Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Na última
parte do Prólogo da Regra, São Bento apresenta o mosteiro como uma escola do
serviço do Senhor. Isto significa que ele quer fazer da vida monástica um lugar
de formação permanente. Ainda no Prólogo apresenta algumas características do
ensino, que deve ser partilhado nesta escola; o primeiro e o mais importante é
a qualidade da escuta para poder pôr em prática, eficazmente, o mandamento do
amor.
Mas permitam-me
evocar aqui um dos versículos do Prólogo, que me parece, dá um acento útil,
hoje, na matéria da formação. São Bento não visa simplesmente a perfeição de
uma observância exterior, que seria o penhor de um sucesso ilusório na esfera
do tempo presente; acentua uma perspectiva que integra a dimensão da vida
eterna, já ativa agora, mas em movimento para além dos limites do hoje. É por
isso que ele usa o versículo tirado de São João que caracteriza o ideal
beneditino :
‘Correi
enquanto tendes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos envolvam’
(Jo 12, 35 citado em Prol. 13).
Em São João a
luz, de que se trata, é o próprio Cristo, e as trevas o adversário. São Bento
dá um sentido um pouco diferente a este versículo, até o deforma, acrescentando
‘da vida’ à ‘luz’ e ‘da morte’ às ‘trevas’. Quer insistir, assim, de modo geral
sobre o drama das escolhas do ser humano, opondo o curto tempo da vida
terrestre e o longo ‘tempo’ da morte eterna. Insiste, assim, sobre a corrida
necessária que acentua a urgência.
1. Perspectiva
escatológica e consequências
Os monges são
chamados a viver de um modo muito característico, na perspetiva escatológica.
São Bento mesmo admitindo que os dons eternos já são oferecidos aqui (cf RB 7;
72 e 73) olha a atividade do monge numa tensão diante do que será
eternamente. Um certo número de versículos da Regra evoca concretamente esta perspectiva
: assim São Bento convida os monges a ‘desejar a vida eterna com toda a cobiça
espiritual’ (4,46) e a agir com ‘o bom zelo que conduz a Deus e à vida eterna’
(72,2); para isso devem ‘nada absolutamente preferir a Cristo que nos conduza
juntos para a vida eterna’ (72,11). Por isso São Bento pede aos monges
insistentemente : ‘cumpre correr e agir, agora, de forma que nos seja
proveitoso para sempre’ (Prol. 44). No fundo, na vida monástica, formamo-nos e
preparamo-nos para a vida super abundante do Reino eterno. E o abade ‘deve
lembrar-se sem cessar que no terrível dia do juízo, deverá prestar contas’ (2,
6, 34, 37, 39-40).
Lembremos aqui
a oração característica da vida monástica, a do Ofício das Vigílias, que é um
tempo de vigília voltado para a vinda do Cristo, na esperança da luz. Tudo isto
é vida cristã, mas os monges acentuam particularmente esta dimensão. É
realmente o que caracteriza melhor a vida monástica em relação ao tempo e ao
espaço, que é diferente do modo habitual dos seres humanos verem essa dimensão.
E é isso que, às vezes, torna difícil que os monges aceitem e compreendam.
2. Correr
O fato de
entender a vida como uma breve passagem, em vista da vida eterna, desde já e
para além da morte, convida os monges a não perderem tempo, e portanto a correrem
para o objetivo. São Bento diz isto várias vezes.
Há, antes, de
mais um princípio geral :
‘Se fugindo das
penas do inferno, queremos chegar à vida eterna, enquanto é tempo, e ainda
estamos neste corpo e é possível realizar todas estas coisas no decorrer desta
vida de luz, cumprer correr e agir, agora, de forma que nos seja proveitoso
para sempre’ (Prol 42-44)
Esta passagem
está muito próxima da citação de São João 12, 35 (cf acima). Concretamente,
portanto, se queremos viver assim, temos de ter no coração o desejo de habitar
na morada do Reino, sabendo que só se chega aí correndo ‘pelas boas obras’
(Prol. 22). Assim com ‘o progresso da vida monástica e da fé, dilata-se o
coração e corre-se pelo caminho dos mandamentos de Deus’ (Prol. 49). Há aqui
como uma consequência da disposição interior, na qual o monge colocou o seu
desejo : orientou o coração para a vida eterna e isso produziu uma tal
dilatação, que corre-se agora no caminho dos mandamentos de Deus; assim o
mandamento é o que deve de ser, não uma ordem que vem de fora, mas um objetivo,
conforme a palavra grega entolé, de telos, quer dizer que leva ao fim que se
quer.
Depois de ter
colocado este princípio, São Bento pode pensar em situações particulares, cujo
sentido só é perceptível em relação com este objetivo. O abade, por exemplo,
deve apressar-se (currere) ‘empenhar-se com toda a sagaccidade e indústria para
que não perca alguma das ovelhas a si confiadas’ (RB 27, 5).
