porreca,

Diocese de São João da Boa Vista

Paróquia São Sebastião em Mococa, SP

 

‘No cenário de mudanças rápidas nas atividades religiosas impostas pela pandemia da Covid-19, o isolamento social e as práticas higiênicas, exigiram das lideranças religiosas criarem alternativas para manterem o vínculo humano e religioso e prestarem a devida assistência religiosa aos adeptos dos segmentos religiosos.

Pelos meios midiáticos grande parte dos líderes religiosos em todo mundo, continuaram as atividades e orientações religiosas, para possibilitar aos fiéis (mesmo aqueles com grandes dificuldades em terem os aparelhos/recursos tecnológicos e em manipular os meios tecnológicos), proximidade as práticas e orientações religiosas  e fraternas/solidárias mais acessíveis, minimizando a ausência sofrida nos ritos ou nas celebrações em lugares religiosos costumeiros e o empenho da caridade. 

Houve uma busca em orientar e valorizar outros componentes dos ritos ou celebrações, redimensionando as partes ausentes, salientando o argumento do bem maior na manutenção e preservação da vida, valorizando o essencial e a criatividade dos componentes presentes e possíveis. E ainda apelos e ações solidárias concretas constantes em prol da coletividade.

Na aventura das mudanças e adaptações em tempo pandêmico, as religiões, em sua estrutura e dinâmica, com suas doutrinas, ritos, valores e outros, ganharam considerável amplitude no ciberespaço com as tecnologias, promovendo uma verdadeira pandemia de transmissões religiosas : ritos ou celebrações, lives, estudos, comunicados e outros. 

Se os corpos ficam em casa, pelo menos os olhos, os ouvidos, as mentes e os corações tentam sair, encontrar-se, por isso não tardaram em se conectar. Com reinvenção do rito, do culto e das práticas religiosas e outras atividades religiosas, a adaptação a realidade pandêmica evidenciou e instalou ‘novos’ modelos religiosos mais descentralizados da liderança religiosa, bem como, uma grande preocupação de como serão as atividades religiosas pós pandemia (Grillo, 2020; Hott, 2020).  

No que se refere às questões financeiras, é importante descrever que muitas organizações religiosas fizeram também reformulações administrativas, promovendo uma contenção de gastos e inúmeras iniciativas para se criar e ampliar formas de arrecadação de dinheiro. Abriram-se outras frentes de promoção e venda, sejam elas de comida delivery, bazares e leilões online, coleta e ofertas via internet e tantos outros meios de obtenção de recursos financeiros, sem negar, reduzir ou ignorar as restrições e orientações sanitárias, afinal era preciso manter as finanças dos lugares religiosos. 

Outro fator importante que merece ser considerado na adaptação é o fato de os fiéis reassumirem os princípios da esperança e da caridade/solidariedade, podendo adquirirem a capacidade de se ressignificarem como pessoa religiosa, asseguradas em sua fé, que, sem saírem da realidade pandêmica, aventuraram-se a construir um olhar de possibilidades para retomarem e revalorizarem alguns valores esquecidos, bem como em concretizar ações anteriormente idealizadas.

Nem todas as lideranças e adeptos religiosos conseguiram atingir níveis considerados de adaptação e seguirem as restrições e orientações sanitárias de manter e ampliar o isolamento social ou seguir os protocolos para a volta gradual para conter o avanço do SARS-CoV-2. 

Alguns líderes religiosos hindus, judeus, cristãos, mulçumanos e budistas, em especial, assumiram e mantiveram inúmeras resistências em mudar os hábitos e costumes religiosos, desde aqueles que negavam veementemente a existência do vírus, até aqueles que garantiram a sua cura (McLaughlin, 2020). 

Negacionismo

Alguns desses líderes assumiram uma postura negacionista, outros reducionista e outros, ainda, de conveniência, optando por negar ou diminuir e/ou desviar a gravidade da Covid-19, colocando a si mesmos e a seus seguidores em situação de risco de contaminação da doença, com possíveis mortes e criação de potenciais disseminadores do novo coronavírus. 

Alguns desses religiosos, não em sua maioria, enfrentaram penalidades civis, descréditos e críticas em suas comunidades religiosas, na opinião pública e na mídia, pelas atitudes irresponsáveis e contraditórias ao seu papel religioso.

