segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Como as religiões têm reagido ao isolamento durante a pandemia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
Padre Fábio de Melo é um exemplo dos padres que se adaptaram à nova realidade, celebrando suas missas dominicais através de lives (Reprodução Instagram @pefabiodemelo)

*Artigo do Padre Wladimir Porreca,

Diocese de São João da Boa Vista

Paróquia São Sebastião em Mococa, SP

 

‘No cenário de mudanças rápidas nas atividades religiosas impostas pela pandemia da Covid-19, o isolamento social e as práticas higiênicas, exigiram das lideranças religiosas criarem alternativas para manterem o vínculo humano e religioso e prestarem a devida assistência religiosa aos adeptos dos segmentos religiosos.

Pelos meios midiáticos grande parte dos líderes religiosos em todo mundo, continuaram as atividades e orientações religiosas, para possibilitar aos fiéis (mesmo aqueles com grandes dificuldades em terem os aparelhos/recursos tecnológicos e em manipular os meios tecnológicos), proximidade as práticas e orientações religiosas  e fraternas/solidárias mais acessíveis, minimizando a ausência sofrida nos ritos ou nas celebrações em lugares religiosos costumeiros e o empenho da caridade. 

Houve uma busca em orientar e valorizar outros componentes dos ritos ou celebrações, redimensionando as partes ausentes, salientando o argumento do bem maior na manutenção e preservação da vida, valorizando o essencial e a criatividade dos componentes presentes e possíveis. E ainda apelos e ações solidárias concretas constantes em prol da coletividade.

Na aventura das mudanças e adaptações em tempo pandêmico, as religiões, em sua estrutura e dinâmica, com suas doutrinas, ritos, valores e outros, ganharam considerável amplitude no ciberespaço com as tecnologias, promovendo uma verdadeira pandemia de transmissões religiosas : ritos ou celebrações, lives, estudos, comunicados e outros. 

Se os corpos ficam em casa, pelo menos os olhos, os ouvidos, as mentes e os corações tentam sair, encontrar-se, por isso não tardaram em se conectar. Com reinvenção do rito, do culto e das práticas religiosas e outras atividades religiosas, a adaptação a realidade pandêmica evidenciou e instalou ‘novos’ modelos religiosos mais descentralizados da liderança religiosa, bem como, uma grande preocupação de como serão as atividades religiosas pós pandemia (Grillo, 2020; Hott, 2020).  

No que se refere às questões financeiras, é importante descrever que muitas organizações religiosas fizeram também reformulações administrativas, promovendo uma contenção de gastos e inúmeras iniciativas para se criar e ampliar formas de arrecadação de dinheiro. Abriram-se outras frentes de promoção e venda, sejam elas de comida delivery, bazares e leilões online, coleta e ofertas via internet e tantos outros meios de obtenção de recursos financeiros, sem negar, reduzir ou ignorar as restrições e orientações sanitárias, afinal era preciso manter as finanças dos lugares religiosos. 

Outro fator importante que merece ser considerado na adaptação é o fato de os fiéis reassumirem os princípios da esperança e da caridade/solidariedade, podendo adquirirem a capacidade de se ressignificarem como pessoa religiosa, asseguradas em sua fé, que, sem saírem da realidade pandêmica, aventuraram-se a construir um olhar de possibilidades para retomarem e revalorizarem alguns valores esquecidos, bem como em concretizar ações anteriormente idealizadas.

Nem todas as lideranças e adeptos religiosos conseguiram atingir níveis considerados de adaptação e seguirem as restrições e orientações sanitárias de manter e ampliar o isolamento social ou seguir os protocolos para a volta gradual para conter o avanço do SARS-CoV-2. 

Alguns líderes religiosos hindus, judeus, cristãos, mulçumanos e budistas, em especial, assumiram e mantiveram inúmeras resistências em mudar os hábitos e costumes religiosos, desde aqueles que negavam veementemente a existência do vírus, até aqueles que garantiram a sua cura (McLaughlin, 2020). 

Negacionismo

Alguns desses líderes assumiram uma postura negacionista, outros reducionista e outros, ainda, de conveniência, optando por negar ou diminuir e/ou desviar a gravidade da Covid-19, colocando a si mesmos e a seus seguidores em situação de risco de contaminação da doença, com possíveis mortes e criação de potenciais disseminadores do novo coronavírus. 

Alguns desses religiosos, não em sua maioria, enfrentaram penalidades civis, descréditos e críticas em suas comunidades religiosas, na opinião pública e na mídia, pelas atitudes irresponsáveis e contraditórias ao seu papel religioso.

A postura negacionista de alguns religiosos, apoiados em teorias e discursos conspiratórios, contraditórios e sem aprofundamentos, em oposição às evidências médicas, aos dados científicos, à mídia, disseminaram o vírus da desconfiança, apoiados nos princípios morais que lhes eram elencados, com conteúdos religiosos admissíveis, facilitando a aceitação, por seus seguidores, de uma posição negacionista. 

Esses religiosos discordavam do isolamento social e das orientações das autoridades sanitárias e insistiam em manter seus lugares abertos, com aglomeração de pessoas nos ritos ou nas celebrações, como se a doença respiratória Covid-19 não existisse.

