Haitianos e senegaleses perfilam-se em Rio Branco para a viagem de
3.800 quilômetros em 66 horas até São Paulo,
em um ônibus alugado pelo governo do Acre.
* Artigo de Kevin Damasio
3.800 quilômetros em 66 horas até São Paulo,
em um ônibus alugado pelo governo do Acre.
* Artigo de Kevin Damasio
A jornada de sonhos e dramas do
mais novo e crescente
grupo de imigrantes do Brasil
‘Castin
Serge está sentado em um corredor na Chácara Aliança, abrigo de imigrantes em
Rio Branco, capital do Acre.
Ele olha
fixamente para a frente e para baixo. Parece cansado. Com mãos inquietas e
longas pausas, busca palavras para tentar dimensionar, em seu inglês limitado,
a turbulenta travessia que venceu para chegar ao Brasil.
São os
primeiros dias de uma nova vida para ele. Uma vida ainda incerta. Tudo começou
no início deste ano, quando seu pai lhe perguntou se conseguiria em cinco anos
construir uma vida decente no país caribenho. O jovem cursava ciência da
computação, em uma condição de ensino superior à da maioria de seus
conterrâneos. Por outro lado, ponderou já estar com 25 anos e desejar
constituir uma família. A resposta foi seca : ‘Não, pai. Depois da universidade não sei se encontrarei emprego. Para
ajudá-lo, preciso deixar o Haiti’. As contas foram feitas. Debilitado por
um recente derrame, o pai vendeu sua caminhonete e uma pequena propriedade.
Comprou uma passagem de avião para o Equador e fez um empréstimo de 500
dólares. Assim, Castin, o mais velho dos seis irmãos, duas semanas depois de
deixar a cidade de Gonaïves, está ali, no meio da Amazônia, à espera de um
golpe de sorte do destino – a chance de regularizar sua situação e procurar um
emprego em cidades mais ricas do Sul e do Sudeste do país.
Em dezembro
de 2010, o Brasil abriu as portas para os cidadãos do Haiti, vitimados pela
pobreza que se agravou depois do maior terremoto da história do país, em 12 de
janeiro daquele ano. A tragédia afetou um terço da população; 220 mil pessoas
morreram e 1,5 milhão ficaram desabrigadas. Um surto de cólera, em 2010, e dois
furacões, em 2012, agravaram o caos. O alto desemprego estimulou os haitianos a
partir em um fluxo desesperado em busca de vagas no exterior. O Brasil virou um
destino cobiçado : além de seu amplo mercado de trabalho, mantém ótimas
relações diplomáticas – o Exército brasileiro lidera a Missão das Nações Unidas
para a Estabilização do Haiti (Minustah) desde 2004.
Mas a
burocracia para conseguir a documentação correta de imigração no Haiti – no
caso, um visto humanitário – induziu muitos jovens a uma rota clandestina e
cheia de riscos, contando com o apoio de intermediários, os ‘coiotes’. Eles viajam de avião até o Equador,
muitas vezes com escala na República Dominicana. Em seguida cruzam o Peru ou a
Bolívia por terra, até chegar à fronteira com o Acre. Entram no país pela
cidade de Brasileia ou de Assis Brasil, de onde seguem para regularizar sua
situação na capital Rio Branco. ‘Encontrei
problemas no caminho’, conta Castin. ‘No
Peru, há muitas pessoas... que querem...’ ‘Explorar?’, completo, ao perceber que ele não encontra a palavra
certa.
‘Exatamente. Na fronteira do Equador com o
Peru, minha história de terror começou.’
Os haitianos
viajam para o Brasil sem saber dos perigos dessa rota ilegal. Para instruir
futuros imigrantes, o padre Onac Axenat, de 35 anos , quer voltar ao Haiti. O
missionário está no Brasil desde novembro de 2010. Estudou português em
Brasília por três meses e se mudou para Rio Branco com o projeto de construir
uma paróquia. Onac acompanha o novo fluxo migratório desde o fim de 2011. Os
recém-chegados eram bem reservados, nada contavam sobre a saída de seu país, mas
aos poucos o religioso descobriu que gastavam até 4 000 dólares na viagem – e
chegavam de mãos abanando à fronteira brasileira. Onac denunciou a situação
como tráfico de imigrantes. ‘Ligaram para
me ameaçar, mas fiz o que era preciso. Ouvi português, espanhol, creole. É uma
rede internacional de coiotes’, diz.
‘Essa rota vai continuar a existir enquanto
ocorrer ação ostensiva desses intermediários’, alerta Nilson Mourão, de 62
anos, secretário de Justiça e Direitos Humanos do Acre. Para ele, desmontar a rota
é uma operação que requer estratégia de identificação e repreensão por parte de
todas as nações envolvidas – Haiti, República Dominicana, Equador, Peru,
Bolívia e Brasil. Além disso, diz ele, é preciso facilitar a emissão do visto
humanitário e de outros papéis nas embaixadas brasileiras. ‘Os coiotes’, explica, ‘vendem a idéia de que, pela rota ilegal, os
haitianos serão logo documentados – o que é verdade. Por outro lado, é um
processo perigoso e demorado. Os viajantes gastam mais, levam até 15 dias para
chegar e são humilhados e explorados.’
O volume de
imigrantes vindos do país caribenho só aumenta. Em setembro, 700 estavam no
abrigo em Rio Branco – eram 175 em julho. Em 2013, o número de haitianos no
Brasil superou 20 mil, quase 25% em São Paulo. Já para o final de 2014, a
Organização Internacional para as Migrações estima chegar a 50 mil.
Castin Serge
escorregou em um trecho pedregoso na trilha que leva à fronteira entre Equador
e Peru. Cortou o calcanhar esquerdo, abandonou os sapatos e acelerou o passo
para alcançar os dois senegaleses e o coiote peruano, para quem havia dado
parte do dinheiro que trouxera do Haiti. Atravessaram um rio, ao encontro de
motos-táxi que os aguardavam no Peru para levá-los até um hotel. Nos dias que
se seguiram, Castin sofreu extorsão, furto, fome, sede. Pouco dormiu em hotéis
precários ou escondido em vans e ônibus. ‘Os
intermediários nos fazem acreditar que devemos ter medo da polícia, pois senão
vão nos prender e deportar’, conta Castin, conformado, no abrigo em Rio Branco.
Na cidade
peruana de Chiclayo, os imigrantes pagaram o que haviam combinado. No entanto,
a cada parada, coiotes ou policiais corruptos exigiam mais dinheiro. Além
disso, a mochila do haitiano acabou confiscada em um táxi contratado pelos
coiotes, com laptop, roupas, sapatos e artigos de higiene. Castin nunca mais a
viu. Ficou apenas com a maleta cheia de livros e documentos, também saqueada
dias depois.’
Fonte :
* Artigo na íntegra de http
://viajeaqui.abril.com.br/materias/imigrantes-haitianos-no-brasil?pw=1
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