A postura negacionista de alguns religiosos, apoiados em teorias e discursos conspiratórios, contraditórios e sem aprofundamentos, em oposição às evidências médicas, aos dados científicos, à mídia, disseminaram o vírus da desconfiança, apoiados nos princípios morais que lhes eram elencados, com conteúdos religiosos admissíveis, facilitando a aceitação, por seus seguidores, de uma posição negacionista. 

Esses religiosos discordavam do isolamento social e das orientações das autoridades sanitárias e insistiam em manter seus lugares abertos, com aglomeração de pessoas nos ritos ou nas celebrações, como se a doença respiratória Covid-19 não existisse.

Com essa postura negacionista, desenvolveu-se e ampliou-se o fenômeno de desinformações de realidades verdadeiras da Covid-19, não somente como informações falsas, mas também enganosas, imprecisas e inconclusivas.  Os grupos religiosos são lugares férteis para a propagação de informações por serem considerados confiáveis, não somente pela liderança - como um rabino, pastor(a), padre, mestre(a) e outros(as) - mas também pelos adeptos, pois é um grupo de considerada afeição, apoio e credibilidade.

No Brasil, o Coletivo Bereia publicou um levantamento realizado em sites religiosos (12/12/2019 – 9/06/ 2020) e atividades digitais checados pelo Coletivo, sobre a desinformação com temática religiosa.  Os 53 artigos que compuseram a análise foram assim classificados : 23% verdadeiros, 30% enganosos, 17% imprecisos, 2% inconclusivos e 28% falsos. No total, 77% eram informações cuja veracidade não pode ser confirmada (Classificação de Notícias Bereia, 2020).

Reducionismo

Um outra parcela das lideranças religiosas assumiu uma postura reducionista, em que se diminuía a gravidade da disseminação  do vírus e o perigo da doença, buscando assegurarem-se nos princípios do fideísmo, isto é, utilizavam a doutrina da exclusividade da fé pela fé : só se aceita a fé sobrenatural na busca de certezas e verdades, só ela é capaz de conhecer a verdade. 

Nos princípios fideístas, há um isolamento da razão humana, esta é incapaz de atingir o verdadeiro conhecimento e de interpretar a existência, portanto, também a ciência seria impotente para alcançar as verdades sobre a pandemia da Covid-19 e só Deus poderá livrar e proteger as pessoas de qualquer doença ou mal. 

Essa é uma postura de que o humano seria incapaz de se salvar da doença, somente Deus poderia protegê-lo e livrá-lo. As pessoas não seriam contaminadas simplesmente porque tinham fé. Várias crenças nessa direção fideísta propagavam que, ao serem utilizados os recursos da prevenção sanitária, se estaria desconfiando da força de Deus e da sua proteção, portanto, seriam infiéis e ingratos. 

O fideísmo garante a fidelidade dos seguidores aos líderes religiosos, os quais os alimentam e os mantêm dependentes, em grande parte. Essa prática é utilizada por lideranças religiosas que se asseguram na teologia e prática ‘milagreira e da cura’, cujo poder do líder religioso realizaria tal proeza.

Convenientes

Outras posturas convenientes de resistência ao isolamento social e práticas sanitárias foram tomadas por variados grupos de líderes religiosos. Destacam-se os que assumiram e rejeitaram o quê e como lhes mais convinham, em relação ao isolamento social e às práticas de prevenção. 

Nota-se que esse grupo resistiu parcialmente às mudanças, não as contrapunha de forma clara e autêntica, tinha consciência da gravidade da contaminação e da doença, era cauteloso e mantinha as mesmas atividades religiosas, sem conflitos e, de maneira não explícita, procurava brechas sanitárias e religiosas para manter o que, ideologicamente individual, impunha como prática religiosa comum.

A postura de resistência de conveniência, além de ser um exercício perigoso do poder religioso, pode expressar uma crise de identidade e/ou absentismo da liderança religiosa que o exerce, pois esta não conseguiria redimensionar as suas atividades religiosas fora do seu controle e de seu padrão de funcionamento. 

A resistência em aceitar o isolamento social também passa pelas questões financeiras e econômicas das religiões. Com a suspensão dos ritos ou das celebrações presenciais, por tempo indeterminado, as coletas, ofertas e doações ficaram reduzidas e colocaram as finanças das religiões em alerta de falência econômica. 

