*Artigo
de Massimo Faggioli,
colunista da La Croix International
Tradução : Ramón Lara
‘...Assim
como as revoluções políticas e convulsões culturais do século XVIII impactaram
os direitos divinos dos monarcas, a crise clerical dos abusos sexuais está
derrubando os direitos divinos da hierarquia católica. A crise é muito maior do
que um enorme problema de corrupção e encobrimento.
O
escândalo do abuso sexual na Igreja Católica não é um momento isolado na
história. Pelo contrário, deve ser visto dentro de uma série de desafios que a modernidade
colocou à religião institucional. No horizonte, enormes consequências a longo
prazo para o papel e a vida da Igreja.
Elas
incluem o seguinte : os efeitos da transparência e da responsabilidade na
religião organizada; a capacidade da Igreja de lidar com a psicologia da
indignação na era das mídias sociais; e a enorme renegociação das relações
entre a Igreja e o Estado, como o arcebispo australiano Mark Coleridge apontou
durante uma conferência de imprensa no encontro do Vaticano sobre o abuso
sexual de clérigos.
A
reunião de 21 a 24 de fevereiro - oficialmente chamada de ‘reunião sobre a proteção de menores na Igreja’ - será um momento
importante da história do catolicismo institucional.
E,
enquanto a parte mais decisiva depende do acompanhamento dos quatro dias de
reunião, a reunião em si já ofereceu uma imagem da Igreja que nos ajuda a
entender a complexidade da crise.
A
história da resposta da Igreja Católica à crise dos abusos sexuais como uma
crise global ainda tem que ser escrita, no entanto, podemos identificar três
formas diferentes com as quais o Vaticano lidou até agora.
Durante
o pontificado de João Paulo II, a resposta foi caracterizada pela atitude
defensiva e a negação - não apenas pelo próprio papa polonês, mas também por
seu séquito e altos funcionários do Vaticano que ele mesmo nomeou.
Havia
também a tendência de defender os agressores e aqueles que encobriam o abuso. O
exemplo mais escandaloso foi a nomeação do cardeal Bernard Law por João Paulo
II como arcipreste da Basílica Romana de Santa Maria Maggiore em 2004.
Durante
a era de Bento XVI, o Vaticano começou a se concentrar em casos como os
protagonizados pelos Legionários de Cristo e pela Igreja Católica na Irlanda.
Adotou
novos instrumentos legais para combater o fenômeno do abuso sexual, mas o fez
seguindo o modelo clássico de gestão eclesiástica de cima para baixo, baseado
em uma eclesiologia centralista.
O
pontificado do Papa Francisco deu início a um momento diferente, não apenas
pelos novos desdobramentos da crise global entre 2017 e 2018 (especialmente na
Austrália, Chile e Estados Unidos), mas também por uma abordagem eclesiológica
diferente.
Primeiro,
Francisco trouxe a crise para o Vaticano não apenas como um lugar para as
relações bilaterais entre Roma e a Igreja em um país ou uma ordem religiosa.
A
convergência acontece entre a percepção de Francisco sobre o catolicismo global
e sua eclesiologia da sinodalidade : todos os países representados no encontro
pela conferência episcopal, todas as áreas do mundo representadas pelos
oradores; as contribuições essenciais feitas pelas mulheres para a conferência;
a necessidade de criar um espaço e ter tempo para uma conversa eclesial que
precede qualquer tomada de decisão.
Em
segundo lugar, a eclesiologia da sinodalidade é relevante para o manejo do
Vaticano da crise dos abusos como uma Igreja global.
A
crise revelou a insustentabilidade de um modelo eclesiológico que, no segundo
período pós-Vaticano II (de João Paulo II a Bento XVI), frustrou o papel
teológico dos níveis local e nacional.
Neste
sentido, a ação de Francisco sobre a crise dos abusos sexuais foi uma
combinação necessária de impulsos do centro (desde a criação da Comissão
Pontifícia para o Abuso de Menores em 2014 até a reunião de fevereiro de 2019)
e a criação de novos espaços. para colegialidade e a sinodalidade.
Esta
é uma mistura que reflete não apenas a eclesiologia do papa, mas também a
necessidade de reciprocidade entre o nível universal-central e o nível local no
catolicismo romano.
Francisco
iniciou a conversão eclesiológica para uma maior colegialidade e sinodalidade,
conforme necessário para combater o clericalismo, que o papa identifica como a
causa e raiz do abuso sexual do clero.
Em
terceiro lugar, uma igreja sinodal requer discernimento. No recente encontro
sobre o abuso, o Vaticano tentou ser transparente no uso da mídia, fazendo com
que grande parte da reunião fosse acessível a qualquer um que desejasse
assistir a sessões públicas on-line, em particular as três apresentações diárias
e a coletiva de imprensa.
Mas
tentou equilibrar essa transparência com momentos privados, fora da câmera,
necessários para criar um clima de discernimento entre os participantes.
Por
esse motivo, não forneceu cobertura do período de perguntas e respostas após
cada apresentação. E permitiu que apenas os participantes do encontro
assistissem ao momento de oração penitencial do sábado e à missa de
encerramento do domingo, em vez de abri-lo ao público.