Com essa postura negacionista, desenvolveu-se e ampliou-se o fenômeno de desinformações de realidades verdadeiras da Covid-19, não somente como informações falsas, mas também enganosas, imprecisas e inconclusivas.  Os grupos religiosos são lugares férteis para a propagação de informações por serem considerados confiáveis, não somente pela liderança - como um rabino, pastor(a), padre, mestre(a) e outros(as) - mas também pelos adeptos, pois é um grupo de considerada afeição, apoio e credibilidade.

No Brasil, o Coletivo Bereia publicou um levantamento realizado em sites religiosos (12/12/2019 – 9/06/ 2020) e atividades digitais checados pelo Coletivo, sobre a desinformação com temática religiosa.  Os 53 artigos que compuseram a análise foram assim classificados : 23% verdadeiros, 30% enganosos, 17% imprecisos, 2% inconclusivos e 28% falsos. No total, 77% eram informações cuja veracidade não pode ser confirmada (Classificação de Notícias Bereia, 2020).

Reducionismo

Um outra parcela das lideranças religiosas assumiu uma postura reducionista, em que se diminuía a gravidade da disseminação  do vírus e o perigo da doença, buscando assegurarem-se nos princípios do fideísmo, isto é, utilizavam a doutrina da exclusividade da fé pela fé : só se aceita a fé sobrenatural na busca de certezas e verdades, só ela é capaz de conhecer a verdade. 

Nos princípios fideístas, há um isolamento da razão humana, esta é incapaz de atingir o verdadeiro conhecimento e de interpretar a existência, portanto, também a ciência seria impotente para alcançar as verdades sobre a pandemia da Covid-19 e só Deus poderá livrar e proteger as pessoas de qualquer doença ou mal. 

Essa é uma postura de que o humano seria incapaz de se salvar da doença, somente Deus poderia protegê-lo e livrá-lo. As pessoas não seriam contaminadas simplesmente porque tinham fé. Várias crenças nessa direção fideísta propagavam que, ao serem utilizados os recursos da prevenção sanitária, se estaria desconfiando da força de Deus e da sua proteção, portanto, seriam infiéis e ingratos. 

O fideísmo garante a fidelidade dos seguidores aos líderes religiosos, os quais os alimentam e os mantêm dependentes, em grande parte. Essa prática é utilizada por lideranças religiosas que se asseguram na teologia e prática ‘milagreira e da cura’, cujo poder do líder religioso realizaria tal proeza.

Convenientes

Outras posturas convenientes de resistência ao isolamento social e práticas sanitárias foram tomadas por variados grupos de líderes religiosos. Destacam-se os que assumiram e rejeitaram o quê e como lhes mais convinham, em relação ao isolamento social e às práticas de prevenção. 

Nota-se que esse grupo resistiu parcialmente às mudanças, não as contrapunha de forma clara e autêntica, tinha consciência da gravidade da contaminação e da doença, era cauteloso e mantinha as mesmas atividades religiosas, sem conflitos e, de maneira não explícita, procurava brechas sanitárias e religiosas para manter o que, ideologicamente individual, impunha como prática religiosa comum.

A postura de resistência de conveniência, além de ser um exercício perigoso do poder religioso, pode expressar uma crise de identidade e/ou absentismo da liderança religiosa que o exerce, pois esta não conseguiria redimensionar as suas atividades religiosas fora do seu controle e de seu padrão de funcionamento. 

A resistência em aceitar o isolamento social também passa pelas questões financeiras e econômicas das religiões. Com a suspensão dos ritos ou das celebrações presenciais, por tempo indeterminado, as coletas, ofertas e doações ficaram reduzidas e colocaram as finanças das religiões em alerta de falência econômica. 

Normalmente, os lugares religiosos e o vínculo com os adeptos são centrais para o funcionamento da religiosidade; sem o espaço territorial não há presença de pessoas; portanto, as atividades também não acontecem e a economia fica frágil. Sem dinheiro, toda a estrutura religiosa é prejudicada. Por mais espiritual que seja, tanto a liderança como o lugar são materiais. E os meios tecnológicos nem sempre garantem doações substanciosas dos adeptos.

Considerações

As adaptações e reações religiosas nesse tempo inesperado de pandemia da Covid-19 com os seus contornos e limites na existência humana, podem ser uma companhia eficaz e eficiente, porque não, sadia e saudável, na convivência consigo e com o outro no contexto que estamos inseridos. 

Mas podem ser uma companhia de risco, se não nos impulsionam a seguir sem nos distrair, ou deixar-nos levar por qualquer ‘solução’, proposta, explicação, a fim de distrair-nos ou ausentar-nos da realidade da provocação de vivermos intensamente esse tempo de grande aprendizagens e oportunidades, ou mesmo em esvaziar o acontecimento que nos alcançou, reduzindo-o a um âmbito de relações que nos proteja do impacto das coisas, no esforço de manter o velho estilo de vida que não nos cabe mais, ou ainda, que nos poupe do desafio das circunstâncias de renascer pessoas mais humanas, que se deixam estar suspensos e serem arrastadas para o caos da pandemia (Carron, 2020; Porreca, 2020; Giussani, Alberto & Prades, 2019).’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1473126/2020/09/como-as-religioes-tem-reagido-ao-isolamento-durante-a-pandemia/


Nenhum comentário:

Postar um comentário