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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Ecologia e vida monástica

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
 *Artigo de Dom Jean-Pierre Longeat, OSB

ex-Presidente da AIM

 

‘Literalmente, a ecologia segundo a origem grega desta palavra (oikos-logos), é o discurso sobre a vida dentro de uma casa, neste caso, o espaço e o tempo em que os seres humanos vivem.

Este discurso deve conduzir à ação : literalmente, estes estão agrupados sob o termo economia; de fato, de acordo com a origem grega do termo (oikos-nomos), a economia é o conjunto de «leis» que damos para viver juntos neste espaço e neste tempo. É uma pena que este vocábulo seja, hoje, aplicado apenas no sentido financeiro. No entanto, ele diz respeito a todos os elementos da vida pessoal, social e mesmo espiritual. Há uma maneira econômica de viver juntos e uma ecologia pessoal saudável. Os monges estão, sem dúvida, neste estado de espírito.

Segundo a Regra de São Bento, sua prioridade econômica é a escuta de Deus e dos seus semelhantes para a livre partilha de uma palavra útil com relação aos fundamentos. É por isso que os monges privilegiam o silêncio, na medida do possível, a fim de que as palavras trocadas tenham o seu autêntico peso. Poder-se-ia dizer que a escuta essencial, tanto de si mesmo como dos outros e dessa Voz misteriosa que nos precede e que chamamos Deus, é a base de toda a economia ecológica. O múltiplo sentido da palavra está certamente na origem de toda a primeira crise econômica da vida humana. A palavra é um bem recebido e está à disposição de todos. Ela requer um grande desimpedimento para poder ser percebida em toda a sua grande riqueza.

Assim, tudo no mosteiro é organizado em função desta ecologia humana, tanto para a vida pessoal como para a vida comunitária.

Dia a dia, os monges tornam-se atentos ao bem supremo da Palavra que vem do Alto. Eles se reúnem sete vezes por dia para a oração. Eles se colocam na presença da fonte ativa à qual querem se conectar em primeiro lugar, e respondem-lhe cantando em abundância tanto para exprimir o louvor do dom da criação e da vida como para lançar o grito de angústia de uma humanidade frequentemente posta à prova no caminho deste mundo.

Eles organizam os seus espaços de maneira que cada detalhe tenha todo o seu valor. A Regra de São Bento pede ao celeireiro do mosteiro que vele para que se trate todas as coisas no mosteiro com o mesmo cuidado que os vasos sagrados do altar.

Espaços verdes, hortas, pomares, florestas ou terrenos agrícolas : tudo no mosteiro se torna um espaço de contemplação. Hoje muitos mosteiros são cuidadosos em preservar o espaço através de regras elementares sobre as quais o movimento ecológico chama nossa atenção.

A relação com o tempo partilhado é igualmente vivida em uma economia saudável, mesmo que hoje a instituição monástica, pelo menos no Ocidente, seja pressionada pelos mesmos imperativos de produtividade que a sociedade ao seu redor. Todavia, o equilíbrio que se pretende viver entre oração, trabalho e vida fraterna continua sendo uma regra importante que deve a todo o custo ser preservada para uma boa economia social. Para isso, os mosteiros contam com o potencial da extraordinária rede de solidariedade constituída pelas numerosas comunidades espalhadas pelos cinco continentes. Poder-se-ia dizer que a vida monástica desenvolve o ideal ecológico de uma globalização fraterna.

A alimentação é também um importante item econômico e ecológico para os monges. Comer, para eles, implica sempre o reconhecimento de um dom recebido e partilhado. Comer sobriamente, sem excessos nem desperdícios, é uma regra sobre a qual insiste São Bento. Os pratos serão suficientes, saudáveis e equilibrados para permitir um crescimento feliz e um bom desenvolvimento do resto das atividades. Se há um símbolo de um bom equilíbrio na vida, é o do consumo, especialmente de alimentos. As comunidades monásticas realmente tentam refletir sobre isso, mesmo quando são obrigadas a recorrer a serviços externos.

O conforto da vida ordinária limita-se ao que é necessário. Dá-se a cada um aquilo de que precisa efetivamente. Tudo é posto em comum para uma economia solidária. Colocar em comum os recursos de uma comunidade permite reduzir as despesas e investir em projetos mais desenvolvidos, que um indivíduo ou uma família isolados não poderiam realizar.

Ao acolher hóspedes por períodos de silêncio ou retiro, os centros monásticos se apresentam no coração das nossas sociedades como um oásis onde podemos tentar respirar e partilhar de uma maneira melhor, possuir ilusoriamente menos, a fim de sermos mais nós próprios no relacionamento com os outros.

É surpreendente, na Regra de São Bento, constatar que o capítulo mais ecológico é aquele que concerne a economia do mosteiro :

«Seja escolhido para Celeireiro do mosteiro, dentre os membros da comunidade, um irmão sábio, maduro de caráter, sóbrio, que não coma muito, não seja orgulhoso, nem turbulento, nem injuriador, nem tardo, nem pródigo, mas temente a Deus; que seja como um pai para toda a comunidade. Tome conta de tudo. [...] Não entristeça seus irmãos. Se algum irmão, por acaso, lhe pedir alguma coisa desarrazoadamente, não o entristeça desprezando-o, mas negue, razoavelmente, com humildade, ao que pede mal. Guarde a sua alma. [...]

Cuide com toda solicitude dos enfermos, das crianças, dos hóspedes e dos pobres. [...]

Considere todos os objetos do mosteiro e demais utensílios como vasos sagrados do altar. Nada negligencie. Não se entregue à avareza, nem seja pródigo e esbanjador dos bens do mosteiro; mas faça tudo com medida.» (RB 31)

É claro que a vida do mosteiro não recai sobre o celeireiro, mas o seu exemplo, como o exemplo de todos no mosteiro, pode encorajar a comunidade a tomar decisões justas para um testemunho ecológico sempre atualizado.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/122

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Dietrich Bonhoeffer e a vida monástica

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de John W. de Gruchy


Algumas reflexões de um teólogo da Reforma [1] 

‘A pequena semente do interesse de Bonhoeffer pelo monaquismo estava já plantada quando, em 1924, sendo um jovem estudante em Tübingen, visitou Roma pela primeira vez. Emocionou-se profundamente com a Semana Santa. Alguns anos mais tarde, redigiu a sua tese, Sanctorum Communio, na qual repensava a Igreja protestante como ecclesia, comunidade de amor e não instituição de tipo sociológico. Nela fazia a proposta inovadora de encarar a Igreja como ‘Cristo existente enquanto comunidade de pessoas ‘. Mas o catalisador que finalmente fez passar Bonhoeffer do teólogo ‘escolástico’ ao teólogo ‘monástico’ revelou-se durante o seu ano de estudos na Union Theological Seminary de Nova Iorque em 1930-1931, quando ‘descobriu a Bíblia’. Deu-se conta que, por muito que tenha pregado, ‘não era ainda um cristão’. Compreendeu então, escreve, ‘que a vida de um servo de Jesus Cristo deve pertencer à Igreja, e pouco a pouco pareceu-me mais claro o compromisso final ao qual isso conduz’. Este foi o começo da viagem de Bonhoeffer no ‘deserto’ e a sua descoberta ‘da condição onerosa de discípulo’ com a sua participação na luta da Igreja alemã contra o nazismo, seguida da sua própria ‘guinada monástica’ em Finkenwalde, e finalmente o seu martírio.

