*Artigo d0 Padre Adroaldo Palaoro, Jesuíta
Reflexão sobre o Evangelho do 1º Domingo da Quaresma- Mc 1,12-15
‘O Espírito levou Jesus para o deserto’ (Mc
1,12)
‘Ao iniciarmos a Quaresma, um lugar que
continuamente será citado e que vai aparecer com frequência nos textos,
reflexões e orações, é o “deserto”. Deserto que deve fazer
parte de nossas vidas em algum momento : espaço de escuta e de silêncio, de
busca, de despojamento; lugar que nos faz tomar consciência das coisas
essenciais que dão sentido à nossa existência; ambiente privilegiado para o
encontro tu a tu com o Deus amor que nos habita, ou melhor, em Quem habitamos.
Se nos abrirmos à Sua presença amorosa, caminharemos livres dos falsos
absolutos que cada dia nos tentam, e nossos desertos existenciais se
converterão em um jardim onde florescerá de novo a esperança.
Como seres humanos, de tempos em tempos precisamos passar por
experiências de despojamento, de esvaziamento, de vulnerabilidade, de crise...,
para poder suavizar nosso coração e, desse modo, fazer-nos mais receptivos e
expansivos.
O “deserto” é o lugar das perguntas, do
discernimento, da busca de profundidade, o ambiente favorável que nos oferece
ferramentas com as quais poder romper as bolhas que nos aprisionam,
impedindo-nos sair para a aventura da vida.
O “deserto” nos sacode e nos desnuda, porque
desmascara nossas falsas seguranças. Por isso, somos movidos a buscar nossas
raízes mais profundas. Quando esse percurso é vivido adequadamente, é provável
que no final vamos poder dizer, como Kierkegaard, “eu teria me afundado
se não tivesse ido ao Fundo”. Com efeito, antes ou depois, o deserto
nos conduzirá para o Fundo estável e sereno, nos conduzirá à “casa”, à nossa
verdadeira identidade, à “Terra prometida”.
Num mundo em que a imagem e as redes sociais ocupam, com suas
presenças, toda a nossa vida, todos os nossos lares, os espaços públicos,
fazendo-nos viver a cultura da superficialidade, muitas pessoas de diferentes
condições sociais e religiosas já começam a sentir a urgente necessidade de
escapar de tanta solicitação externa que as oprime e alimentam o desejo de se
ocupar mais decididamente com o seu mundo interior.
Mas, se somos sinceros, adentrar-nos em nosso “eu profundo” e
viver a partir de dentro é algo que não sabemos e muitas vezes até sentimos
medo. É cada vez mais difícil a criação de um espaço interior, em sintonia e
bem integrado com o mundo exterior.
Nesse sentido, a liturgia quaresmal revela-se
como uma mediação privilegiada para potencializar nossa interioridade, ou
destravá-la, para que a expansão de nossa vida seja possível. Tal experiência
resgata-nos do entorpecimento e nos dá um choque de lucidez. Ela oxigena a
nossa mente e implode nosso conformismo; revela-se instigadora e provocativa,
fonte inspiradora que nos liberta do cárcere da rotina. Ela nos faz lembrar que
somos andarilhos, deslocando-nos no traçado da existência em busca de respostas
que deem sentido à nossa existência.
O caminho para Deus passa pela experiência mais
profunda e autêntica de si mesmo, convidando cada um a repensar como, em meio
às dificuldades de cada tempo, sempre é possível o percurso em direção à
própria interioridade.
Buscar o Deus que “está dentro de mim, enquanto eu estou
fora” (S. Agostinho), significa entrar em relação direta com nosso
interior, com o que nos move, com o que sentimos e pensamos; significa
dissolver bloqueios afetivos já solidificados e conflitos não resolvidos; é
fazer que se calem muitos ruídos parasitas e que se escute, por fim, o silêncio
sonoro que brota do oculto; desentupir os condutos do coração e processar a
lava ardente dos grandes desejos significa abrir os olhos para uma paisagem
desconhecida.
Foi no deserto onde Jesus descobriu o que move
verdadeiramente o coração do ser humano. Foi nessa situação – de solidão – onde
também descobriu o que Deus ama no coração humano.
