terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A minha alma tem sede de Deus


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Tânia da Silva Mayer,
mestra e bacharela em Teologia


‘O ser humano contemporâneo parece caminhar sem rumo e por estradas que conduzem a lugar nenhum. E essa nossa caminhada errante é sintoma da enfermidade de sentido que vivemos. Na tentativa de preencher o vazio que a perda do sentido provoca, tornamo-nos itinerantes em busca do que possa fomentar em nós sensações de completude. Nessa esteira de ver satisfeito nosso desejo, tornamo-nos consumidores materiais e espirituais à espera que o cartão de crédito ou um frasco de água benta nos faça saturar definitivamente a incompletude que somos. Isso é um grande engano. Sentir falta, não nos sentirmos preenchidos define também nossa existência, permitindo também que desejemos e nos mobilizemos para estancar a sede que sentimos.
E por falar em sede, o salmo 42-43 serve bem para ilustrar a sede e o desejo humano de Deus, bem como a abertura para acolher o Deus que se revela em Jesus Cristo e se dá a conhecer ao mundo. Tal salmo é fiel representação da existência humana (pessoal e/ou comunitária), que no âmago de sua alma sente desejo de Deus. O salmista é reflexo do desejo antropológico por Deus, aqui representado pela alma do orante que está angustiado. Sua situação é a de alguém que está longe do seu espaço familiar, distante de sua terra, exilado. Provavelmente está fora de Jerusalém, do Templo, na região montanhosa do sul do Hermon. O salmista vive nostalgicamente, uma vez que já não contempla mais a ‘face de Deus’ em seu Santuário. E é em meio à opressão que ele o busca para não perdê-lo.
O salmo 42 compõe seu cenário no contexto da natureza: uma corça sedenta está em busca de um poço para matar sua sede (v. 2). A figura da corça, (também podemos chamar de cervo) é muito apreciada dentro da literatura bíblica. Muitas vezes é relacionada com o mundo da divindade, tomada como a mediadora do céu e da terra; quando associada ao ser humano, diz respeito à imortalidade, ao sucesso. A crítica textual ressaltará que o v. 2 ao descrever tal animal o apresenta na qualidade de um animal macho, sobrepondo-se a sua figura feminina. No entanto, esta está mais próxima das questões vitais, tal como o parto e do nascimento. De modo geral, a figura do animal é representação da força humana em sentido físico e espiritual. No salmo em questão, o desejo vital pela água que a corça sente é metáfora da ansiedade que o salmista tem por Deus. De fato, tal como a água é fundamental para o florescimento da vida na terra dura e seca, assim Deus é fundamental para o ser humano, pois é o único capaz de estancar nossa sede de sentido e de fé.
Ainda no v. 2, há outro termo bastante importante, a alma (nefesh). Na tradição bíblica, a alma é expressão da energia vital do ser. Ela está vinculada a uma parte do corpo responsável por engolir e respirar, a garganta. Podemos, uma vez mais, perceber a profundidade da imagem utilizada pelo salmista ao aproximar a imagem do ser humano de desejos à composição físico-corpórea dos animais.
Em muitos casos, o termo ‘alma’ pode designar o estômago, outras vezes, a respiração e o sopro. No salmo 42, a alma é expressão da fome, do desejo pelo alimento que garante sua sobrevivência. Ampliando a hermenêutica, a alma não está somente referida à sobrevivência físico-biológica, mas à sobrevivência emocional e espiritual da pessoa, ela é o espaço da saudade e do desejo humano. Não se refere a ‘algo imaterial’, como estamos acostumados a cogitar em nossas catequeses, mas designa aquilo que é ‘centro da vida da pessoa, em seu sentir, respirar, reagir e no seu decidir’. Refere-se, em todo caso, ao ser humano como um ser de desejo, capaz de desejo. Assim como a corça estica a garganta para buscar água, o orante do salmo abre a sua alma para beber daquela fonte que é princípio de vida : Deus; sem o qual sua vida já não apresenta nenhuma força, sem o qual nossas vidas continuarão errantes e sem sentido.’

Fonte :

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A Quaresma exige que nos aproximemos a Deus, ainda com algumas peças faltando