Normalmente, os lugares religiosos e o vínculo com os adeptos são centrais para o funcionamento da religiosidade; sem o espaço territorial não há presença de pessoas; portanto, as atividades também não acontecem e a economia fica frágil. Sem dinheiro, toda a estrutura religiosa é prejudicada. Por mais espiritual que seja, tanto a liderança como o lugar são materiais. E os meios tecnológicos nem sempre garantem doações substanciosas dos adeptos.

Considerações

As adaptações e reações religiosas nesse tempo inesperado de pandemia da Covid-19 com os seus contornos e limites na existência humana, podem ser uma companhia eficaz e eficiente, porque não, sadia e saudável, na convivência consigo e com o outro no contexto que estamos inseridos. 

Mas podem ser uma companhia de risco, se não nos impulsionam a seguir sem nos distrair, ou deixar-nos levar por qualquer ‘solução’, proposta, explicação, a fim de distrair-nos ou ausentar-nos da realidade da provocação de vivermos intensamente esse tempo de grande aprendizagens e oportunidades, ou mesmo em esvaziar o acontecimento que nos alcançou, reduzindo-o a um âmbito de relações que nos proteja do impacto das coisas, no esforço de manter o velho estilo de vida que não nos cabe mais, ou ainda, que nos poupe do desafio das circunstâncias de renascer pessoas mais humanas, que se deixam estar suspensos e serem arrastadas para o caos da pandemia (Carron, 2020; Porreca, 2020; Giussani, Alberto & Prades, 2019).’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1473126/2020/09/como-as-religioes-tem-reagido-ao-isolamento-durante-a-pandemia/


domingo, 27 de setembro de 2020

O papado em diálogo com os comunistas

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
O líder soviético Gorbachev visita o papa João Paulo II no Vaticano, em 1989


*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

  

‘Igreja Católica e comunismo. Encíclicas, decretos e excomunhões marcam essa relação conturbada e, por assim dizer, incompatível. De 1846 até a metade do século 20, os pontífices condenaram, abertamente, essa ideologia política. A Igreja Católica enfrentou, nessa fase, um dos maiores desafios da sua história.

Para além do massacre causado pelo regime, que se instaurou na Europa a partir da Revolução Russa de 1917, era o materialismo ateu, imposto pelo sistema, o que mais assustava os membros do alto escalão do Vaticano. Não por acaso, encontramos nas prateleiras dos arquivos pontifícios mais condenações ao comunismo que aos fascismos, por exemplo.

Em vista dos próprios interesses, o ditador fascista Benito Mussolini, um ateu declarado, reconheceu, após a sua ascensão, a importância do catolicismo. Querendo ou não, o caráter transnacional da religião alimentava o mito imperial fascista. Por conta disso, passou a se considerar uma espécie de novo Constantino, em referência ao imperador romano que elevou o cristianismo ao status de religião lícita no século 4 e, através disso, criou as bases para a implantação de sua política de expansão territorial.

E para corresponder ainda mais à comparação, Mussolini fez várias concessões à Igreja Católica enquanto esteve no poder. Grata pelos favores, a instituição se omitiu diante de várias atrocidades perpetradas pelo governo do Duce. Uma encíclica publicada por Pio XI em 1931 (Non abbiamo bisogno) chegou a repudiar algumas ações do partido. No entanto, o documento não emitia nenhuma condenação sistêmica ao regime.

Excomunhão? Só para os vermelhos

Vale salientar que, curiosamente, os fascistas jamais foram excomungados. Já os comunistas, sim. Em 1949, Pio XII publicou um decreto no qual aplicava esse tipo de pena aos católicos italianos que aderissem ao partido. Esse tipo de filiação era considerada uma apostasia pelo então pontífice.

Ora, quer dizer então que existia, para a Igreja, naquele contexto específico, uma ‘ideologia menos pior’? Analisando as ações do magistério pontifício, que se moldavam às circunstâncias, podemos dizer que sim.

Mais à frente, as orientações eclesiais oficiais, incorporadas à cartilha da doutrina social da Igreja, rejeitarão esse tipo de classificação. Para o catolicismo, as ideologias que violam a dignidade humana, independente do espectro político ao qual se associem, são nocivas. Em outras palavras, tanto os princípios da extrema-direita quanto da extrema-esquerda são incompatíveis com os valores do catolicismo.

E chegou a hora de dialogar com os comunistas...

