Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Superior de Rhêmes Notre-Dame, Itália
‘A canonização do Irmão Charles é uma oportunidade
para voltar à fonte da experiência espiritual deste buscador de Deus. Pela sua
forma única de viver o seguimento de Cristo, ele foi o profeta do Concílio
Vaticano II, esse tempo de uma inteligência renovada do Evangelho. Na conclusão
de sua última encíclica Fratelli tutti, o Papa Francisco escreve :
«Mas quero terminar lembrando uma outra pessoa de
profunda fé, que, a partir da sua intensa experiência de Deus, realizou um
caminho de transformação até se sentir irmão de todos os homens e mulheres.
Refiro-me ao Beato Charles de Foucauld».
Embora o Irmão Charles seja referido no Ordo como
«padre», parece-me poder dizer que, na realidade, ele foi e permaneceu sempre
um monge e um monge cisterciense. No momento em que a experiência do Irmão
Charles já estava bastante madura, uma carta escrita de Tamanrasset, em 26 de
março de 1908, ao seu cunhado Raymond de Blic, mostra-o consciente da sua
evolução e do desafio que ela representa para as suas escolhas futuras :
«Permaneço um monge - monge em terra de missão - um monge missionário, não
somente missionário» [1].
Deste ponto de vista, podemos dizer que há um
trabalho em curso para compreender melhor como a espiritualidade do Irmão
Charles está enraizada na mais pura tradição monástica, entendida como este
fluxo de água viva, este desejo de procurar Deus de acordo com o Evangelho que
atravessa, em segredo, por vezes, a longa e complexa história. O Irmão Charles
tem um apurado sentido da sua história pessoal, ligado não só ao tempo que
passa, mas também aos lugares que percorre; ele observa assim nas suas
meditações bíblicas : « Apliquemos este salmo a nós próprios : é a história da
nossa alma. Deus tirou-nos do mundo com a sua própria mão » [2].
Como nota Raymond Pannikar, a vida de cada homem e mulher neste mundo não é
apenas a sua biografia, mas também a sua geografia. Isto é especialmente
verdade para o Irmão Charles, que escreveu de si mesmo a uma amiga, quase na
mesma linha que Teresa de Lisieux, na sua autobiografia : «Monge, vivendo
apenas para Deus, amando as almas com todo o ardor do meu coração em vista
d’Ele» [3].
O escritor Norman Manea recentemente afirmou que na
realidade somos todos igualmente o fruto da nossa bibliografia, e isto vale
também para o Irmão Charles e seu itinerário de leitor que se tornou escritor.
Quando Charles de Foucauld se converteu a Deus, sob
a sábia orientação do Abade Huvelin, sentiu espontaneamente a necessidade de se
tornar um religioso e o disse, com surpreendente clareza, em uma carta escrita
da Trapa, em 14 de agosto de 1901, a seu amigo Henri de Castries :
«Assim que acreditei que havia um Deus, compreendi
que não podia fazer outra coisa senão viver somente para Ele : a minha vocação
religiosa data da mesma hora que minha fé» [4].
Na lógica do Irmão Charles, é claro que se deve
buscar a forma mais perfeita de vida religiosa e, de acordo com a sensibilidade
espiritual da época e seu temperamento que o leva ao heroísmo, uma tal
aspiração à radicalidade e à perfeição se identifica com a austeridade :
«Eu desejava ser um religioso, viver somente para
Deus e fazer o que fosse mais perfeito, o que quer que isso fosse» [5].
Um retiro em Solesmes, seguido por outro em
Soligny, finalmente o levou ao mosteiro trapista : «Pareceu-me que nada me
apresentava esta vida melhor do que a Trapa» [6] [1]. As motivações são
claras : «Buscar uma vida conforme à vossa, onde eu possa compartilhar
completamente vossa abjeção, vossa pobreza, vosso humilde trabalho, vosso
isolamento, vossa obscuridade» [7].
No mosteiro, primeiro em Notre-Dame des Neiges, depois em Akbes, parece realmente que o Irmão Charles tenha aprendido a ler dois livros : as Escrituras e seu próprio coração. Em uma época em que, mesmo nos mosteiros, as devoções eram preferidas à lectio divina, o Irmão Charles aprende a se imergir na escuta e na interpretação das Escrituras, das quais ele tirará todos os dias, e até o último dia de sua existência terrena, luz para seu caminho, seguindo esta regra fundamental retomada pela Dei Verbum : «A grande regra para interpretar as palavras de Jesus são seus exemplos. Ele mesmo é o comentário de suas palavras» [8].