Ainda que profundamente influenciado por Barth [2], Bonhoeffer só o encontrou pela primeira vez no verão de 1931 em Bona, após escutar uma conferência sua numa manhã. Nesse dia mais tarde foi convidado a participar de uma discussão em casa de Barth, onde, surpreendentemente, encontrou monges beneditinos do mosteiro vizinho de Maria Laach.

Mais tarde, visitou o mosteiro com os irmãos, e desenvolveu com eles uma boa relação. Mas os acontecimentos ultrapassaram este contato e cedo Bonhoeffer, seguindo o exemplo de Barth, viu-se profundamente implicado na luta da Igreja contra o nazismo. Entretanto, em outubro de 1933, para grande tristeza de Barth, Bonhoeffer viajou para Londres com duas congregações de expatriados alemães. Foi lá que começou a refletir mais seriamente sobre o monaquismo e escreveu ao seu irmão Karl-Friedrich que ‘a restauração da Igreja devia imperativamente formular um novo tipo de monaquismo, sem nada de comum com o antigo mas que deveria assemelhar-se a uma vida de discípulo sem compromisso, na senda de Cristo, segundo o Sermão da Montanha’.

Em 1935, Bonhoeffer é convidado a regressar à Alemanha para fundar um seminário confessional em Finkenwalde na Prússia oriental. Antes de partir, visitou vários seminários de estilo monástico na Inglaterra para o guiar na sua nova tarefa de preparar os ordenandos já formados na universidade, para se tornarem pastores mais fiéis nesse período de crise nacional. Mas como os seminaristas não permaneciam mais do que um semestre ou dois, Bonhoeffer estabeleceu uma Casa de Irmãos, composta de alguns ordenandos que deveriam permanecer  mais tempo e comprometer-se numa vida comum. A sua intenção era vê-los assegurar a estabilidade e a continuidade. O livro de Bonhoeffer ‘Vida em comunhão’, que inspirou numerosos monges e outras pessoas implicadas na formação de comunidades, baseia-se nessa experiência. É igualmente nesta altura que escreve o seu clássico ‘Discipulado’ – o preço da graça, no qual opõe ‘a graça por muito pouco’ e a ‘onerosa’. Ele afirmava que a depreciação da graça que se havia produzido nas Igrejas da Reforma tinha sido evitada na Igreja católica devido ao monaquismo. As pessoas, escreve, ‘deixaram tudo o que tinham por amor a Cristo e tentaram seguir os mandamentos de Jesus pela ascese quotidiana. A vida monástica tornava-se assim um vivo protesto contra a secularização do cristianismo, contra a degradação da graça. Foi precisamente assim que os primeiros monges compreenderam a sua retirada para o deserto’.

Bonhoeffer partilhava as reservas de Lutero sobre o monaquismo. Mas insistia no fato de que o regresso de Lutero ao mundo não visava evitar uma vida exigente de discípulo, e que a sua própria ‘guinada monástica’ não era antes uma tentativa de fuga ao mundo. Com efeito, Bonhoeffer trabalhava para a Resistência enquanto escrevia a seus pais do mosteiro beneditino de Ettal em 1945 : ‘Esta forma de vida não me era naturalmente estranha, e experimento a sua regularidade e o seu silêncio como extremamente benéficos para o meu trabalho’. Prosseguia dizendo que ‘seria certamente uma perda (e seria certamente uma perda para a Reforma!) se esta forma de vida comunitária preservada durante mil e quinhentos anos viesse a ser destruída’.

Ao longo dos anos, Bonhoeffer conheceu muitas desilusões mas nunca abandonou a Igreja. Pelo contrário, a sua visão de um ‘novo tipo de monaquismo’ visava permitir à Igreja ser ‘conforme ao Filho único que se fez homem, foi crucificado e ressuscitou’. A Encarnação de Cristo é para aqui e agora. Nada de mais monástico do que dizer, com Bonhoeffer, que ‘vivemos no meio da morte; estamos precisamente no meio do pecado; mas somos novos no meio do antigo. Com efeito, ‘o nosso mistério permanece oculto para o mundo’. Vivemos porque Cristo vive, e vivemos com ele só’. Os que se conformam com Cristo desta maneira, diz ainda Bonhoeffer, ‘não procuram destacar-se, mas exaltam a Cristo para o bem dos seus irmãos e irmãs... manifestam- se como aqueles que receberam o Espírito Santo e estão unidos a Jesus Cristo num amor e numa comunhão incomparáveis’.

Numa carta que escreveu mais tarde da prisão a seu amigo Bethge, Bonhoeffer relata uma conversa que teve com um pastor francês e outro estudante no Union Seminary em 1930. O Pastor dizia-lhe querer ser santo. Bonhoeffer respondeu que preferia que quisesse ‘aprender a ter fé’. Com efeito, não tentava mais fazer o que quer que fosse por si mesmo. Em vez de experimentar ser uma pessoa religiosa, acreditava que Cristo exigia de nós viver uma ‘maturidade humana’. Esta ‘humanidade’ significava : ‘viver plenamente no meio das responsabilidades, das questões, dos sucessos e dos fracassos, das experiências e das perplexidades da vida’, e não mais levar a sério ‘os seus próprios sofrimentos mas antes o sofrimento de Deus no mundo’. Isto, diz ele, ‘é a fé; é a conversão, é a metanoia. E é assim que nos tornamos seres humanos, cristãos (cf. Jr 45 !)’.

Assim, a humanidade, a ‘mundanidade’ de Bonhoeffer não significava certamente ‘a mundanidade superficial e banal dos iluminados, dos agitados, dos confortáveis ou dos lascivos’, mas a profunda ‘mundanidade’ que demonstra a disciplina e inclui o conhecimento sempre presente da experiência real de morte e ressurreição. Thomas Merton estava em consonância com Bonhoeffer. A verdadeira mundanidade cristã, escreve, ‘é uma afirmação de vida e de humanidade, de confiança e de esperança no meio da luta, do sofrimento e da morte’. Com efeito, a verdadeira ascese cristã é uma forma de exercer a responsabilidade cristã para o mundo, de forma amante, criativa, redentora, cheia de esperança e de vida, e de educar, de disciplinar consequentemente os nossos desejos.

