Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Susana Vilas Boas, LMC
(Laïcs missionnaires Comboniens)
O discernimento vocacional é um processo dinâmico que exige a capacidade de situar-se no presente e caminhar com entendimento e perseverança rumo à realização de felicidade autêntica.
‘Por
estes dias, deparei com uma história antiga, narrada pelos chamados Padres do
Deserto nos primeiros séculos do Cristianismo. Nesta história é apresentada uma
situação que todos podemos reconhecer nos nossos dias (sobretudo se vivemos
fora das grandes cidades). Trata-se da história de um homem que passeia com o
jovem filho levando o seu cão de caça. A um dado momento, o cão avista um
coelho branco no meio do bosque. Como é treinado – e é impulso natural dos cães
– o cão começa a correr atrás do coelho, enquanto ladra freneticamente para dar
o alerta da sua perseguição. No mesmo bosque – e vindos da mesma aldeia –
outros cães, ao ouvirem o primeiro ladrar, começam a ladrar e a correr como
ele. Após alguns minutos de corrida, desencorajados e cansados, os cães vão
abandonando a perseguição e só o primeiro permanece atrás do coelho até o
conseguir apanhar. Chegados a este ponto, o jovem rapaz – não habituado às
andanças da caça – pergunta ao pai : «Paizinho, porque é que todos
abandonaram a perseguição menos o nosso cão?» O pai respondeu-lhe : «Ora
aqui está uma grande lição de vida : os outros cães corriam e ladravam por
verem outros cães a correr e a ladrar. Com o nosso cão era diferente. Ele sabia
a razão pela qual estava a correr e a ladrar – ele viu o coelho! Na nossa vida
acontece o mesmo, se corremos por ver correr, a nenhum lado chegamos. Mas, se ‘virmos
o coelho’ e pusermos pés ao caminho, será duro, mas nada nos fará desistir sem
alcançar os nossos objetivos.»
Esta
história vem ao encontro das grandes questões vocacionais que nos inquietam ao
longo da vida. A vida não pára e, muitas vezes, perdemos o norte, não sabemos
porque corremos, para onde vamos e nem porque vamos na direção em que nos
dirigimos. Corremos por ver outros correr e, muitas vezes, sem mesmo
percebermos porque o fazemos. Tudo parece surgir naturalmente : somos arrastados para
determinadas coisas, como se fôssemos marionetes sem vontade própria. No fundo,
no fundo, tudo isto são desculpas! O que procuramos é ter a aprovação dos que nos
conhecem, mas... isso não é vocação nem conduzirá nunca à realização pessoal –
a uma realização de felicidade autêntica.
O problema do ponto de
partida
O
primeiro problema que se coloca quando olhamos para a nossa vida, procurando
vislumbrar um futuro de felicidade que queremos alcançar, é mesmo o de nos
situarmos no momento presente : o que queremos ser (no futuro) não existe
dissociado daquilo que somos (no presente). Na história que apresentei, o ponto
de partida do primeiro cão foi precisamente o ‘ver o coelho’, a partir
do ponto onde se encontrava. Só isso garantiu o sucesso da missão de ‘caçar’
que o cão tinha. Do mesmo modo, temos de ousar perguntarmo-nos – a partir de
onde estamos – aonde queremos chegar. Quando discernirmos/virmos ‘o nosso
coelho’, depois poderemos pensar nas opções de caminho para o apanhar,
podemos optar por uma corrida mais direta ou mais estratégica, mas já nada nos
fará perder o ‘coelho’ de vista.
Este
processo não pode ser algo isolado. É preciso escolher a companhia certa para
nos acompanhar neste olhar sobre nós mesmos e sobre a realidade – não vá
acontecer a vida pregar-nos uma partida : pensarmos ter visto ‘o coelho’,
mas tudo não passar de uma ilusão de ótica, ou de um reflexo de termos as
lentes dos óculos sujas. Sabemos que muito facilmente podemos ser enganados por
nós mesmos e pelas correntes sociais e culturais que tanto vão marcando o nosso
dia-a-dia.
Os fantasmas, as
fantasias e… a vocação!
