Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
O líder soviético Gorbachev visita o papa João Paulo II no Vaticano, em 1989
*Artigo
de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de
Imprensa da Santa Sé
‘Igreja
Católica e comunismo. Encíclicas, decretos e excomunhões marcam essa relação
conturbada e, por assim dizer, incompatível. De 1846 até a metade do século 20,
os pontífices condenaram, abertamente, essa ideologia política. A Igreja
Católica enfrentou, nessa fase, um dos maiores desafios da sua história.
Para
além do massacre causado pelo regime, que se instaurou na Europa a partir da
Revolução Russa de 1917, era o materialismo ateu, imposto pelo sistema, o que
mais assustava os membros do alto escalão do Vaticano. Não por acaso,
encontramos nas prateleiras dos arquivos pontifícios mais condenações ao
comunismo que aos fascismos, por exemplo.
Em
vista dos próprios interesses, o ditador fascista Benito Mussolini, um ateu
declarado, reconheceu, após a sua ascensão, a importância do catolicismo.
Querendo ou não, o caráter transnacional da religião alimentava o mito imperial
fascista. Por conta disso, passou a se considerar uma espécie de novo
Constantino, em referência ao imperador romano que elevou o cristianismo ao
status de religião lícita no século 4 e, através disso, criou as bases para a
implantação de sua política de expansão territorial.
E
para corresponder ainda mais à comparação, Mussolini fez várias concessões à
Igreja Católica enquanto esteve no poder. Grata pelos favores, a instituição se
omitiu diante de várias atrocidades perpetradas pelo governo do Duce.
Uma encíclica publicada por Pio XI em 1931 (Non abbiamo bisogno) chegou
a repudiar algumas ações do partido. No entanto, o documento não emitia nenhuma
condenação sistêmica ao regime.
Excomunhão? Só para os
vermelhos
Vale
salientar que, curiosamente, os fascistas jamais foram excomungados. Já os
comunistas, sim. Em 1949, Pio XII publicou um decreto no qual aplicava esse
tipo de pena aos católicos italianos que aderissem ao partido. Esse tipo de
filiação era considerada uma apostasia pelo então pontífice.
Ora,
quer dizer então que existia, para a Igreja, naquele contexto específico, uma ‘ideologia
menos pior’? Analisando as ações do magistério pontifício, que se moldavam
às circunstâncias, podemos dizer que sim.
Mais
à frente, as orientações eclesiais oficiais, incorporadas à cartilha da
doutrina social da Igreja, rejeitarão esse tipo de classificação. Para o
catolicismo, as ideologias que violam a dignidade humana, independente do
espectro político ao qual se associem, são nocivas. Em outras palavras, tanto
os princípios da extrema-direita quanto da extrema-esquerda são incompatíveis
com os valores do catolicismo.
E chegou a hora de
dialogar com os comunistas...
Foi
João XXIII, sucessor de Pio XII, quem deu o primeiro passo em direção à
reaproximação. Lançou um apelo de paz e de conciliação através da
encíclica Pacem in Terris (1963), na qual afirma
que todos partidos políticos, incluindo os de matriz marxista, devem trabalhar,
juntos, pelo bem comum. Apesar de ter condenado abertamente o comunismo no
documento, garantiu aos católicos, em outras palavras, o direito à liberdade
partidária.
E é
nessa fase que acontece a implementação da chamada Ostpolitik Vaticana.
Essa política diplomática da Santa Sé, em diálogo com os governos comunistas do
Leste Europeu, visava promover a liberdade religiosa nos países do bloco
soviético. Nas palavras do atual secretário de estado da Santa Sé, cardeal
Pietro Parolin, foi um ‘verdadeiro martírio da paciência, que levou a Igreja
a aproveitar cada brecha de abertura’.
E
Paulo VI, sem renunciar à empreitada audaciosa iniciada por seu antecessor, deu
continuidade às negociações. João Paulo II, que voltou a condenar o comunismo
publicamente, ainda que de maneira discreta, foi o primeiro sumo pontífice a se
encontrar com um líder soviético, no caso, Mikhail Gorbachev.
Grupos
conservadores criticam o processo, pois, segundo eles, tal medida teria
provocado a ‘infiltração de agentes comunistas’ nos departamentos da
cúria romana. Porém, convenhamos : com acordo ou sem acordo, nenhum Estado
estava imune a esse tipo de invasão em plena Guerra Fria, não é mesmo? Além
disso, os poucos espiões identificados – na maioria, padres que trabalhavam
como funcionários da instituição – foram expulsos pelos papas após terem sido
descobertos.
O
idealizador desse projeto de degelo diplomático foi o cardeal italiano Agostino
Casarolli, que, mais à frente, se tornaria secretário de estado de João Paulo
II. Graças aos acordos arquitetados por ele, a delegação do patriarcado
ortodoxo russo foi autorizada a participar do Concílio Vaticano II, na década
de 1960. O preço que o Vaticano teve que pagar foi aceitar a determinação
imposta pela URSS de não se pronunciar sobre o comunismo durante toda a
assembleia. Por outro lado, a presença dos religiosos, provenientes de Moscou,
permitiu que a Santa Sé ficasse a par dos ataques aos cristãos do território.
Sem
contar que, com sua habilidade, Casarolli conseguiu transpor as barreiras, até
então intransponíveis, entre a Santa Sé e alguns países da Cortina de Ferro.
Sob sua supervisão, a Santa Sé iniciou as negociações com a Tchecoslováquia,
Hungria e Iugoslávia, por exemplo. E, por fim, para coroar os esforços de
décadas, enviou representantes para a Conferência de Helsinque, capital da
Finlândia, onde foi firmado um pacto de conduta sobre direitos e liberdades dos
cidadãos em 1975.
O
atual acordo firmado entre Santa Sé e China, selado em 2018, cujo conteúdo
explicamos na semana passada, segue os parâmetros da Ostpolitik. Os
objetivos são claros : garantir a plena liberdade de culto e pôr um fim à
perseguição aos cristãos no local. Pena que alguns católicos,
ignorando o alto índice de complexidade do jogo, cuidadosamente posto sobre o
tabuleiro da diplomacia, exigem que os efeitos sejam imediatos. Esquecem que o
papa é, além de autoridade religiosa, um chefe de Estado. E deve, por assim dizer, ‘pisar em
ovos’, como qualquer líder político, quando se encontra diante de uma
situação delicada.
Francisco
foi questionado, recentemente, por não ter se pronunciado sobre os atos
pró-democracia que acontecem em Hong Kong. Ele chegou a excluir um trecho de um
discurso, previamente preparado pelos seus colaboradores, no qual ele dizia
estar preocupado com o que ocorre na região. Isso aconteceu durante a oração
mariana do Ângelus, realizada em 5 de julho deste ano. Claramente, o papa quer
evitar, ao menos nessa fase, novos desencontros com Pequim.
Mais
uma vez, fica claro que, com os comunistas – e em especial, com os chineses, é
necessário ir devagar. Matteo Ricci que o diga...’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1473235/2020/09/o-papado-em-dialogo-com-os-comunistas/
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