No seu ‘Plano para um livro’ que Bonhoeffer esboçou na prisão, descreve o que seria a Igreja e o cristão num mundo pós-cristão. Assim, dá corpo ao novo tipo de monaquismo que tinha em mente. Se o monaquismo começou em reação à cristandade, aos valores do império e de uma Igreja cada vez mais mundana, um novo tipo de monaquismo é agora necessário, enquanto a cristandade se afunda, para garantir que a Igreja permaneça fiel ao seu testemunho a favor de Cristo, no qual a realidade de Deus e do mundo estão unidos.

Primeiramente, Bonhoeffer diz que a Igreja não é Igreja se não ‘estiver presente para os outros’, porque Jesus não existe ‘a não ser para os outros’. Os mosteiros poderão ser enclausurados, mas para Bento os mosteiros existem tanto para o exterior como para os monges que estão no interior. Com efeito, aquele que segue a Regra de Bento deve tratar todos os que batem à porta como Cristo em pessoa. Ser solidário com as vítimas da sociedade é pois uma marca da Igreja, e não o fazer é uma rejeição de Cristo.

Em segundo lugar, diz Bonhoeffer, ‘a Igreja para os outros’ deve ‘dar todos os seus bens a quem deles tem necessidade’. A visão monástica de pôr em comum pela partilha todas as coisas questiona a maneira como a Igreja compreende e utiliza os seus recursos. Isto concerne muito diretamente à Igreja quando se trata de uma instituição apoiada pelo Estado, segundo o contexto que Bonhoeffer conhecia. Mas isto desafia igualmente os cristãos, as congregações e os mosteiros mais ricos a partilhar os seus recursos, o que agrava também a questão da justa repartição das riquezas na sociedade, de uma maneira mais geral.

Em terceiro lugar, prossegue Bonhoeffer, a Igreja deve ser autosuficiente e comprometer-se com um trabalho quotidiano que torne isso possível, participando ‘nas tarefas mundanas da vida, a partir da comunidade – não dominando mas ajudando e servindo’. Desta forma, a Igreja é um exemplo para todos do que é ‘uma vida com Cristo’, quer dizer ‘um ser para os outros’. O fato de os mosteiros se tornarem historicamente centros de cuidados para os doentes e as pessoas incapacitadas, bem como lugares de aprendizagem e de educação, é uma extensão deste ministério.

Em quarto lugar, Bonhoeffer fala da luta monástica contra os vícios pessoais como um programa da própria Igreja. Porque a vida ‘com Cristo’ e ‘para os outros’ exige não somente que os monges ou os cristãos individualmente, mas toda a Igreja, enfrentem e ultrapassem ‘os vícios do orgulho, o culto do poder, a inveja e a ilusão como raízes de todo o mal’. A Igreja deve também perseguir as virtudes contrárias a estes males : ‘a moderação, a autenticidade, a confiança, a fidelidade, a firmeza, a paciência, a disciplina, a humildade, a modéstia, o contentamento com aquilo que não se tem’. Feito isto, a Igreja descobre que ‘a sua palavra tem peso e poder não por conceitos mas pelo exemplo’ [3].

Enfim, Bonhoeffer religa a vida litúrgica da Igreja com a sua participação na luta pela justiça no mundo. Conforme escreve num sermão sobre o batismo quando se encontrava na prisão : ‘Não podemos ser cristãos hoje a não ser de duas maneiras, pela oração e favorecendo a justiça entre os seres humanos. Todos os pensamentos, palavras e organizações cristãs devem renascer de novo, a partir dessa oração e dessa ação’. Mas como existem a Igreja, o mosteiro, a congregação ‘para os outros’, comprometidos com o serviço do mundo nas suas lutas pela justiça, sem perder a sua identidade de Ecclesia? Assim perguntava Bonhoeffer a Bethge :

‘Como podemos nós, os chamados, ser ecclesia, sem nos compreendermos religiosamente como privilegiados (quer dizer como fazendo parte da cristandade), mas pelo contrário nos considerando como pertencendo por inteiro ao mundo? Cristo não seria então mais somente o objeto da religião, mas uma outra coisa, ele seria verdadeiramente o Senhor do mundo’.

Tal como Bonheoffer insistiu sobre o fato que a sua compreensão da condição de discípulo não era nem banal nem superficial, também insistia sobre o fato que quando a Igreja se abre ao mundo, seja pela sua hospitalidade calorosa, a sua solidariedade com as vítimas sociais, ou procurando interpretar o Evangelho, ela não deve nem abandonar a sua identidade nem questionar os mistérios da fé. Com esta finalidade, Bonhoeffer propõe recuperar a disciplina do mistério monástico. Quer dizer a prática adotada na Igreja do século IV para proteger os ‘Mistérios-sacramentos na prática interna da Igreja, em particular para o batismo e a eucaristia’, conservando-os ‘ocultos’ do mundo. Assim, Bonhoeffer propõe que o mistério monástico seja restabelecido, porque assim os mistérios da fé cristã estariam ‘ao abrigo da profanação’, enquanto que, ao mesmo tempo, e este é o ponto crítico, a Igreja encontrar-se-ia mais implicada na vida do mundo. O abrir-se ao mundo e o esconder-se no mistério da fé são indissociáveis porque um e outro fazem indissociavelmente parte da sua identidade profunda. Este kairos, este momento monástico não é pois para os cristãos tempo de fugir do mundo, mas sim amar o mundo com o amor de Deus, de não perder nunca a esperança no mundo enquanto mundo de Deus, e assim participar juntos mais ativa e plenamente da vida de Deus.’


[1] Jonh W. de Gruchy , nascido em 1939, é um teólogo cristão da África do Sul, professor emérito na universidade do Cabo e professor extraordinário na universidade de Stellenbosch. Algumas das suas primeiras obras foram escritas durante o apartheid, manifestando-se contra a legislação e apoiando-se na teologia de Dietrich Bonhoeffer para advogar a favor da libertação dos oprimidos. Após a abolição da legislação sobre o apartheid em 1991, de Gruchy escreve um certo número de obras falando do papel teológico da arte na sociedade e defendendo uma teologia da reconciliação. [Nota do editor.]

Extratos de : Rediscovering Monasticism.

Dietrich Bonhoeffer, nascido a 4 de fevereiro de 1906 em Breslau (atualmente Wroclaw na Polônia), morreu por enforcamento em 9 de abril de 1945 no campo de concentração de Flossenbürg (Baviera), e foi um pastor luterano, teólogo, ensaísta e resistente ao nazismo, membro influente da Igreja confessora.

[2] Karl Barth (1886-1968) é um pastor reformado e professor de teologia suiço. É considerado como uma das personalidades maiores da teologia cristã do século XX. [Nota do editor.]