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Colleen Gibson, SSJ,


‘‘Não só nós desejamos a vida em abundância, Deus também a deseja para nós. Não apenas nossos olhos e ouvidos devem estar atentos, os ‘olhos’ e ‘ouvidos’ de Deus estão sempre atentos a nós... Deus não espera que percamos o caminho da vida, Deus vem ao encontro antes que a alma termine sua oração para nos mostrar o caminho. E o caminho é se alegrar com essa Presença constante e amorosa’. - Norveen Vest, Desejando a Vida.
Há algumas semanas, encontrei-me na frente de cerca de 150 estudantes do ensino médio e ensino fundamental em uma escola local, onde uma das agentes pastorais da minha congregação é a diretora. Eu tinha sido convidada para falar sobre vocações e minha própria história.
Depois de falar com um número semelhante de estudantes mais novos, mergulhei na lição preparada pelos nossos diretores vocacionais para estudantes do ensino médio. Começamos olhando para o nosso ser único e como o Deus que nos fez nos chamou unicamente para sermos quem realmente somos vivendo nosso chamado ao amor e a encarnar o amor de Deus no mundo.
Contudo, sem importar a idade, explorar tais tópicos não é simples. E assim, depois de ler um poema e uma oração, tirei uma bolsa cheia de quebra-cabeças de 24 peças com figuras de animais bonitos e personagens de desenho animado. Sem conhecimento dos alunos, intencionalmente faltavam peças em cada quebra-cabeça.
Agrupei os alunos por nível de escolaridade, os organizei em 15 grupos ao redor do ginásio em que estávamos e colocamos a pilha de quebra-cabeças no centro da sala. ‘Sua tarefa’, disse a eles, tentando me fazer ouvir no meio das conversas no espaço, ‘é criar uma imagem completa. O primeiro grupo a completar esta tarefa ganha!
Com esse desafio, os níveis de energia e ruído na sala subiram um tanto. Contando até três, cada grupo enviaria um membro correndo para entregar o quebra-cabeças pronto e correr de volta para que pudessem vencer.
Um, dois, três!’ Gritei no microfone enquanto os estudantes se levantavam em busca do prêmio.
Logo os grupos começaram a perceber que algo não estava certo. Primeiro, os alunos mais velhos me perguntaram. ‘Você sabe onde estão nossas peças?
Eu balancei a cabeça e fiz que não sabia. Quase instantaneamente começaram a refletir sobre o que tudo isso significava. Antes que eu pudesse ouvir o que eles falavam, um estudante mais jovem correu para mim sem fôlego e com um olhar de pânico no rosto. ‘Nós não temos todas as nossas peças... Onde estão?
Novamente, fiz que não sabia. Ele rapidamente saiu correndo e começou a procurar sob cadeiras e nos cantos do ginásio as peças que faltavam. Enquanto isso, seus colegas de classe de ensino fundamental começaram a me perguntar qual era o verdadeiro significado desse exercício.
O que vocês acham?’ Perguntei para eles.
Suas respostas me surpreenderam : ninguém é perfeito. Deus é a peça que falta. Nem sempre podemos juntar a imagem inteira. Você precisa de outras pessoas para juntar as peças e ajudar a completar o quebra-cabeça.
Todas essas lições são verdadeiras.
Quando chamei o grupo de volta e a frustração de não ganhar diminuiu, as lições começaram a ressoar nos alunos e eles começaram a reconhecer que os quebra-cabeça tinham mais para nos ensinar sobre como Deus nos chama e como juntamos ou respondemos a esse chamado, mesmo quando não temos todas as peças.
Então terminei compartilhando partes da minha história e convidando os alunos a se esforçarem para trabalhar com Deus reunindo o quebra-cabeça de seu próprio chamado, agora e no futuro.
Esse é o chamado para cada um de nós. Deixando a escola, pensei na ânsia com que os alunos responderam e as conclusões que eles expressaram. Eu me acariciei nas costas e logo voltei para a rotina da vida cotidiana, mas sem esquecer a experiência. Ou seja, comecei a me preparar para a Quaresma.
Refletindo sobre o que eu poderia renunciar na quaresma (jejum), devolver (esmolas) e dar em oração (rezar) para aproximar-me de Deus neste tempo de Quaresma, a imagem do espaço vazio no quebra-cabeça voltou para mim.
Todos nós temos esses espaços em nossas vidas que precisam de maior clareza, as peças de nossas vidas que exigem tempo, paciência e oração para ser descobertas, encontradas e redescobertas. Os espaços vazios nos lembram das lições que muitos de nós passamos a vida tentando aprender - ninguém é perfeito; ninguém precisa ser perfeito para ser amado; há graça em espaços vazios; Deus nos enche quando nada mais pode.
Refletindo no profundo da minha própria consciência e vida espiritual, lembrei-me do garoto de ensino médio que correu até mim em pânico, sem fôlego e procurando desesperadamente os pedaços. Quantas vezes na vida ou nós mesmos nos ocupamos buscando freneticamente as peças que faltam? Correndo e correndo até o esgotamento, apenas para perceber que poderia nos beneficiar mais nos acostumarmos com o espaço vazio?
Quando damos uma olhada amorosa em nossas vidas, o que poderia nos beneficiar mais : preencher o buraco em nossa vida ou estar no buraco com Deus?
O último é um gesto simples e profundo. No espaço vazio, nos rendemos, nem sabemos nem precisamos saber; podemos simplesmente estar, e estar perfeitamente bem em e com Cristo.
Em seu novo livro (e podcast que o acompanha), Everything Happens for a Rason(And Other Lies I've Loved), Kate Bowler sublinha ‘o que é viver uma vida não brilhante em um mundo que prefere pessoas de purpurinas’. Essa palavra - ‘brilhante’ - ressoa dentro de mim quando considero a vida que vivo e a vida a que cada um de nós é chamado. A vida pode ser bagunçada, e muitas vezes achamos que as peças estão faltando ou que elas não se encaixam no quebra-cabeça da maneira que pensamos que deveriam. O convite de Deus é sujar, rasgar nossos corações como o Profeta Joel declara nas Escrituras que acompanhamos na quarta-feira das cinzas.
A Quaresma não é um tempo de brilho; é um tempo de cinza e dependência. Isso nos obriga a inclinar-nos para Deus enquanto examinamos (e esperançosamente deixamos de lado) o que nos impede crescer em relação com Deus e com os outros. Isso requer determinação. Não é importante apenas fazer o ‘certo’, mas é importante a determinação de deseja-lo, perseverar, ocupar os espaços vazios e abraçar as partes faltantes e, talvez, no processo, recuperar a paz que falta.
Ao entrar nestes 40 dias de reflexão, somos chamados a ficar com Deus. De forma intencional, temos a oportunidade de nos envolvermos profundamente com o Deus que caminha através da vida conosco, estar nos espaços aparentemente vazios de nossas vidas e compartilhar esse espaço com Deus. Que possamos ser fiéis a esse chamado e a Aquele que nos encontra, atentos à presença de Deus e a encontrar a plenitude nos espaços misteriosos onde Deus permanece.’

