Catedral de Santa Sofia,
considerada a primeira igreja construída na Rússia, em 1050.
*Artigo
de Pablo Pires Fernandes,
jornalista
‘É curioso para um estrangeiro na Rússia constatar a força da fé
cristã do povo russo. A despeito dos 70 anos de governo socialista, o fervor
religioso se manteve arraigado, o que é facilmente constatado nos templos, que
se destacam na paisagem das cidades com suas cúpulas arredondadas e coloridas.
Para um brasileiro, as igrejas russas chamam a atenção pela
quantidade de ícones e pela riqueza de ornamentos. Ali, as paredes são tomadas
por pinturas com representações de santos e cenas bíblicas, algumas, inclusive,
sequenciais, numa espécie de primórdios das histórias em quadrinhos, por criar
narrativas a partir de imagens. São obras de arte que fundaram uma importante
tradição pictórica com características únicas.
Nos dias em que passei na Rússia, visitei uma meia dúzia de
igrejas. Algumas funcionam como museu, dada a importância histórica e estética
da construção. Mesmo no ambiente predominantemente turístico, pude notar a
devoção dos russos aos símbolos sagrados. Em outras que adentrei, mais
frequentadas pela população local, testemunhei gestos de profunda e dedicada
devoção. Impressionei-me com a especial reverência à Maria, traço comum do
cristianismo praticado no Brasil.
Nos templos russos, não há bancos ou cadeiras e os ritos são
seguidos pelos fiéis de pé. Também não há altar ou púlpito e a missa que pude
acompanhar era administrada por três sacerdotes, próximos ao público que, em determinado
momento, percorriam todo o local com incensos para abençoar os presentes.
Diante do meu desconhecimento sobre a igreja na Rússia e suas
tradições, quis saber mais a respeito. Soube, então, que a Igreja Ortodoxa
Russa foi oficialmente fundada em 988, mas a cristianização da região começou
no século anterior, por São Cirilo e Metódio, que traduziram partes da Bíblia
para a língua eslava. Os princípios cristãos foram difundidos em maior escala
pela princesa Olga, convertida em santa, e seu neto Vladimir I, na virada do
milênio. Desde então, a igreja desempenhou um papel fundamental para a unidade
do povo russo e esteve diretamente ligada ao Estado.
Em 1054, ocorre o Grande Cisma, quando a Igreja Ortodoxa Russa
rompe com a Igreja Apostólica Romana, por discordâncias teológicas e políticas.
Durante as muitas invasões ocorridas no território hoje denominado Rússia, a
Igreja e a fé desempenharam papel significativo como elo cultural entre as
diferentes etnias da nação. Em vários momentos, as relações entre Estado e
igreja foram abaladas por divergências políticas, mas a presença da religião
sempre se manteve influente e viva entre a população.
A Revolução de Outubro de 1917 representou outra transformação
na relação entre Igreja e Estado. Em janeiro de 1918, o líder bolchevique
Vladimir Lênin publicou um decreto no qual desvinculava a Igreja de quaisquer
poderes públicos, transferindo o exercício religioso para o âmbito privado e
desapropriando-a de todos seus bens, além de proibir o ensino religioso nas escolas.
As consequências da revolução para a Igreja foram trágicas.
Milhares de sacerdotes, monges, freiras e fiéis foram assassinados – estima-se
em mais de 100 mil entre 1917 e 1940 – e outros tantos torturados e
perseguidos. O Estado pregava o ateísmo nas escolas e as manifestações e
práticas religiosas se refugiaram em locais privados.
Em 1943, o líder Josef Stalin, para angariar apoio à campanha
militar na Segunda Guerra Mundial, reconciliou-se com os líderes religiosos,
permitindo a abertura de escolas e igrejas, o que reavivou a prática cristã no
país. Desde então, as relações entre Estado e Igreja se incrementaram
consideravelmente. Depois do colapso da União Soviética, a expansão da Igreja
Ortodoxa foi significativa, embora religiões ocidentais tenham conquistado
espaço na Rússia. Mesmo assim, cerca de 90% da população se declara cristã
ortodoxa, apesar de o número representar mais um elo cultural do que uma
prática religiosa efetiva.
Apesar da brutal perseguição a seus membros e das tentativas de
deslegitimar a fé, o povo russo se manteve fiel e crente. As belíssimas igrejas
russas são testemunhas da história e um dos mais importantes legados culturais
da nação. A vigorosa religiosidade do povo russo é visível, presente no dia a
dia de boa parte da população e, considerando a história, deve continuar
inabalada por séculos.’
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