[3] D. Bonhoeffer, Letters and Papers from Prison, 503-4.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/121

sábado, 16 de agosto de 2025

Irmãos segundo a Regra de São Bento

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

    

 *Artigo de Dom Jean-Pierre Longeat, OSB

ex-Presidente da AIM

 

‘Se existe uma dimensão que é importante para São Bento, é a da fraternidade. Na Regra, ele privilegia o título de ‘irmão’ para designar os membros da comunidade monástica. Em comparação, o título ‘monge’ é muito menos usado. Podemos recordar aqui as conclusões de Christine Mohrmann que, em seu tempo, mostrou esta recorrência em relação ao ideal da primeira comunidade cristã pelos primeiros ascetas cristãos, sob a guia do Evangelho, como expressa bem o prólogo da Regra. [1]

Toda vez que São Bento usa o título de irmão, ele é carregado de significado; não tem um mero papel funcional neste uso. Marca um ideal. A comunidade monástica é descrita como um exército fraterno no qual se exercita e se torna mais experiente na luta contra o espírito maligno (RB 1, 5). Esta caracterização do gênero valoroso dos cenobitas certamente não é neutra. Deve ser levada muito a sério, assim como a imagem da escola do serviço do Senhor, ou da oficina onde se exercita com os instrumentos das boas obras. Ao falar de um exército fraterno, São Bento enfatiza a importância de aprender a vencer as armadilhas do adversário e, para isso, de contar com a experiência daqueles ao lado de quem se combate.

O compromisso fraterno na comunidade

Depois que o irmão noviço emite sua profissão, ele se prostra aos pés dos irmãos, pois a consequência imediata de seu compromisso é justamente a de pertencer a este corpo fraterno onde continuará a lutar contra tudo o que possa servir de obstáculo ao mandamento do amor (RB 58, 23).

No início e no final da Regra, esta dimensão também é lembrada como uma questão importante. Nos primeiros parágrafos, São Bento exclama aos irmãos : ‘Que há de mais doce para nós, caríssimos irmãos, do que esta voz do Senhor a convidar-nos’ (Pr 19), e no capítulo 72, que pode ser considerado a verdadeira conclusão da Regra : ‘Ponham em ação castamente a caridade fraterna’ (RB 72, 8). É porque uma voz fraterna se dirigiu a nós com toda a doçura do amor, que nos colocamos a caminho em uma comunidade, a fim de aí trabalhar, em companhia de outros, a dinâmica da caridade.

Entre estas duas menções, podemos dizer que toda a Regra consiste em responder de forma muito concreta ao chamado recebido da voz muito convidativa do Senhor e a colocar em prática, castamente, os deveres do amor fraterno.

O Prólogo já menciona essa dupla dimensão da escuta e da prática do mandamento do amor : ‘Meus irmãos, quando perguntamos ao Senhor : ‘Quem é aquele que deseja a vida e quer desfrutar de dias felizes?’’ (Sl 33), ou ainda : ‘Quem habitará em tua casa, Senhor?’ (Sl 14), insiste São Bento : ‘Irmãos, escutemos a resposta do Senhor’. A voz daquele que nos fala nos convida a nos colocarmos a caminho e a agir com eficácia. É preciso, a fim de incentivar este processo, chamar os monges de caríssimos irmãos, como faz São Bento. Mas de qual fraternidade é feito o programa da vida monástica?

Uma comunidade de irmãos

Em primeiro lugar, a comunidade é constituída como um conselho de irmãos, cuja opinião o abade escuta regularmente. Esta é uma das características desta vida comum. Isto acontece em diferentes níveis : ou com toda a comunidade reunida, ou com um conselho de ‘sábios’ em torno do abade. Como a Regra nos lembra, é bom fazer tudo com conselho, e depois de feito não se arrependerá.

Estando os irmãos reunidos, será solicitado o parecer de cada um deles : isto é tanto um direito quanto um dever. Ninguém pode se eximir de tal solicitação. ‘Com toda humildade e respeito, os irmãos darão o seu parecer’ (RB 3, 4). Há aqui uma qualidade de escuta, de atenção e de consciência de que o parecer individual vale menos do que o comunitário. ‘Tudo está ligado, e o todo vale mais do que a parte’. É isto o que ocorre nos conselhos fraternos. Quando esta dimensão não intervém com suficiente regularidade na vida de uma comunidade, pode-se ter certeza da ameaça do perigo.

Uma fraternidade humilde

É necessário manter o propósito da humildade no coração, a fim de fomentar uma verdadeira comunidade de irmãos. No capítulo 7 sobre a humildade, diz-se que o irmão sábio (literalmente aquele que quer ser útil) repetirá para si mesmo, incessantemente em seu coração, a fim de estar vigilante sobre seus pensamentos : ‘Se me preservar da minha iniquidade, serei, então, imaculado diante do Senhor’ (7, 18). O pecado consiste essencialmente em virar as costas para Deus e querer agir somente por si mesmo. São Bento insiste : ‘Concluamos, irmãos, que devemos estar sempre vigilantes’. No final do capítulo 7, ele conclui : ‘Os irmãos suportam os falsos irmãos e abençoam aqueles que os amaldiçoam’ (7, 43). Assim como no Prólogo e na Regra como um todo, o convite inicial é uma escuta, uma vigilância à qual os membros da comunidade são chamados em toda fraternidade, da mesma forma, no final, eles estão em condições de amar seus inimigos, de suportar os falsos irmãos, de abençoar aqueles que os amaldiçoam, em outras palavras, de praticar perfeitamente o mandamento do amor. É impossível avançar de outra forma : a humildade nos conduz à uma disposição  de escuta, de atenção, de vigilância, para preservar nosso coração para seguir o Cristo em seu caminho pascal e para viver a comunhão fraterna, em verdade, como ele mesmo a viveu.

O belo testemunho de uma comunidade monástica no coração da sociedade vale sobretudo por causa desta capacidade fraterna que traz a graça da paz, da unidade e do amor.

Sob a guia de Cristo

O abade, que, por sua vez, tem a tarefa de manifestar a presença de Cristo no seio da comunidade, deve cuidar para que a inimizade fraterna não penetre no grupo. Ele permanece vigilante, especialmente com relação às suas próprias ações, que falam tanto e às vezes mais do que suas palavras. Verifica-se isto, particularmente, na qualidade de seu relacionamento com os irmãos, que ele abordará com humildade : ‘Viste o grão de palha no olho de teu irmão e não viste a trave no teu próprio’ (RB 2, 15).

A responsabilidade do abade é a mesma, não importa quantos irmãos ele tenha a seu cargo (RB 2, 38). Ele terá que responder pelo progresso ou pelo retrocesso de cada um, devido à vigilância que lhe cabe. O capítulo 64 traduz isto em uma fórmula lapidar : ‘O abade odiará os vícios e amará os irmãos’ (64, 11).