Fonte :

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Novos líderes novos


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Ao se contemplar horizontes eleitorais, para além do mecanismo de apertar botões, é hora de refletir, apostar e apoiar o surgimento de novos líderes.
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG


‘A sociedade clama por renovação. É preciso encontrar respostas novas capazes de libertar as instituições políticas, culturais, empresariais, educacionais e também as religiosas dos engessamentos e dos funcionamentos que são pesados, custam muito e apresentam resultados insatisfatórios.
Esse é um fenômeno de ordem mundial e se explica pelas proporções das crises de todo tipo que se abatem sobre o conjunto da humanidade, criando cenários que comprovam ineficiências e incompetências. São preocupantes a indiferença e a falta de intuição para encontrar o caminho que pode fazer alcançar as metas das inovações e das respostas eficazes.  
Na sociedade brasileira, verifica-se a falta de credibilidade nas instituições de referência, o que pode ser explicado por fatores diversos como a caducidade do parlamento, na esfera federal, e das instâncias de representatividade popular nos contextos estaduais e municipais. O funcionamento é viciado e pautado por formas que impedem o desabrochar do novo. Essa realidade, que se pode atribuir ao ideológico não praticado, por exemplo no contexto pluripartidário, apresenta diversos aspectos. Um deles é a ineficácia e a ausência de assertividade na fomentação do diálogo para articular a pluralidade, dificultando o aproveitamento das diferenças amalgamadas que poderiam ser instrumentos na construção de novas respostas. Ao contrário, o ideológico praticado no âmbito partidário serve apenas para a defesa de interesses, manipulações e incompetente tratamento dos processos. Constatam-se insensibilidades e morosidades nos procedimentos para atender às necessidades do povo.
Há uma manemolência nos processos operacionais de governos, das diferentes esferas, também no atendimento das demandas de infraestrutura. Realidade reconhecida pelo Judiciário ao fazer o ‘mea culpa’ sobre a velocidade e a qualidade das respostas institucionais. A sociedade brasileira vai ficando para trás. Vai ficando para trás em razão de governanças, exercícios e representatividades que não conseguem intuir o novo e encontrar o rumo das novas respostas. Esse mal se derrama sobre o conjunto da sociedade, atingindo também as esferas privadas, religiosas e particulares. O preço pago pela sociedade é muito alto. Vê-se uma crescente degradação social, particularmente atestada pelo recrudescimento da violência, já em muitos lugares, produzindo passivos que não serão superados senão a longuíssimo prazo.
A saída é a possibilidade do surgimento de novos líderes: não é uma questão etária e meramente cronológica. A exigência, em vista do atendimento de demandas urgentes, é a aposta no surgimento e desabrochar de novos líderes novos no lugar das lideranças comprometidas pelos vícios. Nenhuma instituição, seja ela qual for, dará conta de muita coisa sem líderes audaciosos, generosos, capazes de intuitir novos caminhos. Líderes prudentes e respeitosos, propositivos e inovadores, além de cônscios da importância das raízes e tradições. Ao se contemplar horizontes eleitorais, para além do mecanismo de apertar botões, é hora de refletir, apostar e apoiar o surgimento de novos líderes.
Novos líderes novos são os que podem, talvez por não estarem ocupando cargos há muito tempo, dar conta de gerir processos de forma adequada. Atribuição que inclui preparação científica e acadêmica, não dispensa experiências, mas exige sobretudo equilíbrio emocional e psicológico para formatar decisões próprias, agir com ética e responsabilidade, sem baixar a guarda, sem medo e  lamentações.
É hora de a sociedade brasileira repensar e redefinir processos. Há um novo que precisa ser encontrado, mas não se pode fazer isso com instrumentos obsoletos e com as costumeiras dinâmicas. É hora de encontrar novos líderes, novos em isenção de vícios nos funcionamentos institucionais, novos pela audácia de ousar nas inovações, novos pela leitura competente da realidade, novos pelo gosto de governar para servir ao povo, transformando o quadro social, político e cultural. Assim, as instituições poderão ser instrumentos da construção de uma nova sociedade, de uma cultura de maior alcance em razão de suas raízes profundas e qualificadas, por vezes desconhecida ou pouco valorizada.
 É a hora dos novos líderes novos.’