Nessa experiência de deserto Jesus tomou consciência de
duas forças ou dinamismos que
atuam no coração humano : um de expansão, de saída de si, de vida aberta e em
sintonia com o Pai e com os outros; outro, de retração, de auto-centração, de
busca de poder, prestígio, vaidade...
Jesus viveu impulsionado pelo Espírito, mas sentiu em sua
própria carne as forças do mal : “foi tentado por
satanás”; satanás significa “o adversário”, a força hostil a
Deus e a quem trabalha por seu reinado. Na tentação de Jesus se des-vela o que
há em nós de verdade ou de mentira, de luz ou de trevas, de fidelidade a Deus
ou de cumplicidade com a injustiça. Qual dos dois dinamismos internos
alimentamos?
O evangelista Marcos ressalta que o “deserto” não
é só um lugar geográfico; é também o lugar que buscamos para nos silenciar e
nos oferecer a oportunidade para reconectar conscientemente com nosso centro.
Em todo processo de crescimento, e mais ainda nos períodos
críticos do mesmo, vamos nos deparar com a presença dos “animais
selvagens” e dos “anjos” em nosso eu
profundo.
É assim que nomeamos as experiências que acontecem quando nos
adentramos em nosso mundo interior.
Os “animais selvagens” são aquelas
circunstâncias internas e que nos frustram e, sobretudo, aquele material
psíquico que não reconhecemos ou aceitamos em nosso interior : nossas paixões,
nossos traumas, nossas feridas, nossos instintos, nossa impotência e
fragilidade... É a “sombra” que vamos arrastando, e que continua nos assustando
enquanto não a reconhecemos e a abraçamos abertamente em sua totalidade.
Os “anjos” são os consolos – externos e
internos – que aparecem em nosso caminho, em forma de paz, de luz, compreensão,
de fortaleza, de amor...
“Animais selvagens e anjos” cumprem seu papel, pois
nos “obrigam” a avançar para nossa verdade profunda, tirando-nos da superfície
de nós mesmos, ou talvez da “zona de conforto” na qual tínhamos nos instalado,
conformando-nos com uma vida “normótica” e sem criatividade.
O amadurecimento humano implica abraçar toda nossa verdade,
também aquela que nos aparece sob disfarces temerosos, como o medo, a solidão,
a tristeza, a angústia... Lidar com tais “feras” requer capacidade de olhá-las
de frente, com compreensão, paciência e muito afeto.
A espiritualidade cristã nos mostra que exatamente em
nossas feridas nós descobrimos o tesouro do
nosso verdadeiro “eu”, escondido no fundo de nosso coração.
Tradicionalmente, fomos coagidos a viver uma espiritualidade que
nos ensinou a prender os “animais selvagens” e a
levantar junto deles um edifício de “grandes ideais”.
E com isto, passamos a viver constantemente com medo de que as
feras pudessem fugir e nos devorar.
Sabemos que tudo quanto nós reprimimos nos faz falta à nossa
vida. Os “animais selvagens” tem muita força. Quando os
prendemos, fica nos faltando a sua força, de que temos necessidade para o nosso
caminho para Deus, para nós mesmos e para os outros. Somos obrigados a fugir de
nós mesmos, ficamos com medo de olhar para dentro de nós, pois poderíamos
correr o risco de nos deparar com as feras perigosas.
Quando, graças à presença dos “anjos”, deixarmos de rejeitar e
de resistir aos “animais selvagens”, iremos tomando consciência como a luz e a
fortaleza vão se expandindo em nosso interior; nós nos perceberemos mais
unificados e harmoniosos. E assim, estaremos mais preparados para a “travessia”
em direção à Páscoa.
Texto bíblico : Mc 1,12-15
Na oração : Cuidamos da interioridade quando
nos questionamos sobre o modo como olhamos a vida, como atuamos diante das
situações, como nos relacionamos com os outros, como vivemos nossas convicções
e crenças; e, sobretudo, quando nos exercitamos em determinadas “atividades
espirituais” que podem nos ajudar a des-velar o nosso “eu original”, como o
silêncio, os momentos de oração, o encontro com a Palavra, a partilha em
grupo...
- Quê mediações você vai ativar durante a Quaresma para ajudar a
des-velar sua própria interioridade?’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://domtotal.com/noticia/1233197/2018/02/deserto-tempo-de-des-velamento-interior/
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