Os colaboradores do abade serão escolhidos geralmente com o conselho dos irmãos, como por exemplo, o prior (65, 15). Os decanos devem ser nomeados dentre os irmãos de boa reputação e vida santa (21, 1). No capítulo sobre o celeireiro, São Bento especifica a atitude fraterna que ele espera do responsável pela organização material do mosteiro : ‘Que o celeireiro não entristeça seus irmãos’ (31, 6); ‘que ele possa dar uma boa palavra quando um irmão lhe pedir algo desarrazoadamente’ (31, 7.13) e ‘que ele ofereça aos irmãos a parte estabelecida para cada um, de acordo com suas necessidades’ (31, 16).

São Bento tem, portanto, a preocupação de envolver os irmãos na escolha de seus responsáveis, e de possibilitar a vivência da fraternidade em todos os seus aspectos, de tal modo que ninguém se entristeça na casa de Deus.

O serviço fraterno

Pode-se dizer que é toda a comunidade que deve ter essa preocupação. ‘Que os irmãos se sirvam mutuamente’ (35, 1). Aqueles que entram em serviço a cada semana lavarão os pés de seus irmãos, imitando a Cristo na véspera de sua Paixão. A refeição e o serviço que ela implica são concebidos como momentos eucarísticos. Eles se referem aos ágapes que a primeira geração cristã realizava por ocasião da partilha eucarística.

Um cuidado especial é dado aos irmãos doentes que representam Cristo na comunidade de uma maneira muito especial (‘Fui enfermo e visitaste-me’ e ‘aquilo que fizestes a um destes pequeninos, a mim o fizestes’, RB 36, 2-3).

Mas há também uma grande atenção por parte de São Bento de que o serviço fraterno não crie nenhuma perturbação na comunidade : ‘Que os irmãos trabalhem sem murmurar’ (41, 5). É por isso que a organização deve ser bem temperada, há um tempo para tudo : trabalho, liturgia, leitura espiritual, vida fraterna... Um capítulo inteiro é dedicado a esta distribuição do tempo e, finalmente (48), toda a vida é dedicada a uma atividade de conversão com um encorajamento mútuo. Se por acaso houver algum irmão que sofra de desânimo (acédia), é preciso apoiá-lo, estar ao seu lado e ajudá-lo superar tal etapa (48, 18). Por outro lado, é também importante que haja momentos pessoais nos quais a relação fraterna não sirva como uma dispersão (48, 21). Se há irmãos mais frágeis, deve-se ter um cuidado especial para com eles, e uma atividade proporcional deve ser encontrada para eles, para que possam participar do esforço comum e, ao mesmo tempo, não sejam sobrecarregados ou levados a fugir de sua tarefa (48, 24).

É necessário zelar para que os serviços não sejam muito pesados : na cozinha, nas oficinas, na enfermaria, na hospedaria, na portaria... Se o porteiro precisar de ajuda, um irmão mais novo o ajudará (66, 5). Isto parece trivial, mas é uma dimensão que desempenha um papel importante na qualidade da vida cotidiana. Quando alguém está sobrecarregado de trabalho, não pode servir seus irmãos em boas condições.

E assim como o celeireiro deve tratar os objetos do mosteiro com todo cuidado como vasos sagrados do altar, assim o abade confiará todo esse material a irmãos confiáveis, e ele ficará atento para que, em cada semana, nada seja dispersado, a fim de que os irmãos que se sucedem nos serviços não tenham surpresas e possam contar com a confiabilidade dos outros.

Uma vida de busca

A Regra especifica que a fraternidade está enraizada na busca de um fundamento interior que pode ser encontrado na oração e na meditação.

Além do fato de que nada deve ser preferido à Obra de Deus, ou seja, à oração comum, São Bento pede que o tempo seja empregado no estudo do Saltério e nas leituras. Sabemos que os antigos monges empregavam parte do tempo memorizando os salmos, que são a matéria-prima do Ofício. Portanto, os irmãos que precisam são chamados a se dedicar a essa ocupação durante o tempo livre após as Vigílias celebradas durante a noite, esperando o Ofício da manhã (8, 3).

A leitura no coro é objeto de um cuidado especial. Ela não deve ser desempenhada por alguém que não conhece a arte da leitura (9). Também aqui há um sentimento de fraternidade que toca as raízes do que é revelado.

Correção fraterna

A Regra é baseada na confiança fraterna. A comunidade está organizada como uma equipe esportiva onde cada um desempenha seu papel e conta com os outros para desempenhar o seu.

E cabe principalmente ao abade exercitar a confiança fraterna, sabendo naturalmente o que ele pode pedir a um ou a outro. Por exemplo, em matéria de administração, ele a confiará a irmãos dos quais esteja seguro (32, 1), e verificará se não há problemas no cotidiano, especialmente na transferência de responsabilidades.

Mas não devemos ser ingênuos; no mosteiro, como em todas as sociedades, existem fraudadores e é necessário corrigir e acompanhar as suas tentações de tomada de poder.

Não se pode alcançar uma vida fraterna harmoniosa sem colocar em prática algumas normas. É por isso que São Bento prevê medidas que incentivam a reflexão pessoal sobre a própria conduta, o que permite a correção. Isto acontece especialmente no contexto de reuniões comunitárias diárias (liturgia, refeições). Um irmão culpado de uma falta pode ser temporariamente excluído da mesa comum ou da oração comum (24-29). Esta privação visa afirmar a vida fraterna como um bem superior aos desejos multiformes e desordenados de cada um. Hoje, vemos um fenômeno perturbador que leva alguns irmãos ou irmãs a se manterem separados por própria vontade, sem que isso seja considerado uma dificuldade ou uma provação. Estão felizes em cultivar sua própria diferença sem se preocupar com o bem comum e estão convencidos desse direito. Assim, os modos de correção fraterna adaptados à mentalidade contemporânea são tão difíceis de encontrar que acabamos por aceitar que eles quase não existem mais. Parece-me que este é um assunto que precisa ser aprofundado na vida de nossas comunidades, a fim de encontrar a maneira correta de agir.

A conclusão da Regra

No final de sua Regra, São Bento insiste muito na dimensão das relações fraternas. Ele pensa nos irmãos que partem em viagem, seja para perto ou longe do mosteiro. Ele pede que os irmãos sejam abençoados em sua partida e que se reze por eles quando retornam. Ele se preocupa em como lidar com a questão das coisas ordenadas que parecem estar além das possibilidades do irmão ao qual a ordem é dirigida. O processo do debate é notável (cf. 68).

Ele pede que ninguém bata ou puna outro irmão deliberadamente, mas que a correção fraterna seja regulada pelo abade e pela comunidade.

Acima de tudo, ele pede que os irmãos se obedeçam mutuamente (71). Portanto, que haja no mosteiro uma vontade de escuta recíproca e de agir de forma unida. E se um irmão irritou outro, ele deve imediatamente reconhecer seu erro e pedir perdão ali mesmo (71, 6).