Foi João XXIII, sucessor de Pio XII, quem deu o primeiro passo em direção à reaproximação. Lançou um apelo de paz e de conciliação através da encíclica Pacem in Terris (1963), na qual afirma que todos partidos políticos, incluindo os de matriz marxista, devem trabalhar, juntos, pelo bem comum. Apesar de ter condenado abertamente o comunismo no documento, garantiu aos católicos, em outras palavras, o direito à liberdade partidária.

E é nessa fase que acontece a implementação da chamada Ostpolitik Vaticana. Essa política diplomática da Santa Sé, em diálogo com os governos comunistas do Leste Europeu, visava promover a liberdade religiosa nos países do bloco soviético. Nas palavras do atual secretário de estado da Santa Sé, cardeal Pietro Parolin, foi um ‘verdadeiro martírio da paciência, que levou a Igreja a aproveitar cada brecha de abertura’.

E Paulo VI, sem renunciar à empreitada audaciosa iniciada por seu antecessor, deu continuidade às negociações. João Paulo II, que voltou a condenar o comunismo publicamente, ainda que de maneira discreta, foi o primeiro sumo pontífice a se encontrar com um líder soviético, no caso, Mikhail Gorbachev.

Grupos conservadores criticam o processo, pois, segundo eles, tal medida teria provocado a ‘infiltração de agentes comunistas’ nos departamentos da cúria romana. Porém, convenhamos : com acordo ou sem acordo, nenhum Estado estava imune a esse tipo de invasão em plena Guerra Fria, não é mesmo? Além disso, os poucos espiões identificados – na maioria, padres que trabalhavam como funcionários da instituição – foram expulsos pelos papas após terem sido descobertos.

O idealizador desse projeto de degelo diplomático foi o cardeal italiano Agostino Casarolli, que, mais à frente, se tornaria secretário de estado de João Paulo II. Graças aos acordos arquitetados por ele, a delegação do patriarcado ortodoxo russo foi autorizada a participar do Concílio Vaticano II, na década de 1960. O preço que o Vaticano teve que pagar foi aceitar a determinação imposta pela URSS de não se pronunciar sobre o comunismo durante toda a assembleia. Por outro lado, a presença dos religiosos, provenientes de Moscou, permitiu que a Santa Sé ficasse a par dos ataques aos cristãos do território.

Sem contar que, com sua habilidade, Casarolli conseguiu transpor as barreiras, até então intransponíveis, entre a Santa Sé e alguns países da Cortina de Ferro. Sob sua supervisão, a Santa Sé iniciou as negociações com a Tchecoslováquia, Hungria e Iugoslávia, por exemplo. E, por fim, para coroar os esforços de décadas, enviou representantes para a Conferência de Helsinque, capital da Finlândia, onde foi firmado um pacto de conduta sobre direitos e liberdades dos cidadãos em 1975.

O atual acordo firmado entre Santa Sé e China, selado em 2018, cujo conteúdo explicamos na semana passada, segue os parâmetros da Ostpolitik. Os objetivos são claros : garantir a plena liberdade de culto e pôr um fim à perseguição aos cristãos no local. Pena que alguns católicos, ignorando o alto índice de complexidade do jogo, cuidadosamente posto sobre o tabuleiro da diplomacia, exigem que os efeitos sejam imediatos. Esquecem que o papa é, além de autoridade religiosa, um chefe de Estado. E deve, por assim dizer, ‘pisar em ovos’, como qualquer líder político, quando se encontra diante de uma situação delicada.

Francisco foi questionado, recentemente, por não ter se pronunciado sobre os atos pró-democracia que acontecem em Hong Kong. Ele chegou a excluir um trecho de um discurso, previamente preparado pelos seus colaboradores, no qual ele dizia estar preocupado com o que ocorre na região. Isso aconteceu durante a oração mariana do Ângelus, realizada em 5 de julho deste ano. Claramente, o papa quer evitar, ao menos nessa fase, novos desencontros com Pequim.

Mais uma vez, fica claro que, com os comunistas – e em especial, com os chineses, é necessário ir devagar. Matteo Ricci que o diga...