O cap. 5 da
Regra está todo ele nesta perspectiva de uma vida que quer responder imediatamente
ao apelo recebido. O verbo currere não aparece, mas encontram-se expressões
muito fortes, que colocam a pessoa na disposição de uma corrida para a vida
eterna :
E os discípulos
‘por causa do santo serviço que professaram, ou por causa do medo do inferno,
ou por causa da glória da vida eterna, logo que (mox) ordenada pelo
superior, desconhecem o que seja demorar na execução, como sendo por Deus
ordenada... são esses mesmos que, deixando imediatamente as coisas que lhes
dizem respeito e abandonando a própria vontade, desocupando logo (mox)
as mãos e deixando inacabado o que faziam, seguem com seus atos, tendo os
passos já dispostos para a obediência. Na prontidão do temor de Deus não há
intervalo entre a ordem recém-dada pelo superior e a perfeita obediência do
discípulo (...) Apodera-se deles o desejo de caminhar para a vida eterna’ (RB
5, 3. 9-10)
O movimento da
obediência vale também para a resposta dada ao apelo para o Ofício Divino :
‘Estejam os
monges sempre prontos, e, assim, dado o sinal, levantando-se sem demora,
apressem-se mutuamente para o Ofício, porém com toda a gravidade e modéstia’
(22,6).
Esta ideia vem
uma segunda vez na Regra :
‘Na hora do
Ofício Divino, logo que for ouvido o sinal, deixando tudo que estiver nas mãos,
corra-se com toda a pressa, mas com gravidade, para que a escurrilidade não
encontre incentivo. Portanto nada se anteponha ao Ofício Divino’ (RB 43, 1-3).
A primeira
passagem é tirada do capítulo sobre ‘Como devem dormir os monges’ e a segunda ‘Dos
que chegam tarde ao Ofício Divino ou à mesa’. Reconheçamos que temos aqui uma
característica da vida monástica beneditina. Impressiona sempre nos nossos
mosteiros, ver como os monges se apressam a ir para o ofício divino, qualquer
que seja a razão que os faz apressarem-se; não é certo que seja sempre o não
querer perder a vida eterna!
Há uma outra
dimensão da pressa a privilegiar na vida do monge : a acolhida de um hóspede
que bate à porta do mosteiro :
‘Logo que um
hóspede for anunciado, corra-lhe (occuratur) ao encontro o superior e os
irmãos, com toda a solicitude da caridade’ (RB 53, 3); ‘Logo (mox) que alguém
bater, ou um pobre chamar, (...) com toda a mansidão do temor de Deus, o
porteiro responda com presteza (festinanter) e com o fervor da caridade’ (RB
66, 3-4).
Aqui está outra
característica da nossa vida beneditina, mesmo se hoje é difícil fazer face,
com prontidão, a todos os pedidos, e que, muitas vezes exigem um mínimo de
distância para a caridade ser melhor vivida.
O tema da
corrida vem da Bíblia. A Palavra de Deus ‘de um extremo do céu, põe-se a correr’
(Sal. 18) ‘Desce do trono real’ (Sab 18, 15); ‘Deus a envia e corre veloz’ (Sal
147, 15). Os homens de Deus, os verdadeiros profetas, os sacerdotes santos, os
reis justos correm para pôr em prática a Palavra : ‘Como são belos os pés dos
que anunciam a paz’.
Multidões
acorrem ao encontro de João Batista no deserto, e ao encontro de Jesus ao longo
de seu ministério público. Maria parte apressadamente para casa de sua prima
Isabel depois da anunciação. Com Jesus, às vezes nem se tem tempo de comer em
certos momentos. Os discípulos correm para o túmulo, e voltam correndo para
anunciar a ressurreição do Senhor. Depois de Pentecostes os discípulos correm
em todas as direções, para proclamar o Evangelho até aos confins do mundo. São
Paulo corre tendido para a meta (Fil. 3).
É urgente
correr por causa da Boa Nova, seja para a escutar, seja para a proclamar, pois
o tempo é curto : ‘Completou-se o tempo, o Reino de Deus está presente, não há
tempo a perder, convertei-vos e acreditai na Boa Nova’.
3. Correr sem
se apressar nestes tempos que são os últimos
Como conclusão
eis alguns pontos sobre este tema da formação, de um treinamento monástico,
caro a São Bento.
Os monges
correm e apressam-se, é uma evidência em todos os mosteiros. Mas de que corrida
se trata? Será que é a corrida de alguém que tomou consciência que a vida é tão
breve que não há tempo a perder?
Nossa agitação
é muitas vezes marcada pelas pressões da sociedade contemporânea : trabalho,
administração, lazer, tudo é submetido a um ritmo, para não se ser
desclassificado, marginalizado. É verdade que muitos setores devem respeitar
imperativos muito obrigatórios. Mas ficamos por aí? Nossa corrida não deverá se
converter em vista do último desejo, o da realização da vida em Deus na
comunhão da fraternidade humana?
Os monges são
essencialmente como todos os cristãos, mas talvez mais sensivelmente homens do
oitavo dia. Este dia está além dos dias, além da história na história. O
sentido da vida monástica está numa saída do mundo, nos dois sentidos da
palavra, um ser capaz de estar no mundo, sem ser do mundo.
Esta tomada de
distância é em vista de uma experiência de Deus, por meio da libertação da
tirania das paixões, e por meio da oração sem os constrangimentos do mundo, em
que a ideia de tempo e de espaço não estão organizados em função desta
prioridade.
Se se deve
correr nos caminhos do amor, das boas obras, tais como estão descritas em RB 4,
no caminho dos mandamentos, com o coração dilatado, na oração, na hora do
ofício, na obediência, no cuidado dos pecadores, para não perder nenhuma ovelha
do rebanho, na acolhida dos hóspedes, ou daqueles que batem à porta do
mosteiro.
Trata-se de
cortar as coisas do mundo, sem nenhum desprezo, mas numa hierarquia de
valores diferente.
Temos
verdadeiramemnte os meios para uma tal aprendizagem, um tal treinamento, uma
tal formação?’
Fonte : *Artigo na íntegra
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