Sem
nos darmos conta, quando partimos para o grande bosque vocacional, se o fazemos sozinhos (porque não
precisamos de ninguém! Somos auto-suficientes!), o risco será andar à deriva,
ao sabor do vendo e a correr atrás do que outros correm e não daquilo que nós
mesmos andamos à procura. Isto não significa que a nossa missão é isolada
da dos outros, mas que é distinta da deles – é única – é na sua especificidade
que ela se articula e vai ao encontro da missão/vocação/vida dos outros.
Todos
os dias somos bombardeados com uma felicidade utópica, seja pela publicidade,
as artes ou o cinema. Tudo parece fácil e perfeito! Com esta ânsia do ‘fácil
e perfeito’, entramos no desejo de um futuro de fantasia ao invés de
corrermos atrás de uma felicidade concreta e real. A fantasia faz-nos ver ‘coelhos’
conforme nos dá jeito. Ao sabor da facilidade e do modo como nos apetece no
momento (sempre numa luta desenfreada de nos tornarmos marionetes : sem
sofrimentos nem lutas, apenas a seguimos para onde somos arrastados).
Outras
vezes, se permanecemos sozinhos no ‘bosque’, começamos a entrar no mundo
do medo. Em todos os becos existem fantasmas! O fantasma do ‘não sou capaz’,
o fantasma do ‘não sei o que faça’, os fantasmas ‘do coitadinho de
mim’! Também estes fantasmas, pouco a pouco, vão-nos turvando a visão e vão
conduzindo a que comecemos a correr para onde outros correm : afinal, se muitos
vão por ali, é sinal que deve ser bom! Mas, como se costuma dizer, o bom é
inimigo do ótimo. O ‘estar bem’, não é sinônimo de felicidade! O bom
para uns não é o bom para todos. Cada ser humano tem um caminho – uma vocação.
Copiar a dos outros, por medo ou por ser mais fácil, não é opção de vida : é covardia
e fuga da realidade/felicidade!
Ousar dar o primeiro
passo
Vencer
o problema do situar-se no presente e do discernir a vocação, afastando
fantasmas e fantasias, é uma questão fundamental para quem quer levar a vida e
a sua felicidade a sério e de modo responsável. A segunda questão a resolver
é... a da inércia! Avistado ‘o coelho’, temos de pôr os pés ao caminho!
O
Papa Francisco percebe estes dinamismos e dificuldades do caminho vocacional e
recorda que o próprio Jesus viveu a Sua vocação a partir de uma realidade
concreta (filho de um carpinteiro (Mt 13,55); o carpinteiro de
Nazaré (Mc 6,3)) e fez o discernimento vocacional que O levou à Missão
Redentora. A Sua juventude é marcada pelo sentir-se «Filho muito amado»
(Lc 3,22) e pela relação que tem com o Pai e com os Seus amigos. Mas, também,
todo o seu crescimento vocacional é marcado por incompreensões daqueles que
vivem à Sua volta : «Não é este o filho de José?» (Lc 4, 22),
questionavam sem compreender. Vizinhos, amigos e mesmo os seus pais pareciam
não perceber nada nem da missão nem da vocação de Jesus (Lc 2,48-50).
Não
é fácil viver por amor, mas é possível! O discernimento vocacional exige vencer
as barreiras do Maria vai com as outras, exige ousar ir para lá das fantasias e
dos fantasmas que, incessantemente, nos assombram e obstaculizam. Por isso
mesmo, o papa não deixa de interceder por todos quantos procuram genuinamente
dar o primeiro passo rumo a um discernimento sério e responsável da sua vocação
: «Queridos jovens, ficarei feliz vendo-vos correr mais rápido do que os
lentos e medrosos. Correi atraídos por aquele Rosto tão amado, que adoramos na
sagrada Eucaristia e reconhecemos na carne do irmão que sofre. O Espírito Santo
vos impulsione nesta corrida para a frente» (Cristo Vive, n.º 299).’
Fonte : *Artigo na íntegra https://www.combonianos.pt/alem-mar/artigos/8/367/qual-o-ponto-de-partida-aquele-onde-se-da-o-primeiro-passo/
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