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quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Tanzânia : 150 anos de evangelização


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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‘A Igreja da Tanzânia prepara-se para celebrar o jubileu dos 150 anos de evangelização. As iniciativas centrais decorrerão no mês de Outubro e vão centrar-se em Bagamoyo, lugar onde chegaram os primeiros missionários em 1868. Os primeiros evangelizadores da Tanzânia foram os Missionários do Espírito Santo, que estabeleceram aldeias de escravos libertados e educaram a população. Os escravos converteram-se nos primeiros catequistas que levaram a fé para as outras regiões do país.’

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terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Divino nas nossas mãos


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre António Rego,
jornalista

‘Tive a alegria e a honra de viver e transmitir, pela rádio e pela televisão, grandes momentos de celebração religiosa. Com os papas peregrinos que encontraram pelo mundo fora multidões repletas de entusiasmo, num cenário vivo de alegria e glória. Não pelo espetáculo pontifício, mas pela forma como souberam juntar a fé, devoção, liturgia, entusiasmo e cultura. Em África e na Ásia sobretudo, no Norte, Centro ou Sul. Não se tratou de um simples deslumbramento, mas da forma viva, festiva e interior como os cristãos celebravam a sua fé, em particular a Eucaristia. E não era apenas a beleza dos cânticos – polifonias populares improvisadas –, mas da participação pela palavra, pelo gesto e pelo silêncio. Nem havia transgressão de qualquer rubrica do rito oficial que, sendo o mesmo, ganhava riqueza na forma como era animado pelo presidente e seguido por toda a assembleia que lhe emprestava, a um tempo, um tom festivo sem lhe retirar a interioridade. Era uma exaltação do sagrado e o mistério da fé que se exprimia em plenitude em comunidade de Igreja fazendo um só entre o presidente, a assembleia e a composição do texto ou do canto. Engana-se quem julgue que o rito só ganha dignidade na imitação monacal por vezes estática e melancólica.
A liturgia é mais que o rigor dos paramentos românicos, a alvura dos linhos engomados, das simétricas toalhas de altar, dos encerados do presbitério, ou o brilho das pratas e ouro dos vasos sagrados. Deus merece o melhor, o mais belo e até o mais rico. Mas não é aí que reside o melhor de uma comunidade celebrante do mistério eucarístico evocativo da Última Ceia. O mais rico é a comunidade.
Deixem-me por isso lembrar as celebrações que vivi, testemunhei e gravei – no coração e na câmara – no Norte, Centro e Sul de África, por exemplo. A aproximação do templo – por vezes perdido no meio da floresta, tão majestoso e belo quanto os que estamos habituados a ver – como pequenas cabanas com a luz imprecisa a entrar por frestas e tetos de colmo, com os sons de jovens, adultos e crianças no seu máximo de vibração, esplendor de melodia e delicadeza de harmonia, para não falar dos ritmos que se sentem mais do que se ouvem e não deixam adormecer nem o corpo nem alma. Contagiam, constroem comunidade, deixam falar o Espírito, fazem comunhão com o todo, exaltam o mistério da fé.
Entre nós, por vezes, acentuamos a solenidade no majestoso dos templos e na decoração rica das alfaias, no rigor dos passos dos clérigos e no cumprimento milimétrico dos gestos e das rubricas. Por vezes perante o silêncio indiferente das comunidades que, sendo respeitoso, esconde a alegria da ressurreição que deveria estar patente e inequívoca em todas as celebrações.’