São Bento resume sua preocupação em considerar a horizontalidade fraterna com esta fórmula lapidar : ‘Ponham em ação castamente a caridade fraterna’ (72, 8), isto é, que ninguém ouse se aliar a outro, nem bater em quem quer que seja.

Conselhos para viver a fraternidade

Apontamos aqui alguns conselhos da Regra que concretizam a relação fraterna.

A coisa mais importante para viver livremente a fraternidade é se desapegar de tudo e sentir-se dono de nada, e cuidar das necessidades de cada um, tanto de corpo quanto de alma.

Um diálogo necessário para a interpretação das ordens recebidas será integrado à vida fraterna, tornando sua execução ainda mais relevante, mesmo quando se trata de coisas que, à primeira vista, parecem impossíveis (68). Dessa maneira, os irmãos aprenderão a colocar em prática uma vontade comum que possa ser enraizada na vontade de Deus (71).

Naturalmente, serão evitadas, a todo custo, as vinganças pessoais que fariam arbitrariamente prevalecer a lei do mais forte : ninguém tomará decisões subjetivas e radicais a respeito dos outros irmãos; as decisões serão remetidas para os responsáveis (70). Mas, por outro lado, uma união mal-intencionada entre dois irmãos também deve ser evitada.

Os monges não devem se preocupar com sua aparência no que diz respeito ao vestuário, mas devem receber suas vestes da comunidade, sem preocupação de estilo ou cor, mas com um senso de moderação e, portanto, sem despesas excessivas (55).

Não deve haver monopolização dos dons provenientes do exterior ou do interior do mosteiro, mas se deve aceitar que sejam dados a outros a quem eles forem mais úteis.

Deve-se ter o cuidado de adotar interiormente a atitude permanente que marca o dia da profissão definitiva, quando o novo irmão se prostra aos pés de todos os outros e pede suas orações, a fim de ser recebido plenamente na fraternidade da comunidade. Ele manterá também o seu lugar de ordem para eliminar as diferenças sociais e para que em tudo prevaleça a comunhão.

Quando os irmãos se encontrarem, eles se cumprimentarão de forma fraterna. Os jovens honrarão os mais velhos e esses amarão os mais jovens : eles se chamarão afetuosamente de ‘irmão’ e ‘nono’ (nonni). Isto caracterizará a relação vivida dentro do mosteiro : uma relação substancial com referência ao mandamento da caridade.

Deve-se evitar que os jovens sejam deixados juntos o tempo todo; eles devem ser integrados com os mais velhos para que tenham algum tempo para a reflexão e não sejam tentados a entrar em fácil contestação ou a se dispersarem do que é essencial (22).

Os irmãos se revezarão para servir uns aos outros à mesa e se assegurarão de que não falte nada a ninguém (38, 6). Haverá dois pratos de cozidos para que nenhum irmão seja privado se não puder comer de um deles.

Os irmãos assegurarão também a leitura à mesa a cada semana e, para que não lhes seja pesado, poderão tomar a refeição antes do serviço, especialmente se estiverem em jejum desde a manhã (38, 6.10).

É importante que os irmãos façam tudo o que têm que fazer sem serem tentados a murmurar interna ou externamente. São Bento é muito sensível a esta dimensão para a qualidade da vida fraterna.

Ele também é sensível ao fato de que tudo aconteça no devido tempo. Ele prevê que o próprio abade toque o sino para a liturgia ou então que ele confie essa tarefa a um irmão que seja pontual, de maneira que o ofício nunca seja perdido (47). E quando o ofício termina, todos os irmãos saem do oratório em sumo silêncio (52).

São Bento também prevê que alguns irmãos possam permanecer no oratório após o ofício. Neste caso, eles o farão com discrição, dirigindo a Deus suas súplicas sem rumores de voz (52).

Acolhida fraterna

Os irmãos são convidados a compartilhar sua oração e parte de sua vida com as pessoas que vêm se hospedar no mosteiro.  Este é um ponto forte da vida monástica de acordo com São Bento. Os irmãos não estão destinados a se isolar em si mesmos. Eles devem ser testemunhas da importância da comunhão fraterna para aqueles que eles acolhem (53).

São Bento especifica que todo hóspede será recebido como o Cristo, de tal modo que à sua chegada, o abade e todos os irmãos corram ao seu encontro, mostrando-lhe todos os sinais de caridade (53, 3). Eles rezarão juntos e o abade lavará seus pés, seguindo o exemplo de Cristo para com seus discípulos.

O abade tomará a refeição com os hóspedes e romperá o jejum por causa deles; ele poderá convidar outros monges para sua mesa (56, 2), enquanto que a comunidade dos irmãos manterá a prática do jejum de acordo com a Regra (53, 10).

Quando há muitos hóspedes, o importante é que tudo seja organizado de tal forma que a vida dos irmãos não seja perturbada em seus aspectos fundamentais (53, 16). É por isso que a função de hospedeiro requer grandes qualidades espirituais, especialmente a consciência da presença permanente de Deus, que dá sentido a todos os relacionamentos e a todos os atos da vida (53, 21).

Os monges não estão enclausurados de forma absoluta, segundo a Regra de São Bento. Eles viajam e estão em contato frequente com pessoas externas. Um capítulo inteiro é dedicado aos irmãos que partem em viagem (67). Quando os irmãos têm que deixar o mosteiro por algum tempo, eles pedem a oração da comunidade na partida e no retorno, e permanecem ligados a ela, na medida do possível, assegurando as horas de oração.

Conclusão

Enfim, a Regra de São Bento não é um tratado sobre a fraternidade como uma ideia generosa à qual seria bom estar ligado, mas sim um convite para colocá-la em prática dentro da estrutura de uma comunidade de vida permanente. Esta fraternidade se estende aos hóspedes, acolhidos no mosteiro e a todos aqueles que, perto ou longe, estão ligados à comunidade. Finalmente, como vemos ao longo da história humana, este testemunho fraterno é um elemento estimulante na construção de toda a sociedade. Na verdade, as comunidades monásticas provam que a fraternidade é possível; elas a vivem ao longo do tempo com estabilidade. O fator tempo é essencial no ideal monástico mesmo que, infelizmente, o espaço tenha muitas vezes desviado a atenção dele : às vezes estamos mais atentos à estrutura que pode se tornar fixação e incapaz de adaptação.

São Bento, como vemos em sua vida escrita por São Gregório Magno, amava este papel essencial da fraternidade na construção da sociedade. Ainda hoje, ele nos convida a sermos verdadeiras testemunhas que dão suas vidas por amor no seio de uma comunidade fraterna.’ 


[1] Christine Mohrmann, ‘Le rôle des moines dans la transmission du patrimoine latin’, Revue d’histoire de l’Église de France, 1961, n° 144, p. 185-198.

