Por Eliana
Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo da revista DomTotal
‘Depois
de anos vagando, semanas de espera em um campo insalubre na costa francesa e
sete horas de angústia em um precário barco inflável pelo Canal da Mancha, o
kuwaitiano Walid alcançou seu objetivo e superou a travessia da ‘rota da
morte’, chegando à Inglaterra. Seu amigo, Falah, ainda espera.
De
Grande-Synthe (norte da França) a Dover (sul da Inglaterra), passando pelas
águas territoriais francesas, as equipes da reportagem acompanharam por três
semanas Walid, seu amigo iraquiano Falah e suas duas filhas, Arwa, de 9 anos e
Rawane, de 13, que sofre de uma diabetes grave.
Os
33 quilômetros que separam a Costa de Opala francesa dos penhascos de Dover, no
litoral britânico, têm a reputação de ser uma das rotas marítimas mais
frequentadas e perigosas do mundo.
Entretanto,
desde 2018 as tentativas de travessia se multiplicam. Entre 1º de janeiro e 31
de agosto, 6,2 mil migrantes – segundo a prefeitura marítima francesa do Canal
da Mancha e do Mar do Norte – tentaram a sorte em um barco inflável, no caso
dos mais afortunados, em um caiaque ou mesmo em uma simples boia.
Crônica de uma
travessia
Em
uma vegetação rasteira perto de uma ferrovia em Grande-Synthe, cidade do norte
da França, sob uma barraca oscilante feita de lonas de plástico, o kuwaitiano
Walid, de 29 anos e o iraquiano Falah, de 50, dependem de seus celulares para
viver.
É
seu único vínculo com a pessoa que dará o sinal verde para que embarquem. Em
troca de 3 mil euros (cerca de R$ 19 mil) por pessoa, poderão subir a bordo de
um ‘barco pequeno’ – aqueles botes infláveis com pequenos motores de
qualidade duvidosa.
A
silhueta do traficante aparece no telefone no momento em que chega uma ligação
do WhatsApp. Eles nunca o viram. Essas redes criminosas, geralmente curdas ou
albanesas, usam intermediários para estabelecer contato.
- ‘Como
vai tudo, irmão?
- Bem, graças a Deus.
- Tem novidades?
- Não...
- Amanhã, insha'Allah (se Deus quiser, em árabe)?
- Insha'Allah (...). Se amanhã o tempo estiver bom, vamos’.
Já
faz um mês que Walid espera junto com a família de Falah, a qual conheceu no
trajeto do exílio em Frankfurt, uma travessia clandestina que seria o caminho
para uma vida melhor.
‘Apesar
de este trajeto ser apelidado 'a rota da morte’, queremos atravessar. Partimos
para o desconhecido : somos só Deus, o mar e nós. É Allah quem decidirá nosso
destino’, diz Falah.
Este
homem discreto fugiu do Iraque em 2015, época em que o grupo Estado Islâmico
estava em plena expansão. De Kerbala (ao sul de Bagdá), foi a pé para a
Turquia, depois para Grécia, Macedônia e Croácia. Era o ano da grande onda
migratória à Europa, quando a Alemanha abriu suas portas para cerca de 900 mil
migrantes, antes de fechar suas fronteiras.
Falah
não pede ‘o impossível’. ‘Só quero viver de maneira decente e que
minhas filhas se sintam livres e seguras’, afirma.
Já
Walid, exilado desde 2018, é um ‘bidun’ - esses beduínos oriundos do
Kuwait, mas sem pátria de geração em geração. Sem passaporte, não possuem o
status de cidadãos nem o de estrangeiros em seu próprio país, o que os priva de
qualquer direito político, social ou econômico.
Este
homem de rosto quadrado, barba ligeiramente crescida e cabelos pretos um pouco
compridos não tem ‘medo’ da travessia. ‘O mais difícil é não saber
quando vou partir’.
‘Estar pronto todas
noites’
Antes
do amanhecer, o mar está calmo e há poucos guardas implantados na área. É preciso
esperar e esperar, em condições que colocam esses migrantes à prova.
Walid,
Falah e suas duas filhas não são os únicos. Dezenas estão espalhadas pelos
arredores. Quatro anos após o desmantelamento da chamada ‘Selva’ de
Calais (um grande campo de migrantes do norte da França) no final de 2016,
eritreus, iranianos, afegãos e sírios continuam chegando na costa francesa com
a esperança de atravessar.
Entre
as vespas, os quatro exilados matam o tempo, dormem pouco e mal, porque o som
estridente dos trens os acorda o tempo todo.
Com
algumas panelas encontradas aqui e ali (uma panela queimada, uma frigideira
abandonada), eles conseguem satisfazer suas necessidades. Os potes de iogurte
são usados como copos e os pedaços de papelão como tapete.
Todos
os dias, Falah dá um jeito para encontrar cubos de gelo para conservar a
insulina de sua filha mais velha.
Quando
o tempo está bom, tomam banho no canal, perto de onde vivem, e lavam suas
roupas na água lamacenta. Os dias são marcados pela coleta de madeira para
fazer fogo e pelas duas distribuições diárias de refeições organizadas por
associações a um quilômetro dali.