Fonte :

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Deserto : tempo de 'des-velamento' interior

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

O amadurecimento humano implica abraçar toda nossa verdade, também aquela que nos aparece sob disfarces temerosos, como o medo, a solidão, a tristeza, a angústia...
*Artigo d0 Padre Adroaldo Palaoro, Jesuíta


Reflexão sobre o Evangelho do 1º Domingo da Quaresma- Mc 1,12-15


O Espírito levou Jesus para o deserto’ (Mc 1,12)

‘Ao iniciarmos a Quaresma, um lugar que continuamente será citado e que vai aparecer com frequência nos textos, reflexões e orações, é o “deserto”. Deserto que deve fazer parte de nossas vidas em algum momento : espaço de escuta e de silêncio, de busca, de despojamento; lugar que nos faz tomar consciência das coisas essenciais que dão sentido à nossa existência; ambiente privilegiado para o encontro tu a tu com o Deus amor que nos habita, ou melhor, em Quem habitamos. Se nos abrirmos à Sua presença amorosa, caminharemos livres dos falsos absolutos que cada dia nos tentam, e nossos desertos existenciais se converterão em um jardim onde florescerá de novo a esperança.
Como seres humanos, de tempos em tempos precisamos passar por experiências de despojamento, de esvaziamento, de vulnerabilidade, de crise..., para poder suavizar nosso coração e, desse modo, fazer-nos mais receptivos e expansivos.
“deserto” é o lugar das perguntas, do discernimento, da busca de profundidade, o ambiente favorável que nos oferece ferramentas com as quais poder romper as bolhas que nos aprisionam, impedindo-nos sair para a aventura da vida.
“deserto” nos sacode e nos desnuda, porque desmascara nossas falsas seguranças. Por isso, somos movidos a buscar nossas raízes mais profundas. Quando esse percurso é vivido adequadamente, é provável que no final vamos poder dizer, como Kierkegaard, “eu teria me afundado se não tivesse ido ao Fundo”. Com efeito, antes ou depois, o deserto nos conduzirá para o Fundo estável e sereno, nos conduzirá à “casa”, à nossa verdadeira identidade, à “Terra prometida”.
Num mundo em que a imagem e as redes sociais ocupam, com suas presenças, toda a nossa vida, todos os nossos lares, os espaços públicos, fazendo-nos viver a cultura da superficialidade, muitas pessoas de diferentes condições sociais e religiosas já começam a sentir a urgente necessidade de escapar de tanta solicitação externa que as oprime e alimentam o desejo de se ocupar mais decididamente com o seu mundo interior.
Mas, se somos sinceros, adentrar-nos em nosso “eu profundo” e viver a partir de dentro é algo que não sabemos e muitas vezes até sentimos medo. É cada vez mais difícil a criação de um espaço interior, em sintonia e bem integrado com o mundo exterior.
Nesse sentido, a liturgia quaresmal revela-se como uma mediação privilegiada para potencializar nossa interioridade, ou destravá-la, para que a expansão de nossa vida seja possível. Tal experiência resgata-nos do entorpecimento e nos dá um choque de lucidez. Ela oxigena a nossa mente e implode nosso conformismo; revela-se instigadora e provocativa, fonte inspiradora que nos liberta do cárcere da rotina. Ela nos faz lembrar que somos andarilhos, deslocando-nos no traçado da existência em busca de respostas que deem sentido à nossa existência.
O caminho para Deus passa pela experiência mais profunda e autêntica de si mesmo, convidando cada um a repensar como, em meio às dificuldades de cada tempo, sempre é possível o percurso em direção à própria interioridade.
Buscar o Deus que “está dentro de mim, enquanto eu estou fora” (S. Agostinho), significa entrar em relação direta com nosso interior, com o que nos move, com o que sentimos e pensamos; significa dissolver bloqueios afetivos já solidificados e conflitos não resolvidos; é fazer que se calem muitos ruídos parasitas e que se escute, por fim, o silêncio sonoro que brota do oculto; desentupir os condutos do coração e processar a lava ardente dos grandes desejos significa abrir os olhos para uma paisagem desconhecida.