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.aimintl.org/pt/communication/report/121


terça-feira, 12 de agosto de 2025

Um lugar de oração e silêncio no coração da Suécia

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Mario Galgano

 

‘«Gostaríamos de levar Jesus ao mundo como Maria». Essa frase da Irmã Katharina, prioresa do mosteiro beneditino Heliga Hjärtas, no sul da Suécia, resume o que impele a comunidade : uma vida no seguimento de Cristo, caraterizada pelo silêncio, pela hospitalidade e por um profundo enraizamento espiritual. O mosteiro não é uma fundação secular, mas um lugar relativamente jovem com uma história especial.

O seu início remonta à comunidade evangélica Irmã ‘Marientöchter’, uma fundação sueca. Nos anos 80, algumas religiosas começaram a confrontar-se mais intensamente com a tradição monástica. «Quanto mais aprofundávamos a questão, tanto mais claro nos tornava : estas são as nossas raízes», afirmou a Ir. Katharina. Em 1988, a comunidade entrou na Igreja católica de modo unitário, num processo que durou quase 10 anos, realçou. «Queríamos viver na reconciliação e no amor. Não deveria haver fraturas».

Em 1997, as religiosas mudaram-se para o seu mosteiro, recém-edificado, do convento Heliga Hjärtas quando as casas anteriores se tornaram demasiado pequenas. A escolha recaiu deliberadamente sobre a regra beneditina. «Pudemos visitar muitos mosteiros, sobretudo na Alemanha, para aprender com pessoas que já levavam esta vida», recordou a prioresa. Receberam um apoio especial do mosteiro nos arredores de Gütersloh (arquidiocese de Paderborn), na Alemanha. Esse contato mantém-se até hoje.

Atualmente no mosteiro vivem 14 religiosas, quase todas suecas, com exceção de uma polaca de nascimento. A idade varia de 40 a 85 anos. A vida quotidiana segue o ritmo beneditino da oração, do trabalho e da comunidade. «O nosso objetivo é procurar Deus nas pessoas, no mundo, onde quer que estejamos».

O mosteiro também é um lugar para hóspedes

Há muitos anos que as religiosas gerem uma ‘Casa do Silêncio’, onde são acolhidos indivíduos e pequenos grupos, muitas vezes pessoas sem vínculos religiosos mas animadas por um desejo espiritual. «Muitos nem sequer sabem o que procuram, mas aqui encontram algo que os sensibiliza», declarou a Irmã Katharina. «Muitas vezes dizem que vêm para descansar e ouvir a oração».

A procura é grande, superior à capacidade. Há 18 quartos para os hóspedes, três dos quais são na clausura para sacerdotes ou religiosos. O mosteiro é deliberadamente pequeno, a fim de que haja tempo para conversas pessoais. «Muitos dos nossos hóspedes trabalham no setor da saúde ou da educação, sentem-se exaustos, vazios. Dizem : ‘Aqui podemos falar de coisas importantes’. É uma grande dádiva!».

O convento Heliga Hjärtas tornou-se conhecido inclusive entre as ordens religiosas. Religiosas provenientes da Dinamarca, dos Países Baixos e de outros pequenos mosteiros da Escandinávia vêm regularmente aqui para fazer intercâmbios. As monjas beneditinas de Omberg mantêm contato também com o mosteiro de Alexanderdorf, nos arredores de Berlim, numa rede de relações espirituais que se estende muito além da Suécia.

Embora atualmente não haja noviças, a esperança de novas vocações está viva. As jovens mostram interesse pela vida monástica. A tarefa da Irmã Katharina consiste em testemunhar, não com palavras grandiosas, mas com a simples vida de todos os dias. «Não devemos fazer grandes coisas. É suficiente viver com Cristo e irradiá-lo através da nossa vida».’ 


Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2025-08/projeto-sisters-suecia-lugar-de-oracao-silencio-2025.html

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

São Bento, o religioso que 'inventou' o conceito dos mosteiros ocidentais

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Edison Veiga 

Uma das instituições mais antigas de São Paulo, instalada desde o fim do século 16 no coração da cidade, o Mosteiro de São Bento é um conjunto de igreja e casa religiosa, onde vivem dezenas de monges.

 

‘O santo que empresta nome à comunidade foi um homem que viveu entre os séculos 5 e 6 na península itálica. A ele, São Bento de Núrsia (480-547), é atribuída a criação das bases que até hoje vigoram nos mosteiros religiosos católicos do ocidente.

Esses ensinamentos estão no livro que se tornou conhecido como 'Regra de São Bento', um compilado de regras, em 73 capítulos, de como deveria ser a vida daqueles que decidissem ingressar para uma casa monástica. Bento teria escrito esse texto ao longo do século 6. No cerne dos ensinamentos, estão o preceito fundamental para o beneditino, ‘ora et labora’, ou seja, ‘reza e trabalha’. E o lema de todo religioso da ordem, a ‘paz’.

O documento fala sobre como deve ser a organização interna do mosteiro (entre os capítulos 21 e 52), como deve ser a clausura (capítulo 66), as orações comuns (capítulos 8 a 20), as relações com o mundo (capítulos 53 a 57), entre outras questões.

Quem foi

‘Muito do pouco que sabemos de São Bento vem-nos de São Gregório Magno, papa e doutor da Igreja’, comenta o escritor e pesquisador J. Alves, autor de 'Os Santos de Cada Dia' e membro da Academia Brasileira de Hagiologia. Gregório (540-604) narrou, no segundo livro de sua obra 'Diálogos', diversos fatos relacionados a São Bento.

‘De fato, os registros históricos que possuímos sobre São Bento são muito escassos’, acrescenta o monge Hildebrando Brito, membro do Mosteiro de São Bento da cidade de São Paulo. ‘A sua única biografia foi a escrita pelo papa São Gregório Magno, alguns anos após sua morte.’

Mas Brito mesmo ressalta que ‘o próprio Gregório afirmou não havê-lo conhecido, mas sim registrado os fatos narrados por quatro de seus discípulos, seus sucessores no governo dos mosteiros por ele fundados’.

‘Esta biografia, que é muito diferente do conceito moderno dessa palavra, se chama 'Vida e Milagres de São Bento' e é o segundo livro de uma obra mais vasta do papa Gregório, composta por quatro livros, nos quais ele narra fatos de diversos santos que viviam na Itália central daquele período’, completa o monge.

Filho de uma família de posses, Bento nasceu em Núrsia, na atual região italiana da Úmbria, na época Reino Ostrogótico. Sua irmã gêmea, Escolástica (480-542), também se tornaria santa do catolicismo.

Na adolescência, foi enviado a Roma, para estudar retórica, filosofia e ciências jurídicas. Decepcionado, decidiu se tornar um ermitão. Este enredo denota uma trajetória recorrente em narrativas referentes a santos, uma espécie de jornada do herói que, ao longo da história, se apresenta como um traço comum.