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1473235/2020/09/o-papado-em-dialogo-com-os-comunistas/

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Vozes e irrelevâncias

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil


‘Não se está apenas vivendo uma época de mudanças, mas uma grande e radical mudança de época. Essa expressão, resultado de análises filosófico-antropológicas dedicadas à contemporaneidade, faz referência às revoluções sem precedentes que estão reconfigurando a humanidade. No contexto das aceleradas e profundas transformações, pensa-se que as muitas narrativas capazes de dar sentido ao mundo ruíram, e ainda não teria surgido nenhuma outra para ocupar as lacunas existentes. Muitas perguntas permanecem sem respostas, mesmo com tantas vozes que se consideram autoridades no esclarecimento de interpelações. Não raramente, essas vozes promovem uma dissonância que atormenta, atrasa processos, gera confusões, alimentando relativizações que desconsideram memórias, valores e princípios imprescindíveis. O resultado é uma verdadeira babel, com prejuízos aos entendimentos necessários para que cada pessoa exerça o seu papel na sociedade. Essa dissonância, com vozes que instigam polarizações e fundamentalismos, prejudica também o estado de espírito – a condição emocional de grupos e indivíduos, alimentando desequilíbrios e descompassos.

O coro ruidoso, promovido por pessoas e grupos, é desafinado não por uma falta de referenciais teóricos, ou pela escassez de análises relevantes. A dissonância de vozes vem, especialmente, da ausência de compreensão mínima sobre o que significa viver e conviver na Casa Comum, ou da desconsideração sobre a urgência de se efetivar uma economia guiada pelos parâmetros da sustentabilidade, salubridade e solidariedade. Sem solucionar essas carências, torna-se impossível mudar cenários de exclusão social que são atestados de incompetência para uma sociedade com tantos avanços tecnológicos e científicos. Obviamente, a civilização contemporânea, em comparação a outras fases da história humana, conta com muito mais oportunidades, mas precisa capacitar-se para aproveitá-las bem. É necessário investir para que o humanismo fundamente as vozes deste tempo. Mais que isso : torne-se também força capaz de configurar nova etapa na história da humanidade.

Ante as aceleradas transformações sociais contemporâneas, muitos experimentam sensação de impotência neste contexto que aparenta ser caótico. Esse sentimento pode ser o sinal de que se está no caminho certo, pois a realidade é, de fato, muito complexa. Não é possível a apenas uma pessoa compreendê-la ou gerenciá-la plenamente.  Reconhecer que se sabe muito menos do que se pensa saber é um passo com incidência existencial forte. Para alcançar essa compreensão, deve-se considerar a importância de muitos elementos que não podem ser negociados ou rifados, pois são antídotos para obscurantismos. Não se deve abrir mão, por exemplo, da memória histórica de instituições, frequentemente desconsideradas nos dias atuais por quem se perde na avalanche de mudanças.

Sem reconhecer a memória, muitos acreditam, ingenuamente, que estão ‘inventando a roda’, mesmo que essa ‘roda’ já exista – o necessário é a inteligência para fazê-la girar. Além disso, ao desconsiderar a memória, paga-se um preço alto com a perda do sentido que alimenta a vida. Convive-se com a arbitrariedade da iconoclastia que demole tudo e enfraquece o tecido existencial com superficialidades, a partir da ilusão de que se está construindo algo novo. Nesse mesmo caminho de desconsideração da memória, há um impulso inconsequente, por vezes alimentado por interesses ideológicos, oportunistas, cegos e até mesquinhos. Esse impulso leva muitos a prescindir de instituições com capacidade para ser voz forte na superação das dissonâncias que prejudicam a sociedade.

As instituições estão sendo enfraquecidas ou atingidas por um subjetivismo que alimenta nas pessoas a ilusão de que suas próprias vozes são as mais lúcidas. Indivíduos passam a acreditar que suas perspectivas podem substituir vozes institucionais – que também necessitam, permanentemente, de afinação, para continuarem proféticas e gerarem interpelações transformadoras. Quando a irracionalidade permite que sejam enfraquecidos contextos institucionais há graves consequências : democracias perdem força, desempenhos profissionais e cidadãos tornam-se inadequados e cada vez mais se acentua a dissonância entre as muitas vozes, conduzindo instituições religiosas, educacionais, políticas, governamentais e tantas outras ao universo das irrelevâncias.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/artigo/9052/2020/09/vozes-e-irrelevancias/ 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Teologias que não escutam

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)         

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘Todo relacionamento precisa de escuta atenta. Não raro ouvimos sobre relações que acabaram por uma pessoa não ouvir a outra ou porquê uma das partes não se atentava à demanda da outra, causando-lhe a sensação de falar com as paredes. De tanto insistir em ser ouvida e não obter resposta, considera-se o rompimento como única coisa a se fazer. Uma vez acabada a esperança, encerram-se também as possibilidades de retorno.