Essas
sessões a portas fechadas foram claramente necessárias também por razões de
segurança, em uma reunião realizada em um Vaticano sitiada, simbólica e
materialmente, por organizações representando vítimas de abuso e outros grupos
de defesa católicos.
Mas
as sessões fechadas também foram destinadas a comover os participantes e
sensibilizá-los sobre o encontro, também como um retiro espiritual, e não
apenas um evento da mídia.
As
liturgias do sábado e do domingo foram preparadas e compreendidas de maneira
muito diferente das do passado - particularmente as do pontificado de João
Paulo II. Por exemplo, a liturgia penitencial teve lugar na Basílica de São
Pedro onde aconteceu o Grande Jubileu (12 de março de 2000).
Quarto,
uma Igreja sinodal está aberta a diferentes tipos de contribuições provenientes
(ad extra) do mundo exterior.
Isso
foi muito visível nas fontes e organizações que o Papa Francisco citou em seu
discurso final : a Organização Mundial de Saúde, UNICEF, Interpol, Europol, o
Centro Asiático de Direitos Humanos, o Instituto Australiano de Saúde e
Bem-Estar e assim por diante.
O
encontro deu um lugar especial à mídia, não apenas como um simples mensageiro
da notícia, mas também como um ator-chave na história da crise dos abusos
sexuais católicos.
O
discurso da jornalista vaticana Valentina Alazraki do México foi sobre o
reconhecimento do poder da mídia na Igreja - e também uma captatio benevolentiae à imprensa dos estrategistas de mídia do
Vaticano.
Por
outro lado, a cúpula do Vaticano não incluiu outros atores-chave que poderiam
ajudar a entender melhor a complexidade da crise dos abusos, como
representantes da polícia, advogados, gerentes de seguros e, principalmente,
procuradores-gerais e promotores que trabalham para a jurisdição civil.
A
reunião do Vaticano ofereceu um quadro simplificado (apresentando as
hierarquias eclesiásticas, as vítimas e a mídia) de uma situação muito mais
complexa.
Quinto,
uma Igreja sinodal significa uma Igreja aberta à mudança que não é apenas
estrutural, mas também teológica. A cúpula deixou claro, mais do que nunca, que
a Igreja precisa de órgãos governamentais eclesiásticos que incluam mulheres na
mesa onde as decisões são tomadas.
Apesar
de todo o constrangimento visível do modo coloquial de Francisco falar sobre as
mulheres - especialmente duro para os ouvidos da maioria dos católicos no mundo
ocidental - é inegável que alguns passos positivos foram dados na direção
certa.
Mas
o espectro de problemas a longo prazo é muito mais amplo. O abuso sexual não é
apenas um problema para as igrejas ocidentais que enfrentam uma crise de
civilização, centrada em questões sexuais e biopolíticas.
Pelo
contrário, é um problema global e potencialmente mais sério para as igrejas em
lugares como a África, a Ásia e também a Itália, onde o abuso sexual tem sido
irresponsavelmente subestimado até agora.
Não
é simplesmente uma questão de lidar com um fenômeno criminoso. É também uma
questão teológica : da teologia dos sacramentos (especialmente da ordenação ao
sacerdócio) aos modelos eclesiológicos; do papel das mulheres na Igreja ao
magistério do século passado sobre moralidade sexual.
A
questão mais complicada diz respeito às reformas estruturais necessárias para
abordar a mística em torno do sacerdócio e do episcopado, que muitas vezes
ainda são vistas como posições de honra sem as responsabilidades que derivam
das ordens sagradas.
O
espectro das questões a serem abordadas é amplo. Nesse sentido, as demandas por
‘tolerância zero’, que devem ser
ouvidas, especialmente porque vêm de grupos de vítimas - podem se tornar um
slogan que não ajuda na compreensão da vastidão das questões em aberto.
Para
fazer uma comparação, o Concílio de Trento, no século XVI, não respondeu à
Reforma Protestante apenas com um programa de limpeza da corrupção.
Também
repensou algumas categorias teológicas. A resposta atual da Igreja ao abuso
sexual ainda está em seus estágios iniciais, e isso não é culpa apenas do
Vaticano ou da hierarquia eclesiástica.
O
paradoxo é que o escândalo atingiu mais fortemente os países mais distantes de
Roma - lugares como a Austrália e os Estados Unidos que são geográfica e
culturalmente distantes, e onde a teologia é vital, mas, nas últimas décadas,
teve menos impacto na elaboração de políticas doutrinárias e no magistério da
Igreja.
Sob o papa Francisco, o papado parece ter dado
um passo para frente na luta contra o abuso sexual clerical. Mas na Igreja
global, e nesta comunhão global feita de periferias, o catolicismo ainda tem
muitos passos para dar.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra http://domtotal.com/noticia/1336667/2019/02/roma-locuta-uma-aproximacao-a-eclesiologia-da-cupula-do-vaticano-sobre-o-abuso-sexual/