‘Segundo consta, ele teria sido enviado aos 12 anos, com sua irmã, a Roma. No entanto, teria ficado chocado com a vida dissoluta da cidade e, a partir daí, teria desprezado os estudos, abandonado a casa e os bens de seu pai e visto despertar o interesse por uma vida monástica’, pontua o pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos. ‘Essa narrativa é muito comum a vários santos, é como se fosse um lugar hagiográfico, algo que poderia ser atribuído a muitos santos da tradição eclesiástica.’

A ideia, no caso, do filho rico que vive uma epifania e, em dado momento, opta pelo desapego total dos bens em prol de uma causa de inspiração divina. ‘Este caminho de conversão se tornou muito comum no gênero da hagiografia, remonta à tradição da Igreja’, explica Maerki.

Por volta do ano 500, viveu cerca de três anos em uma caverna em Subiaco, no Lácio. Ali, consta que se dedicava à oração e a sacrifícios pessoais.

Sua reclusão foi interrompida quando pastores o descobriram e passaram a espalhar sua fama de santidade. ‘Terminada essa experiência, ele teria decidido guiar outros monges’, diz Maerki.

Acabou se mudando para uma casa religiosa em Vicovaro, no entorno de Roma, e ali ele teria conquistado o respeito dos demais e se tornado abade.

Ao tentar implantar na comunidade as regras que ele considerava corretas, enfrentou oposição dos religiosos que viviam na casa. Em determinado momento, conforme conta Gregório Magno, estes tentaram-no envenenar, colocando uma substância em sua taça de vinho. Mas a hagiografia conta que quando ele foi tomar o cálice, saiu dela uma serpente, quebrando-a. Seria um milagre para salvar sua vida.

O episódio fez com que ele decidisse sair daquela vida em comunidade e retornar ao ascetismo solitário. Em 503, como vinha sendo procurado por muitos admiradores, decidiu começar a fundar mosteiros com a sua regra. Chegaria ao total de 13 casas.

‘Foram quase três décadas assim. Em Subiaco, pregando o Evangelho, falando de Deus, acolhendo aqueles que os procuravam, fazendo discípulos e criando mosteiros’, comenta Maerki. ‘Fundar 13 comunidades monásticas nessa época era algo esplendoroso.’

De acordo com o pesquisador, essas primeiras comunidades beneditinas tinham como norma o número de 12 monges guiados por um abade, numa reprodução intencional do grupo fundador do cristianismo, ou seja, Jesus e os 12 apóstolos. A palavra abade, conforme explica Maerki, remonta ao siríaco e significa ‘pai’. ‘Um pai amoroso, a qual o monge deve obediência por toda a vida’, explica.

Bento se mudou para Monte Cassino, uma colina rochosa perto de Nápoles, na época parte do Império Romano Oriental. Ali, em 529, estabeleceu um mosteiro que se tornaria o mais importante dentre todos os beneditinos. Viveu na casa religiosa até sua morte, em 547.

Antes, contudo, um novo episódio de descontentamento fez dele alvo de tentativa de assassinato. Um dos religiosos, um homem chamado Florêncio, deu a Bento um pão envenenado. Pressentindo algo estranho, o religioso teria dado, conforme narra a hagiografia, o alimento a um corvo que todos os dias vinha comer algo de suas mãos. No caso do pão, contudo, Bento teria dito que era para que a ave o levasse embora para longe — e não comesse. E isso teria ocorrido. Para os que acreditam, este teria sido mais um milagre.

Na tradição católica, os dribles que Bento deu nas duas ciladas armadas para matá-lo são os fatos que confirmam sua santidade. Ele é um santo muito anterior às normas atuais de canonização, ou seja, não foi submetido ao mesmo rigoroso processo adotado hoje pelo Vaticano para declarar alguém santo.

Comunidades religiosas

Considerado o padroeiro da Europa, São Bento é também chamado de ‘pai do monaquismo’. Isto porque praticamente toda ordem monástica ocidental deriva direta ou indiretamente dos princípios e normas fundamentados por ele.

‘Na Igreja do ocidente, todos os que são chamados de monges seguem a regra de São Bento, os beneditinos, os cistercienses e os trapistas. Uma exceção é feita à pequena mas antiga ordem dos cartuxos, que segue a regra de São Bruno’, comenta o monge Hildebrando Brito.

‘O monaquismo precede São Bento, mas, a partir dele tem um impulso muito maior e mais determinado, principalmente por conta da regra por ele escrita e aprovada pelos monges de então’, analisa o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará. ‘Após a sua morte, a regra foi adotada ou formulada, ainda que diversamente, por inúmeros mosteiros mundo afora. Quinze papas foram eleitos da Ordem Beneditina, incluindo entre estes três santos e dois beatos.’

Retrocedendo àqueles tempos em que Bento era vivo, contudo, vale ressaltar uma diferença fundamental entre as comunidades religiosas por ele criadas e a maneira como a vida monástica costuma ocorrer. Para São Bento, a experiência religiosa buscada pela vida religiosa deveria ser coletiva, não mais individual.

‘Isto é importante sinalizar. A espiritualidade sonhada e pensada por São Bento vai na contramão da ideia de uma vida isolada, como a de um eremita’, diz Maerki. ‘Embora ele tenha passado pela experiência eremítica, ele propôs uma vida em fraternidade.’

O pesquisador nota que os princípios de Bento demonstravam a necessidade de que os monges pudessem se correlacionar. ‘Não é uma vida de alguém que se isola do mundo em uma caverna. Ele propõe um isolamento do mundo, mas dentro de uma comunidade formada por irmãos’, salienta.

‘E esse modelo depois se espalhou por todas as ordens que temos hoje na Igreja’, acrescenta Maerki.

Alves reitera que esse papel de ‘patriarca do monaquismo do Ocidente’ atribuído a São Bento já era fato ‘200 anos após a morte dele’, quando a sua regra ‘havia se espalhado pela Europa inteira, tornando a norma de vida monástica aceita, amplamente comentada e difundida, não apenas durante toda a Idade Média, mas ao longo de toda a história do monaquismo ocidental’.

‘Os monges beneditinos exerceram papel importantíssimo na evangelização da Europa medieval e na vida da Igreja universal’, comenta o pesquisador. ‘São Bento antevia em sua Regra que o menos era mais, sintetizando no 'ora et labora' toda uma mística cristã de servir, na simplicidade, na abnegação ao próximo, em nome de Deus.’

Para Alves, foi São Bento quem tornou a vida religiosa ‘acessível a todos os que desejam’. ‘A moderação passa a ser a tônica geral’, ressalta. ‘Nela, não mais se fala em rigorosas mortificações e penitências, mas da busca do Deus da ternura e da misericórdia, com o coração humilde, na oração e no trabalho.’

‘São Bento, no meu entender, é um dos santos mais importantes da história do catolicismo’, comenta Lira. ‘Não à toa 16 Papas escolheram por nome Bento, tendo sido o último o grande Papa Bento 16.’’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.bbc.com/portuguese/geral-64384248