Quando olhamos para a questão da teologia e sua relação com o mundo, a premissa com a qual começamos nosso artigo também se aplica. Não dificilmente temos presenciado abordagens teológicas que se distanciam do mundo, não ouvindo o que este tem a dizer em suas diversas vozes. Focando-se somente em doutrinas, normas, teorias etc., a teologia tem constantemente se tornado surda àqueles com quem deveria se relacionar.

No entanto, em um país no qual a maioria das pessoas se diz cristã, ainda é possível perceber que elas querem ouvir algo dos teólogos. Algo que faça sentido para suas existências, que traga conforto e respostas aos seus dramas.

Diante desse cenário, torna-se importantíssima uma teologia pública, que seja feita a partir de baixo, das experiências do povo, de suas lutas e questões. Isso não implica em deixar a seriedade de lado. Muito pelo contrário, significa tomar a atitude essencial para um bom relacionamento, que é ouvir o outro com quem se relaciona. Descer de certo pedestal imaginário – no qual diversos teólogos se colocam, achando que estão acima de todo mundo – e abrir mão da pretensão de serem os detentores da verdade última, a qual somente eles têm acesso, são tarefas imprescindíveis. Não cabe mais uma visão teológica nos moldes da cristandade medieva, quando o cristianismo ditava o quer era certo e errado. Esse saudosismo nutrido por uma grande parte das pessoas religiosas no país somente contribui para o constante afastamento da teologia na relação cristianismo–sociedade.

É imprescindível que o cristianismo compreenda que não há escuta sincera se não há humildade e que não se alcançam pessoas sem a disposição de ouvi-las com atenção. Talvez, na contemporaneidade, ouvir seja um dos maiores desafios para o cristianismo.

Ao mesmo tempo, lidar com tal desafio pode fazer com que a proposta cristã volte ao seu fundamento: Jesus de Nazaré, o galileu que andava com os humildes e pobres de seu tempo, expondo o Reino de Deus numa linguagem cotidiana, de fácil assimilação, sem rebuscamentos, mas com profundidade e seriedade. Uma mensagem que, como disseram os caminhantes de Emaús, ‘ardia o coração’ quando se ouvia. 

A principal tarefa teológica da atualidade deveria consistir em recuperar o exemplo de Jesus, refazer seu comprometimento de caminhar com o povo, sentir suas dores, ouvir seus clamores e anunciar-lhe a esperança do Reino de Deus. Todo o resto, portanto, seria adendo e nota de rodapé para explicitar algo importante de ser lembrado.

Infelizmente, é o exemplo de Jesus que tem sido tomado como nota de rodapé nas pomposas e bem articuladas elucubrações que vários teólogos têm feito em suas tentativas de falar somente a seus pares, deixando de lado aqueles para quem Jesus se dirigiria e a quem ouviria.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1472714/2020/09/teologias-que-nao-escutam/

domingo, 20 de setembro de 2020

O drama de imigrantes que atravessam o Canal da Mancha

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*Artigo da revista DomTotal

 

‘Depois de anos vagando, semanas de espera em um campo insalubre na costa francesa e sete horas de angústia em um precário barco inflável pelo Canal da Mancha, o kuwaitiano Walid alcançou seu objetivo e superou a travessia da ‘rota da morte’, chegando à Inglaterra. Seu amigo, Falah, ainda espera.

De Grande-Synthe (norte da França) a Dover (sul da Inglaterra), passando pelas águas territoriais francesas, as equipes da reportagem acompanharam por três semanas Walid, seu amigo iraquiano Falah e suas duas filhas, Arwa, de 9 anos e Rawane, de 13, que sofre de uma diabetes grave.

Os 33 quilômetros que separam a Costa de Opala francesa dos penhascos de Dover, no litoral britânico, têm a reputação de ser uma das rotas marítimas mais frequentadas e perigosas do mundo.

Entretanto, desde 2018 as tentativas de travessia se multiplicam. Entre 1º de janeiro e 31 de agosto, 6,2 mil migrantes – segundo a prefeitura marítima francesa do Canal da Mancha e do Mar do Norte – tentaram a sorte em um barco inflável, no caso dos mais afortunados, em um caiaque ou mesmo em uma simples boia.

Crônica de uma travessia

Em uma vegetação rasteira perto de uma ferrovia em Grande-Synthe, cidade do norte da França, sob uma barraca oscilante feita de lonas de plástico, o kuwaitiano Walid, de 29 anos e o iraquiano Falah, de 50, dependem de seus celulares para viver.

