sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Conexão Haiti (Capítulo 3 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Novas carreiras : Jacson Casimir trabalha como barman no Vicolo Nostro, 
restaurante italiano no bairro do Brooklin, em São Paulo. 
Ele foi um dos 400 imigrantes haitianos que chegaram à capital paulista 
na primeira semana de abril de 2014.

* Artigo de Kevin Damasio

A jornada de sonhos e dramas do mais novo e crescente
grupo de imigrantes do Brasil


‘De volta ao ônibus, os haitianos tentam descontrair o clima, mas logo as gargalhadas dão lugar ao silêncio. As incertezas são muitas. Onde arrumar emprego. Como ganhar dinheiro suficiente para enviar ao Haiti. Ter moradia razoável. Aprender português. Adaptar-se à nova cidade... Por outro lado, a esperança, que os fez superar a tortuosa rota na mão dos coiotes, reluz nas expressões de cada um. Ainda não sabem como, mas estão perto de se estabelecer no Brasil e poder ajudar os familiares a reconstruir suas vidas.

Mais 2.900 quilômetros de estrada nos aguardam. Angeline Aimable ajeita-se a todo instante na poltrona, sem achar posição confortável. O olhar expressivo reflete a coragem com que essa haitiana de 22 anos, grávida de seis meses, vem viajando desde seu país. Por fim, ela resolve esticar a blusa no chão do corredor e deita de barriga para cima. Descansa assim por meia hora. De São Paulo, Angeline ainda terá de encarar mais oito horas de ônibus até Curitiba, no Paraná, ao encontro do primo.

No começo da noite, estamos na rodoviária de Vilhena, na divisa com o Mato Grosso. Os problemas aparecem. A maioria dos haitianos já não tem dinheiro para comer. Alguns reclamam de fome, outros vão apenas ao banheiro e voltam à plataforma de embarque. A cena persiste no dia seguinte. Em Várzea Grande, dois haitianos perguntam o preço do café com leite em um restaurante, mas não têm os 2 reais. A fome gera, no fim do dia, uma cena de solidariedade : seis grupos de quatro haitianos dividem marmitas. Lembro-me do que muitos haviam me dito : ‘Somos do mesmo país. Somos irmãos’.

Seguimos madrugada adentro. Atravessamos o Mato Grosso do Sul e o interior paulista. A última parada antes do destino final é em Ourinhos. Os imigrantes dominam o banheiro, lavando o rosto e os cabelos com sabonete e xampu na pia. A maioria não tem dinheiro para tomar café, inclusive eu. Na passagem por Boituva, Tertulien Pressoir, de 34 anos, pergunta se já chegamos a São Paulo. Abens Alcy, na poltrona ao lado, quer saber onde estamos. A cena se repete quando passamos por Barueri e por Osasco. Estamos perto. A ansiedade fica clara no silêncio que agora impera. A fome aperta. Abro um pacote de biscoito integral e divido com outros nove haitianos.

Às 2 da tarde, desembarcamos na estação Barra Funda. O alívio por ter chegado ao destino dura pouco. Novos problemas aparecem. Não há ninguém para receber e orientar os imigrantes. Mal pego minha mala no bagageiro e os haitianos se aglomeram ao meu redor com diversas questões. Todos querem saber o que fazer a seguir.

Alguns, para seguir viagem – Campinas, Santa Catarina, Curitiba, Goiânia –, precisam ligar para conhecidos e pedir o número do bilhete de ônibus. Outros vão ficar em São Paulo, em abrigos provisórios ou na casa de conterrâneos. Uma vida nova está prestes a começar. Por fim, vamos todos de metrô para o Centro da capital.