No
entanto, o desânimo está sempre presente, e há momentos em que Falah se desaba
a chorar. ‘Não temos nenhuma data estabelecida. É preciso estar pronto todas
as noites para deixar tudo para trás. Do contrário, o barco não te espera. Há
dois dias, dormimos até mesmo com os sapatos calçados’, explica Walid.
Walid
tentou cruzar o canal três vezes. Três fracassos.
Vencido
pelo cansaço e pela impaciência, já não confia na pessoa que lhes ajudará a
atravessar, porque acha que é um trapaceiro. Falah já pagou parte do valor, em
dinheiro, então não há muito o que possa fazer. Mas Walid decidiu mudar agará
mais, 3 mil libras (cerca de R$ 20,8 mil), mas seu novo contato tem um índice
de sucesso de ‘100%’, acredita.
Dessa
forma, os caminhos de ambos se separam.
Remédios e croissants
É
quinta-feira, 10 de setembro, e faz um mês e treze dias que chegou a
Grand-Synthe. O sol de verão e um vento suave animam as esperanças de Walid. A
travessia é iminente, confirma seu traficante.
‘Não
sabemos até que horas esperaremos antes de ir’, diz ele, antes de
dirigir-se ao ponto de encontro.
A
vários quilômetros, Falah, que mudou de acampamento, também está a ponto de
partir. Apressadamente, joga os remédios de sua filha em uma bolsa e os
croissants em outra. ‘Tenho medo de acreditar porque, em mais de um mês, só
vi o mar uma vez’, comenta, temendo uma nova decepção.
Na
Inglaterra, tudo será mais fácil, confia. ‘Poderei trabalhar em restaurantes
ou no setor automotivo’.
20h.
Walid e seu grupo chegam a uma praia a cerca de 25 quilômetros de Calais. O Canal
da Mancha está calmo e o céu limpo. Os guardas patrulham pela costa. À noite,
os feixes de suas lanternas varrem as dunas. No escuro, sussurrando e escondido
na floresta atrás da praia, o grupo espera por alguma oportunidade.
Duas
vezes, aparece uma patrulha de guardas que até confiscam um barco – este
rapidamente substituído pelos traficantes, dispostos a ganhar os mais de 40 mil
euros (R$ 255 mil) por embarcação se a travessia for bem-sucedida, segundo
Walid.
São
apenas 7h quando, com os primeiros vislumbres do amanhecer, três botes
infláveis são lançados no mar a toda velocidade. O grupo de Walid se afasta
rapidamente, temendo que o barco quebre nas águas francesas, um cenário que os
levaria de volta ao ponto de partida.
O
barco, movido por um motor de 15 cavalos, avança rumo ao noroeste a 3 nós (5,5
quilômetros por hora). A bordo estão 14 pessoas, incluindo mulheres, um bebê e
cinco crianças, todos com coletes salva-vidas laranjas.
Braços para o céu
Duas
horas após sua partida, o ‘Thémis’ – o barco de patrulha da Direção de
Assuntos Marítimos da França – alcança o grupo, conforme comprovado pela
reportagem. Sua posição é sinalizada às unidades de vigilância de ambos os
lados do estreito, mas não há intervenção devido aos riscos envolvidos, tanto
para os migrantes quanto para os barcos, exceto se algum destes cair.
Os
traficantes sabem disso.
‘A
partir do momento em que estamos no mar, a prioridade não é mais impedir a
travessia, mas garantir a salvaguarda da vida humana’ em uma área onde
transita 25% do tráfego marítimo mundial, segundo a prefeitura marítima. Walid
e seus companheiros continuam a jornada. O motor, que é tão barulhento que
cobre o som das vozes, desliga, mas logo volta a funcionar. As águas britânicas
estão a apenas alguns quilômetros de distância.
E
de repente, ao longe, uma silhueta vermelha é avistada, a do ‘Sandettie’,
o navio-farol que marca a entrada em águas britânicas. Já passa das 10h.
Walid
está radiante, exausto, mas emocionado. Joga seu celular na água para apagar
qualquer rastro de seu passado, e seus companheiros levantam os braços ao céu,
gritando, conforme observado pela reportagem à distância. Pouco depois, um
patrulheiro da Guarda Costeira recupera a embarcação e os leva até o porto de
Dover.
Após
sete horas de travessia, sob um céu já nublado, os ocupantes tocam o solo
britânico, como dezenas de outros migrantes nesse mesmo dia.
Walid,
vestindo jeans, jaqueta escura e uma máscara branca, desembarca por último,
carregando uma mochila com algumas roupas. Cerca de meia hora depois, é
escoltado até um ônibus, que o leva a um centro de acolhimento temporário em
Kent.
Lá
eles poderão solicitar refúgio e realizar uma primeira entrevista, de acordo
com a lei. Depois, serão enviados para algum centro de alojamento financiado
pelo Estado. Há meses meses de procedimentos administrativos pela frente. Mas
em uma economia muito liberal aberta à mão de obra barata, permanecer na
clandestinidade não assusta os migrantes.
Walid
está disposto a fazer o que for preciso para ganhar a vida : finalmente está no
Reino Unido.
Do
outro lado do Canal, Falah está muito contrariado. Não conseguiu atravessar e
está desolado por este novo fracasso. Exaustos e sem perspectivas de futuro,
pai e filhas continuam esperando.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1471824/2020/09/o-drama-de-imigrantes-que-atravessam-o-canal-da-mancha/
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