É seu único vínculo com a pessoa que dará o sinal verde para que embarquem. Em troca de 3 mil euros (cerca de R$ 19 mil) por pessoa, poderão subir a bordo de um ‘barco pequeno’ – aqueles botes infláveis com pequenos motores de qualidade duvidosa.

A silhueta do traficante aparece no telefone no momento em que chega uma ligação do WhatsApp. Eles nunca o viram. Essas redes criminosas, geralmente curdas ou albanesas, usam intermediários para estabelecer contato.

- ‘Como vai tudo, irmão?

- Bem, graças a Deus.

- Tem novidades?

- Não...

- Amanhã, insha'Allah (se Deus quiser, em árabe)?

- Insha'Allah (...). Se amanhã o tempo estiver bom, vamos’.

Já faz um mês que Walid espera junto com a família de Falah, a qual conheceu no trajeto do exílio em Frankfurt, uma travessia clandestina que seria o caminho para uma vida melhor.

Apesar de este trajeto ser apelidado 'a rota da morte’, queremos atravessar. Partimos para o desconhecido : somos só Deus, o mar e nós. É Allah quem decidirá nosso destino’, diz Falah.

Este homem discreto fugiu do Iraque em 2015, época em que o grupo Estado Islâmico estava em plena expansão. De Kerbala (ao sul de Bagdá), foi a pé para a Turquia, depois para Grécia, Macedônia e Croácia. Era o ano da grande onda migratória à Europa, quando a Alemanha abriu suas portas para cerca de 900 mil migrantes, antes de fechar suas fronteiras.

Falah não pede ‘o impossível’. ‘Só quero viver de maneira decente e que minhas filhas se sintam livres e seguras’, afirma.

Já Walid, exilado desde 2018, é um ‘bidun’ - esses beduínos oriundos do Kuwait, mas sem pátria de geração em geração. Sem passaporte, não possuem o status de cidadãos nem o de estrangeiros em seu próprio país, o que os priva de qualquer direito político, social ou econômico.

Este homem de rosto quadrado, barba ligeiramente crescida e cabelos pretos um pouco compridos não tem ‘medo’ da travessia. ‘O mais difícil é não saber quando vou partir’.

‘Estar pronto todas noites’

Antes do amanhecer, o mar está calmo e há poucos guardas implantados na área. É preciso esperar e esperar, em condições que colocam esses migrantes à prova.

Walid, Falah e suas duas filhas não são os únicos. Dezenas estão espalhadas pelos arredores. Quatro anos após o desmantelamento da chamada ‘Selva’ de Calais (um grande campo de migrantes do norte da França) no final de 2016, eritreus, iranianos, afegãos e sírios continuam chegando na costa francesa com a esperança de atravessar.

Entre as vespas, os quatro exilados matam o tempo, dormem pouco e mal, porque o som estridente dos trens os acorda o tempo todo.

Com algumas panelas encontradas aqui e ali (uma panela queimada, uma frigideira abandonada), eles conseguem satisfazer suas necessidades. Os potes de iogurte são usados como copos e os pedaços de papelão como tapete.

Todos os dias, Falah dá um jeito para encontrar cubos de gelo para conservar a insulina de sua filha mais velha.

Quando o tempo está bom, tomam banho no canal, perto de onde vivem, e lavam suas roupas na água lamacenta. Os dias são marcados pela coleta de madeira para fazer fogo e pelas duas distribuições diárias de refeições organizadas por associações a um quilômetro dali.

No entanto, o desânimo está sempre presente, e há momentos em que Falah se desaba a chorar. ‘Não temos nenhuma data estabelecida. É preciso estar pronto todas as noites para deixar tudo para trás. Do contrário, o barco não te espera. Há dois dias, dormimos até mesmo com os sapatos calçados’, explica Walid.

Walid tentou cruzar o canal três vezes. Três fracassos.

Vencido pelo cansaço e pela impaciência, já não confia na pessoa que lhes ajudará a atravessar, porque acha que é um trapaceiro. Falah já pagou parte do valor, em dinheiro, então não há muito o que possa fazer. Mas Walid decidiu mudar agará mais, 3 mil libras (cerca de R$ 20,8 mil), mas seu novo contato tem um índice de sucesso de ‘100%’, acredita.

Dessa forma, os caminhos de ambos se separam.