Foi no deserto onde Jesus descobriu o que move verdadeiramente o coração do ser humano. Foi nessa situação – de solidão – onde também descobriu o que Deus ama no coração humano.
Nessa experiência de deserto Jesus tomou consciência de duas forças ou dinamismos que atuam no coração humano : um de expansão, de saída de si, de vida aberta e em sintonia com o Pai e com os outros; outro, de retração, de auto-centração, de busca de poder, prestígio, vaidade...  
Jesus viveu impulsionado pelo Espírito, mas sentiu em sua própria carne as forças do mal : “foi tentado por
satanás”; satanás significa “o adversário”, a força hostil a Deus e a quem trabalha por seu reinado. Na tentação de Jesus se des-vela o que há em nós de verdade ou de mentira, de luz ou de trevas, de fidelidade a Deus ou de cumplicidade com a injustiça. Qual dos dois dinamismos internos alimentamos?
O evangelista Marcos ressalta que o “deserto” não é só um lugar geográfico; é também o lugar que buscamos para nos silenciar e nos oferecer a oportunidade para reconectar conscientemente com nosso centro.
Em todo processo de crescimento, e mais ainda nos períodos críticos do mesmo, vamos nos deparar com a presença dos “animais selvagens” e dos “anjos” em nosso eu profundo.
É assim que nomeamos as experiências que acontecem quando nos adentramos em nosso mundo interior.
Os “animais selvagens” são aquelas circunstâncias internas e que nos frustram e, sobretudo, aquele material psíquico que não reconhecemos ou aceitamos em nosso interior : nossas paixões, nossos traumas, nossas feridas, nossos instintos, nossa impotência e fragilidade... É a “sombra” que vamos arrastando, e que continua nos assustando enquanto não a reconhecemos e a abraçamos abertamente em sua totalidade. 
Os “anjos” são os consolos – externos e internos – que aparecem em nosso caminho, em forma de paz, de luz, compreensão, de fortaleza, de amor...
“Animais selvagens e anjos” cumprem seu papel, pois nos “obrigam” a avançar para nossa verdade profunda, tirando-nos da superfície de nós mesmos, ou talvez da “zona de conforto” na qual tínhamos nos instalado, conformando-nos com uma vida “normótica” e sem criatividade.
O amadurecimento humano implica abraçar toda nossa verdade, também aquela que nos aparece sob disfarces temerosos, como o medo, a solidão, a tristeza, a angústia... Lidar com tais “feras” requer capacidade de olhá-las de frente, com compreensão, paciência e muito afeto.
A espiritualidade cristã nos mostra que exatamente em nossas feridas nós descobrimos o tesouro do nosso verdadeiro “eu”, escondido no fundo de nosso coração.
Tradicionalmente, fomos coagidos a viver uma espiritualidade que nos ensinou a prender os “animais selvagens” e a levantar junto deles um edifício de “grandes ideais”.
E com isto, passamos a viver constantemente com medo de que as feras pudessem fugir e nos devorar.
Sabemos que tudo quanto nós reprimimos nos faz falta à nossa vida. Os “animais selvagens” tem muita força. Quando os prendemos, fica nos faltando a sua força, de que temos necessidade para o nosso caminho para Deus, para nós mesmos e para os outros. Somos obrigados a fugir de nós mesmos, ficamos com medo de olhar para dentro de nós, pois poderíamos correr o risco de nos deparar com as feras perigosas.
Quando, graças à presença dos “anjos”, deixarmos de rejeitar e de resistir aos “animais selvagens”, iremos tomando consciência como a luz e a fortaleza vão se expandindo em nosso interior; nós nos perceberemos mais unificados e harmoniosos. E assim, estaremos mais preparados para a “travessia” em direção à Páscoa.
Texto bíblico :  Mc 1,12-15
Na oração : Cuidamos da interioridade quando nos questionamos sobre o modo como olhamos a vida, como atuamos diante das situações, como nos relacionamos com os outros, como vivemos nossas convicções e crenças; e, sobretudo, quando nos exercitamos em determinadas “atividades espirituais” que podem nos ajudar a des-velar o nosso “eu original”, como o silêncio, os momentos de oração, o encontro com a Palavra, a partilha em grupo...
- Quê mediações você vai ativar durante a Quaresma para ajudar a des-velar sua própria interioridade?’


