Após chegarem em São Paulo, muitos haitianos se encaminham para a
Casa do Migrante, onde são acolhidos pelo padre Paolo Parise (no centro).
*
Artigo de Kevin Damasio
A jornada de sonhos e
dramas do mais novo e crescente
grupo de imigrantes do
Brasil
‘Apesar dos
percalços, os imigrantes seguiram para Lima e depois para Cusco. Ali, os
coiotes avisaram que, para continuar, queriam pelo menos mais 50 dólares.
Castin convenceu-os de que não tinha. Os peruanos, contudo, permitiram que ele
continuasse o percurso sem pagar – pois o espanhol falado pelo haitiano, mesmo
ruim, facilitava o diálogo com o resto do grupo.
Em Puerto
Maldonado, na Amazônia peruana, Castin passou duas noites em um quarto de hotel
barato, compartilhando uma tábua de madeira que servia de cama com duas
conterrâneas. O trio juntou 45 novos soles para contratar um táxi capaz de
levá-los à fronteira entre Peru e Acre. Por instrução do taxista, passaram a
noite em um hotel em Iñapari, cidade fronteiriça e vizinha da acreana Assis
Brasil. De manhã, foram até Brasileia. Retiraram o protocolo de refúgio na
Polícia Federal e em seguida tomaram uma lotação, ao preço de 25 dólares cada
um. Duas horas e meia de estrada depois, chegaram ao abrigo de imigrantes em
Rio Branco. Exaustos, famintos e quase sem dinheiro.
O refúgio de
Brasiléia, a primeira parada da maioria dos imigrantes até meados deste ano,
passou por grandes crises. A pior foi de março a abril de 2014, com a enchente
do Rio Madeira – 2 500 estrangeiros ficaram sitiados no precário município de
20 mil habitantes. Aviões da Força Aérea Brasileira levavam mantimentos ao Acre
e seguiam para Rondônia com imigrantes, que dali partiam para outros destinos.
Em julho, quando Castin chegou ao país, o abrigo oficial acreano havia acabado
de ser transferido para a capital Rio Branco, na Aliança, uma chácara com
capacidade para abrigar 250 pessoas.
As
secretarias estaduais de Desenvolvimento Social (Seds) e de Justiça e Direitos
Humanos (Sejudh) alternam a cada semana a coordenação do espaço. Os haitianos
dividem-se em dois blocos para homens e um para mulheres. Há ainda um setor
para imigrantes de outros países, em grande parte senegaleses, e outro para
mulheres grávidas ou com crianças pequenas. A maioria dos estrangeiros fica ali
por no máximo 15 dias, o tempo de tirar CPF, carteira de trabalho e se vacinar
contra febre amarela, hepatite e tétano. Acompanhantes de jovens e crianças,
assim como grávidas, hospedam-se por mais tempo. Café da manhã (pão com
manteiga e café com leite), almoço e jantar são financiados pelo governo do
Acre. As marmitas são sopa ou refeições tradicionais no Haiti, com arroz e
feijão empapados, macarrão ao alho e óleo, legumes cozidos e um tipo de carne,
sobretudo frango ensopado.
Como era de
esperar, um mercado surgiu no abrigo para atender às demandas dos imigrantes –
materiais e emocionais. Na lan house
local, meia hora de internet custa 1 real. Negócios mais informais podem ser
bem promissores – no dia em que visito o lugar, o senegalês Abdoulahat Lô
permite que os imigrantes façam ligações em seu laptop, em troca de 2 reais por
minuto. Conheço Charles Pierre Kenny, um haitiano de 27 anos que fala português
– aprendeu o idioma quando foi intérprete na Minustah. O objetivo dele é o
mesmo de todos : enviar dinheiro à família. ‘No Haiti, se não gastar muito, dá para viver com 200 dólares por mês’,
diz. Pai, mãe e irmão ficaram em Porto Príncipe. No terremoto de 2010, a casa
deles foi abaixo. A família mora num barraco enquanto, aos poucos, constrói
outra casa.
As mulheres
gestantes ou com crianças são geralmente haitianas que vieram encontrar
parentes já estabelecidos no país. Gaelle Cesar, de 18 anos, grávida de oito
meses, insiste na idéia de ir de avião para Santa Catarina, ao encontro da mãe.
Precisaria de autorização médica, e por isso Antonio Crispim, coordenador do
abrigo, vai levá-la para consulta no dia seguinte. Ela vem conversar comigo. ‘Sou forte. Não tenho problema em viajar.
Atravessei do Equador ao Peru em muitos ônibus. Foram sete dias para chegar até
aqui. Sei que Deus vai me ajudar’, diz. Sua fé em que tudo vai dar certo
funciona. Depois da consulta, ela é autorizada a viajar.
Os
imigrantes têm três opções para continuar a viagem : por conta própria,
contratados por empresários ou com os ônibus fretados pelo governo acreano para
São Paulo. Os destinos variam conforme as ofertas de emprego. Nos dez dias que
passo no abrigo, um abatedouro de aves de Paranavaí, no Paraná, recruta 74
haitianos – entre eles, Castin e Kenny – e um frigorífico de suínos de Estrela,
no Rio Grande do Sul, leva outros 30.
Um ônibus é
confirmado para São Paulo. Um funcionário anuncia a viagem no megafone, e todos
correm para entregar os passaportes. As 44 vagas são preenchidas em 15 minutos.
O destino é
a estação Barra Funda, na capital paulista. Partimos às 7 da noite. O clima é
de alegria e apreensão. A viagem será longa, exaustiva. Nas 66 horas seguintes,
vamos encarar 3.800 quilômetros de estrada, com oito paradas de meia hora para
comer e usar o banheiro. Quase todos vão para a Casa do Migrante, um projeto
coordenado por missionários cristãos que fazem um trabalho assistencialista com
os refugiados.
De
madrugada, atravessamos de balsa o caudaloso Rio Madeira, que separa Acre e
Rondônia. Às 5 da madrugada, chegamos a Porto Velho. Mudamos para um ônibus
mais apertado, porém em bom estado. Eu me acomodo em uma poltrona no meio do
veículo e caio no sono. Duas horas depois, fazemos a primeira parada do dia. Na
lanchonete, os haitianos refestelam-se com fatias de pão caseiro com manteiga
derretida. Café com leite aquece do frio matinal.’
* Artigo na íntegra de http ://viajeaqui.abril.com.br/materias/imigrantes-haitianos-no-brasil?pw=2
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