Remédios e croissants

É quinta-feira, 10 de setembro, e faz um mês e treze dias que chegou a Grand-Synthe. O sol de verão e um vento suave animam as esperanças de Walid. A travessia é iminente, confirma seu traficante.

Não sabemos até que horas esperaremos antes de ir’, diz ele, antes de dirigir-se ao ponto de encontro.

A vários quilômetros, Falah, que mudou de acampamento, também está a ponto de partir. Apressadamente, joga os remédios de sua filha em uma bolsa e os croissants em outra. ‘Tenho medo de acreditar porque, em mais de um mês, só vi o mar uma vez’, comenta, temendo uma nova decepção.

Na Inglaterra, tudo será mais fácil, confia. ‘Poderei trabalhar em restaurantes ou no setor automotivo’.

20h. Walid e seu grupo chegam a uma praia a cerca de 25 quilômetros de Calais. O Canal da Mancha está calmo e o céu limpo. Os guardas patrulham pela costa. À noite, os feixes de suas lanternas varrem as dunas. No escuro, sussurrando e escondido na floresta atrás da praia, o grupo espera por alguma oportunidade.

Duas vezes, aparece uma patrulha de guardas que até confiscam um barco – este rapidamente substituído pelos traficantes, dispostos a ganhar os mais de 40 mil euros (R$ 255 mil) por embarcação se a travessia for bem-sucedida, segundo Walid.

São apenas 7h quando, com os primeiros vislumbres do amanhecer, três botes infláveis são lançados no mar a toda velocidade. O grupo de Walid se afasta rapidamente, temendo que o barco quebre nas águas francesas, um cenário que os levaria de volta ao ponto de partida.

O barco, movido por um motor de 15 cavalos, avança rumo ao noroeste a 3 nós (5,5 quilômetros por hora). A bordo estão 14 pessoas, incluindo mulheres, um bebê e cinco crianças, todos com coletes salva-vidas laranjas.

Braços para o céu

Duas horas após sua partida, o ‘Thémis’ – o barco de patrulha da Direção de Assuntos Marítimos da França – alcança o grupo, conforme comprovado pela reportagem. Sua posição é sinalizada às unidades de vigilância de ambos os lados do estreito, mas não há intervenção devido aos riscos envolvidos, tanto para os migrantes quanto para os barcos, exceto se algum destes cair.

Os traficantes sabem disso.

A partir do momento em que estamos no mar, a prioridade não é mais impedir a travessia, mas garantir a salvaguarda da vida humana’ em uma área onde transita 25% do tráfego marítimo mundial, segundo a prefeitura marítima. Walid e seus companheiros continuam a jornada. O motor, que é tão barulhento que cobre o som das vozes, desliga, mas logo volta a funcionar. As águas britânicas estão a apenas alguns quilômetros de distância.

E de repente, ao longe, uma silhueta vermelha é avistada, a do ‘Sandettie’, o navio-farol que marca a entrada em águas britânicas. Já passa das 10h.

Walid está radiante, exausto, mas emocionado. Joga seu celular na água para apagar qualquer rastro de seu passado, e seus companheiros levantam os braços ao céu, gritando, conforme observado pela reportagem à distância. Pouco depois, um patrulheiro da Guarda Costeira recupera a embarcação e os leva até o porto de Dover.

Após sete horas de travessia, sob um céu já nublado, os ocupantes tocam o solo britânico, como dezenas de outros migrantes nesse mesmo dia.

Walid, vestindo jeans, jaqueta escura e uma máscara branca, desembarca por último, carregando uma mochila com algumas roupas. Cerca de meia hora depois, é escoltado até um ônibus, que o leva a um centro de acolhimento temporário em Kent.

Lá eles poderão solicitar refúgio e realizar uma primeira entrevista, de acordo com a lei. Depois, serão enviados para algum centro de alojamento financiado pelo Estado. Há meses meses de procedimentos administrativos pela frente. Mas em uma economia muito liberal aberta à mão de obra barata, permanecer na clandestinidade não assusta os migrantes.

Walid está disposto a fazer o que for preciso para ganhar a vida : finalmente está no Reino Unido.

Do outro lado do Canal, Falah está muito contrariado. Não conseguiu atravessar e está desolado por este novo fracasso. Exaustos e sem perspectivas de futuro, pai e filhas continuam esperando.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1471824/2020/09/o-drama-de-imigrantes-que-atravessam-o-canal-da-mancha/