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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Humildade para ouvir


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 O verdadeiro ouvir exige humildade.
*Artigo de Fabrício Veliq,
protestante, é mestre e doutorando em
teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE),
doutorando em teologia na Katholieke Universiteit Leuven - Bélgica,
formado em matemática e graduando em filosofia pela UFMG


‘...No texto da semana passada falamos a respeito de um Cristianismo que precisa reaprender a ouvir, recuperando assim uma característica primordial da experiência do povo de Israel para com seu Deus. Que isso seja uma tarefa difícil, ninguém o poderá negar. Afinal, a disposição para ouvir vem quando se considera que o outro que está diante de nós seja digno de respeito e de ser ouvido. Sem esse princípio básico, a fala desse outro se torna somente um amontoado de sons emitidos e palavras jogadas ao ar sem a menor relevância.
Durante muito tempo o Cristianismo se mostrou como uma religião que não estava disposta a ouvir por não considerar as outras vozes dignas de serem ouvidas. Ainda hoje, esse tipo de postura se faz presente entre cristãos e cristãs espalhadas pelo mundo, sendo um exemplo bem vívido disso a questão do diálogo inter-religioso.
A grande ironia é que uma boa parcela de cristãos e cristãs da atualidade dizem que se deve estar disposto a dialogar com as outras religiões e ouvir os seus discursos, bem como pregam que deve haver tolerância e respeito pelos pensamentos divergentes, desde que no final desse suposto diálogo se chegue à conclusão de que o Cristianismo seja a melhor religião que existe, a que compreendeu melhor a pessoa de Deus e o melhor caminho para se alcançar a salvação. Por incrível que pareça, são várias as pessoas que não vêm a dissonância entre a proposta de diálogo defendida e a conclusão proposta para esse diálogo.
Diante desse cenário não tão difícil de ser encontrado, é possível dizer que um dos motivos pelos quais isso ocorre é porque o Cristianismo atual ainda mantém certa ideia exclusivista a respeito do relacionamento com Deus e, dessa forma, tudo que vai contra a conclusão de que ‘o Cristianismo é a melhor religião que existe’ ainda é visto, por muitos, como afronta e obra do inimigo, devendo, por isso, ser totalmente desconsiderado. Em outras palavras, ouvir alguém de uma religião não cristã (em alguns casos, até mesmo cristãos e cristãs com doutrinas diferentes) se torna algo perigoso e que deve ser evitado para que não se caia nos enganos e ciladas do inimigo que visam corromper a fé.
Quando isso acontece, a proposta de diálogo se torna um grande jogo de xadrez, onde o discurso de ouvir o outro é somente uma tática de jogo para tentar encontrar algum erro argumentativo, a fim de começar a ação proselitista mascarada de diálogo inter-religioso. Mas, se é essa a postura com a qual um cristão ou uma cristã segue para o diálogo, as palavras do outro não fazem diferença para o questionamento a respeito da própria fé e a disposição honesta de ouvir já se foi há muito tempo, restando somente o antigo complexo de superioridade que afeta o Cristianismo desde longa data.
O verdadeiro ouvir exige humildade. Exige enxergar o outro como igual em dignidade e, por isso mesmo, como tendo algo a contribuir para tornar-nos melhores cristãos e cristãs. Se isso é verdade para qualquer diálogo, para o diálogo inter-religioso isso se mostra como imprescindível, uma vez que somente uma religião humilde é capaz de um diálogo honesto e verdadeiro com outra. Recuperando o texto de semana passada, é possível dizer que sem humildade não há audição e sem audição não há diálogo.
 Assim, somente um Cristianismo que imita àquele que é manso e humilde de coração será um Cristianismo disposto a se reeducar para ouvir tanto a sociedade em suas questões quanto às outras religiões em suas contribuições.’


Fonte :

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Juízos políticos


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG


‘A indiferença cidadã diante da necessidade de se formular entendimentos a respeito da política traz prejuízos graves. Por isso mesmo, é urgente investir, sem partidarismos e polarizações ideológicas, para que todos possam constituir qualificados juízos políticos – uma tarefa de diferentes instituições, particularmente as educativas, culturais e igrejas. O desinteresse das pessoas em participar, de modo qualificado, de debates e reflexões é um déficit crônico que inviabiliza a contribuição cidadã para edificar uma sociedade mais justa.  Em vez de se buscar formar juízos políticos, delega-se a definição dos rumos do país a segmentos específicos, muitas vezes sem credibilidade.
A qualidade de discernimentos para o exercício da cidadania requer uma formação que ultrapassa o simples acúmulo de conteúdo informativo ou o conhecimento de números.  As informações e estatísticas podem ser importantes, mas imprescindível é o conjunto de critérios éticos que permita identificar e combater configurações ideológicas ligadas a interesses distantes da necessidade do povo.  A participação cidadã, a partir da ética, permite reconhecer também que o juízo político é algo complexo e não pode ser reduzido a ‘paixões partidárias’, com embates que se assemelham aos de torcedores de times rivais.  
A obtusidade de cidadãos na tarefa de emitir juízos políticos é um contrassenso diante da ‘oportunidade de ouro’ que a sociedade tem para dar um passo adiante no amadurecimento da democracia. É preciso reconhecer essa carência e superá-la para conseguir promover as mudanças necessárias ao país - o que inclui melhorar o quadro dos que se submetem ao sufrágio nas urnas. Todos sabem que o cenário atual é desolador. A falta de credibilidade da classe política faz com que até mesmo as pessoas íntegras sejam vistas com desconfiança por conviverem com muitas outras que deveriam representar o povo, mas se deixam seduzir por interesses mesquinhos.
O tratamento da corrupção, que é endêmica no Brasil, requer amadurecimento no processo de formação de juízos políticos e o primeiro passo nesse processo é vencer a indiferença, alimentada pela decepção diante do que se verifica no mundo da política. Com a efetiva participação do povo, a classe política será induzida a sair dos leitos de partidarismos. Deixará de ter como prioridade quase exclusiva a eleição de seus pares. E engana-se quem pensa que esse partidarismo, que nutre atitudes egoístas, restringe-se aos ambientes da política institucional.  Esse é um mal sofrido por qualquer instituição, seja de natureza política, religiosa, seja cultural.
Há modos e escolhas ideológicas incapazes de promover avanços, mas que determinam a formatação de certos juízos. Consequentemente, são escolhidos caminhos e nomes que emperram processos de transformação. Há uma forte tendência, em todos os lugares, para se buscar manter tudo do jeito que está. Prevalece, assim, a ‘vista grossa’ diante de mediocridades - são escolhidos até mesmo nomes e projetos que tornam distante a possibilidade de se alcançar um bem maior. A opção mais comum é pelo caminho que garanta ‘vantagens’ individuais ou a pequenos grupos.  Eis uma miopia cidadã, patologia que incide sobre juízos políticos e precisa ser extirpada, principalmente em ano eleitoral.
 Grande é a responsabilidade cidadã nesse processo. Importante sublinhar ainda o dever da mídia na sua tarefa educativa e informativa. A participação política cidadã, no diálogo e no exercício do respeito mútuo, deve ser incentivada. Essa participação torna-se mais rica quando são socializados juízos políticos, um intercâmbio que qualifica compreensões e interpretações - da realidade e dos fatos. Cada pessoa esteja aberta para o diálogo, com a necessária disposição para escutar, ponderar, e, assim, amadurecer escolhas. Quando há efetiva participação cidadã, os juízos políticos deixam de ser influenciados por quem não prioriza as urgências do povo. Agora é a hora oportuna de investir para formar qualificados juízos políticos.’