A Casa do Migrante pode abrigar 110 pessoas por noite. De janeiro a setembro deste ano, passaram por ali 3.462 haitianos – no total, em 2013, foram 2.272. Os viajantes recebem alimentação, suporte jurídico, psicológico e de saúde, além de aulas de português e inglês. Paolo Parise, de 47 anos, padre italiano que coordena a Missão Paz, dirige-se aos recém-chegados, acompanhado de um intérprete brasileiro e outro haitiano. Explica que não há espaço para todos dormirem ali, então muitos ficarão no abrigo da prefeitura, do outro lado da rua. Em um salão, todos aguardam para jantar – comida, finalmente.

Uma das maiores preocupações da Missão Paz é evitar que os imigrantes acabem submetidos a empregos suspeitos – não raro em condições análogas à escravidão. Contratantes assim, segundo Paolo Parise, espalham-se pelas portas das estações de metrô na região central de São Paulo. Em agosto, duas operações de fiscais do trabalho, com suporte da polícia, resgataram um grupo de 19 bolivianos e 12 haitianos reféns de tais situações em confecções clandestinas.

Para evitar o problema, a Missão Paz criou o Eixo Trabalho, pelo qual quase 2 mil imigrantes já conseguiram emprego. Em dois dias da semana, empresários vão ao abrigo, onde são orientados sobre o processo de contratação. A equipe da missão exige salários justos, expõe as condições de trabalho e faz o cadastro das empresas. Enquanto isso, os imigrantes assistem a palestras sobre direitos e deveres trabalhistas e são informados sobre as vagas disponíveis. Em seguida, contratantes e imigrantes encontram-se. Após três meses, assistentes sociais visitam as empresas para acompanhar a situação.

Foi assim que Jacson Casimir, de 24 anos, e outros quatro conterrâneos conseguiram vagas em um restaurante italiano de São Paulo. A firma contratante foi fiadora no aluguel de uma casa de três quartos para os haitianos, pagou o primeiro mês de aluguel e comprou para o grupo roupa de cama, toalhas, artigos de higiene, uniformes e sapatos. Os 60 empregados do restaurante doaram quase 2.000 reais, quantia que serviu para a primeira compra de mercado dos imigrantes. Durante 15 dias, um funcionário os acompanhou até o restaurante para ensinar a pegar ônibus. ‘Sou muito grato por tudo isso’, diz Jacson, já em bom português.

Trabalho não é tudo. É preciso ter onde viver, e muitos imigrantes já engrossam as fileiras por demandas habitacionais na cidade. Tertulien Pressoir, que veio no mesmo ônibus que eu desde Rio Branco, alojou-se com sua prima, Nacilia Nacius, em um prédio em frente à Praça da Sé – uma ocupação praticamente só de haitianos, administrada pelo grupo Luta por Moradia Digna. O apartamento tem apenas um cômodo, que serve como quarto, sala e cozinha. O banheiro comunitário fica no corredor.

Nacilia, de 32 anos, veio para o Brasil antes do marido, pela rota ilegal, em janeiro de 2013. Rony Saincilien, de 35, chegou após quatro meses. Falar espanhol os ajudou a aprender português e arrumar emprego – ele em construção civil, ela em uma confeitaria. Recebem, juntos, 2.000 reais e plano de saúde. Para morar na ocupação, pagam 300 reais mensais, quase metade do que lhes custava o aluguel de um apartamento no Cambuci. Os três filhos pequenos do casal ficaram em Cap Haïtien, com os pais de Nacilia – que está grávida de novo. As ligações semanais não são suficientes para diminuir a tristeza, evidente no olhar distante dela ao falar de Ronika, Carly e Hannah.

Saudade. Eis um drama elementar na vida dos imigrantes, mesmo os que concretizam o sonho de se estabelecer no Brasil. ‘Depois que meu filho nascer, vou ganhar documento’, conta Nacilia, referindo-se ao visto permanente. ‘Meu marido então vai poder buscar os outros no Haiti’.


Fonte :
* Artigo na íntegra de http ://viajeaqui.abril.com.br/materias/imigrantes-haitianos-no-brasil?pw=3

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