quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Conexão Haiti (Capítulo 2 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Após chegarem em São Paulo, muitos haitianos se encaminham para a 
Casa do Migrante, onde são acolhidos pelo padre Paolo Parise (no centro).

* Artigo de Kevin Damasio

A jornada de sonhos e dramas do mais novo e crescente
grupo de imigrantes do Brasil

‘Apesar dos percalços, os imigrantes seguiram para Lima e depois para Cusco. Ali, os coiotes avisaram que, para continuar, queriam pelo menos mais 50 dólares. Castin convenceu-os de que não tinha. Os peruanos, contudo, permitiram que ele continuasse o percurso sem pagar – pois o espanhol falado pelo haitiano, mesmo ruim, facilitava o diálogo com o resto do grupo.

Em Puerto Maldonado, na Amazônia peruana, Castin passou duas noites em um quarto de hotel barato, compartilhando uma tábua de madeira que servia de cama com duas conterrâneas. O trio juntou 45 novos soles para contratar um táxi capaz de levá-los à fronteira entre Peru e Acre. Por instrução do taxista, passaram a noite em um hotel em Iñapari, cidade fronteiriça e vizinha da acreana Assis Brasil. De manhã, foram até Brasileia. Retiraram o protocolo de refúgio na Polícia Federal e em seguida tomaram uma lotação, ao preço de 25 dólares cada um. Duas horas e meia de estrada depois, chegaram ao abrigo de imigrantes em Rio Branco. Exaustos, famintos e quase sem dinheiro.

O refúgio de Brasiléia, a primeira parada da maioria dos imigrantes até meados deste ano, passou por grandes crises. A pior foi de março a abril de 2014, com a enchente do Rio Madeira – 2 500 estrangeiros ficaram sitiados no precário município de 20 mil habitantes. Aviões da Força Aérea Brasileira levavam mantimentos ao Acre e seguiam para Rondônia com imigrantes, que dali partiam para outros destinos. Em julho, quando Castin chegou ao país, o abrigo oficial acreano havia acabado de ser transferido para a capital Rio Branco, na Aliança, uma chácara com capacidade para abrigar 250 pessoas.

As secretarias estaduais de Desenvolvimento Social (Seds) e de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh) alternam a cada semana a coordenação do espaço. Os haitianos dividem-se em dois blocos para homens e um para mulheres. Há ainda um setor para imigrantes de outros países, em grande parte senegaleses, e outro para mulheres grávidas ou com crianças pequenas. A maioria dos estrangeiros fica ali por no máximo 15 dias, o tempo de tirar CPF, carteira de trabalho e se vacinar contra febre amarela, hepatite e tétano. Acompanhantes de jovens e crianças, assim como grávidas, hospedam-se por mais tempo. Café da manhã (pão com manteiga e café com leite), almoço e jantar são financiados pelo governo do Acre. As marmitas são sopa ou refeições tradicionais no Haiti, com arroz e feijão empapados, macarrão ao alho e óleo, legumes cozidos e um tipo de carne, sobretudo frango ensopado.

Como era de esperar, um mercado surgiu no abrigo para atender às demandas dos imigrantes – materiais e emocionais. Na lan house local, meia hora de internet custa 1 real. Negócios mais informais podem ser bem promissores – no dia em que visito o lugar, o senegalês Abdoulahat Lô permite que os imigrantes façam ligações em seu laptop, em troca de 2 reais por minuto. Conheço Charles Pierre Kenny, um haitiano de 27 anos que fala português – aprendeu o idioma quando foi intérprete na Minustah. O objetivo dele é o mesmo de todos : enviar dinheiro à família. ‘No Haiti, se não gastar muito, dá para viver com 200 dólares por mês’, diz. Pai, mãe e irmão ficaram em Porto Príncipe. No terremoto de 2010, a casa deles foi abaixo. A família mora num barraco enquanto, aos poucos, constrói outra casa.

As mulheres gestantes ou com crianças são geralmente haitianas que vieram encontrar parentes já estabelecidos no país. Gaelle Cesar, de 18 anos, grávida de oito meses, insiste na idéia de ir de avião para Santa Catarina, ao encontro da mãe. Precisaria de autorização médica, e por isso Antonio Crispim, coordenador do abrigo, vai levá-la para consulta no dia seguinte. Ela vem conversar comigo. ‘Sou forte. Não tenho problema em viajar. Atravessei do Equador ao Peru em muitos ônibus. Foram sete dias para chegar até aqui. Sei que Deus vai me ajudar’, diz. Sua fé em que tudo vai dar certo funciona. Depois da consulta, ela é autorizada a viajar.

Os imigrantes têm três opções para continuar a viagem : por conta própria, contratados por empresários ou com os ônibus fretados pelo governo acreano para São Paulo. Os destinos variam conforme as ofertas de emprego. Nos dez dias que passo no abrigo, um abatedouro de aves de Paranavaí, no Paraná, recruta 74 haitianos – entre eles, Castin e Kenny – e um frigorífico de suínos de Estrela, no Rio Grande do Sul, leva outros 30.

Um ônibus é confirmado para São Paulo. Um funcionário anuncia a viagem no megafone, e todos correm para entregar os passaportes. As 44 vagas são preenchidas em 15 minutos.

O destino é a estação Barra Funda, na capital paulista. Partimos às 7 da noite. O clima é de alegria e apreensão. A viagem será longa, exaustiva. Nas 66 horas seguintes, vamos encarar 3.800 quilômetros de estrada, com oito paradas de meia hora para comer e usar o banheiro. Quase todos vão para a Casa do Migrante, um projeto coordenado por missionários cristãos que fazem um trabalho assistencialista com os refugiados.

De madrugada, atravessamos de balsa o caudaloso Rio Madeira, que separa Acre e Rondônia. Às 5 da madrugada, chegamos a Porto Velho. Mudamos para um ônibus mais apertado, porém em bom estado. Eu me acomodo em uma poltrona no meio do veículo e caio no sono. Duas horas depois, fazemos a primeira parada do dia. Na lanchonete, os haitianos refestelam-se com fatias de pão caseiro com manteiga derretida. Café com leite aquece do frio matinal.


Fonte :
* Artigo na íntegra de http ://viajeaqui.abril.com.br/materias/imigrantes-haitianos-no-brasil?pw=2
  

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