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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Chamados a ouvir


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Imagem relacionada
*Artigo de Fabrício Veliq,
protestante, é mestre e doutorando em
teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE),
doutorando em teologia na Katholieke Universiteit Leuven - Bélgica,
formado em matemática e graduando em filosofia pela UFMG


Ouve, ó Israel. Essa é a forma com que se inicia o chamado de Deus para que seu povo o obedeça e siga seus caminhos. Assim, a comunidade de Israel, antes de seguir adiante em sua peregrinação e ir ao encontro de seus inimigos, é chamada a ouvir a voz do seu Libertador.
Jesus, um judeu que viveu na Palestina no século I, entendeu muito bem essa característica de ouvir. Em toda sua caminhada relatada nas narrativas evangélicas, percebe-se a atitude de um homem que ouve e responde àquilo que seu Pai lhe diz.
O Cristianismo, que nasce a partir da experiência dos discípulos com a pessoa de Jesus, diversas vezes ao longo de sua história perdeu essa característica da audição, tornando-se uma religião menos disposta a ouvir e mais disposta a falar. Após se constituir como religião hegemônica no Ocidente, a atitude de falar antes de ouvir e dar respostas a perguntas não feitas se mostraram marcantes nessa religião que nasceu, ironicamente, de uma outra, que tem a audição como base para o cumprimento daquilo que se considera a vontade divina.
Com esse tipo de atitude, as outras vozes passaram a ser desnecessárias, errôneas e, em alguns casos, até mesmo consideradas indignas de serem ouvidas. Afinal, para esse Cristianismo, Deus não estava mais no caminho de peregrinação junto ao seu povo e de sua Criação, mas havia se instalado dentro de uma estrutura fechada e somente falava a partir dela. Em outras palavras, um Deus que se mostra como peregrino se transformou em um Deus monarca que se assenta em seu trono e governa somente de lá.
Mesmo com algumas renovações trazidas por meio da Reforma Protestante e, séculos mais tarde, pelo Concílio Vaticano II, ainda é possível notar um Cristianismo que fala demais, ouve de menos e, em muitas situações concretas, age menos ainda.
Diante desse cenário, recuperar a característica da audição é uma tarefa imprescindível para o Cristianismo atual. Este deve estar disposto a abrir os ouvidos para o clamor dos marginalizados e explorados por um sistema que subjuga os pobres e privilegia os ricos, bem como abrir-se na disposição de escutar os grupos minoritários que demandam que seus direitos sejam garantidos e, a partir dessa audição, lutar pelas causas que ferem a dignidade humana.
Para que essa luta em favor dos desfavorecidos aconteça, é salutar que o Cristianismo ouça primeiro e, somente após ouvir atentamente a demanda que o outro possui, diga e faça algo que possa gerar vida e trazer alívio para o demandante. Dizendo de outro modo, é necessário, mais do que nunca, que os cristãos e cristãs atuais sejam pessoas sábias que consigam discernir o momento certo de ouvir, falar e agir, reconhecendo que a pregação das Boas Novas anunciadas nos Evangelhos também se mostra por meio de um ouvir atento e acolhedor.
 Em um mundo em que cada um/a quer ter sua voz ouvida de qualquer maneira, estar entre aqueles e aquelas que estão dispostas a ouvir atentamente se mostra como algo subversivo. Estaria o Cristianismo atual disposto a ouvir o chamado à audição?’


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