Muitos dos elementos fundamentais da sensibilidade
espiritual do Irmão Charles têm suas raízes na tradição monástica beneditina e,
muito especialmente, na escola cisterciense. A preferência absoluta pelos
mistérios da vida de Jesus, e a contemplação de sua encarnação como forma de
segui-lo, são fruto da escuta dos textos dos padres cistercienses que eram
lidos durante as vigílias e no refeitório. Muitos dos temas e ênfases que são
frequentemente apresentados como intuições originais do irmão Charles, na
realidade, fazem parte de uma tradição que o Irmão Marie-Albéric respirou
profundamente na Trapa e que ele, em seguida, expressou em escolhas
completamente pessoais. Assim ele escreveu, em 24 de abril de 1897, a Raymond
de Blic : «Eu deixei a Trapa depois de ter recebido a dispensa completa de meus
votos, para encontrar em outro tipo de vida o que eu havia buscado na Trapa sem
encontrá-lo lá». Em seguida, o Irmão Charles afirma : «Eu amo e estimo a Trapa»
[9]
Seria, portanto, muito interessante tentar encontrar
os paralelos entre as intuições do Irmão Charles em sua meditação sobre a vida
do Senhor Jesus - especialmente através das meditações dos Evangelhos em forma
«escrita» que ele impôs a si mesmo - e os comentários de monges cistercienses
como Bernardo de Claraval, Guerrico d’Igny, Isaac da Estrela, Guilherme de
Saint-Thierry, Baudouin de Ford... Este é um grande desafio, pois esta pesquisa
poderia conter muitas surpresas e talvez até conduzir a uma compreensão mais
profunda do Irmão Charles, como parte de uma tradição fiel, mas viva, da qual
ele tirou a força, a coragem e a serenidade das inovações que são exigidas dos
monges e das monjas de nosso tempo.
Em uma declaração recente, o Abade Geral dos
Trapistas nota que, ao longo do século passado, certas intuições profeticamente
percebidas pelo Irmão Charles se tornaram comuns aos monges de hoje :
«As comunidades estão se tornando menos
institucionais, vinculadas a relações pessoais mais do que formais, como vemos
em comunidades e mosteiros menores» [10].
Na linha da mais pura tradição cisterciense, o
sonho do Irmão Charles é redescobrir uma vida cristã na qual seja dada grande
importância a essa intimidade. Esta por sua vez, gera caridade e benevolência,
que culmina em «indulgência terna e compassiva para com os pecadores, da qual
tanto precisamos, sendo tão propensos à severidade para com os outros» [11].
A raiz distante desta caridade, porém, permanece uma atitude de intimidade
orante, uma paixão do desejo e da imitação, que, na linguagem da época, é descrita
como amor puro.
O Irmão Charles optou por se colocar no caminho dos
outros para poder encontrá-los, conhecê-los e amá-los. Ele busca um lugar
fronteiriço, muito antes de falarmos de «situações de fronteiras». Uma nota do
Irmão Charles é muito esclarecedora aqui :
«Quem ousaria dizer que a vida contemplativa é mais
perfeita do que a vida ativa ou vice-versa, já que Jesus conduziu ambas? Uma só
coisa é verdadeiramente perfeita : fazer a vontade de Deus» [12].
Certamente não é por acaso que Notre-Dame des Neiges
conserva hoje a memória do Beato Charles de Foucauld, como se ele nunca tivesse
deixado seu mosteiro ou como se tivesse voltado para lá depois de seu longo
itinerário. Teria ele procurado outra coisa que não fosse permanecer «sob a
guia do Evangelho» [13], como diz São Bento em sua Regra, colocando-se
na escola dos outros para aprender de todos a inesgotável arte do amor?’
[1] Carta a R. de Blic, 26 de março de 1908.
[2] Meditação sobre o Antigo Testamento, Salmo 104.
[3] Carta a H. de Castries, 14 de agosto de 1901.
[4] Carta a H. de Castries, 14 de agosto de 1901.
[5] Ibidem.
[6] Ibid.
[7] Carta a Louis de Foucauld, 12 de abril de 1897.
[8] Meditação sobre o Evangelho, 199, Mc 6,7.
[9] Carta a R. de Blic, 24 de abril de 1897.
[10] Relação de Dom Eamon Fitzgerald ao Capítulo Geral
da Ordem Cisterciense, de 14 de setembro de 2014, em Assis, Collectanea
Cisterciensia, 76 (2014) 4, p. 339-348.
[11] Ch. de Foucauld, Carta a Massignon, 15 de julho de
1915.
[12] Ch. de Foucauld, Med. sobre o Evangelho, 194,
vocação.
[13] São Bento, Regra, prólogo.
Fonte : *Artigo na íntegra
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