domingo, 31 de outubro de 2021

Um sínodo sobre o quê?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Tem sido uma dúvida recorrente nas redes sociais. Muitas pessoas, ‘instruídas’ por quem não sabe sequer como funciona o sínodo, têm feito análises mirabolantes sobre a assembleia. Como a moda agora é transformar qualquer tema do pontificado de Francisco em enredo digno de Apocalipse, cabe a nós, que acompanhamos essa realidade de perto, refutar as teses do youtuber católico de turno.

Por trás da ‘indignação’ em relação ao sínodo que está em curso, vemos o ódio gratuito a um pontífice que está à frente de projeto eclesial ousado, cuja bandeira é retornar à essência do cristianismo. E isso não agrada em nada aos clericalistas, sejam eles padres ou leigos.

Apegados ao modelo de igreja monárquica, não aceitam a visão eclesiológica do Concílio Vaticano II. É ‘pesado demais’, para eles, considerar que a instituição é ‘povo de Deus’, e não se restringe somente à sua hierarquia. Esquecem que, na igreja pré-conciliar que eles tanto incensam e evocam, fazer pouco caso das decisões do pontífice romano, através de discursos e ações, não passaria despercebido aos olhos do Santo Ofício. Mas do jeito que esse povo é, pode até ser que exista um culto à Inquisição, regado a ‘releituras’ da história. Nunca se sabe.

E não deixa de ser interessante - e até contraditório - o fenômeno. A descentralização do papado sempre fez parte do debate dos progressistas, mas parece que são justamente os fundamentalistas a la derecha que querem libertar o catolicismo do papado, na atualidade.

Se dermos uma volta pelos ‘centros da alta cultura católica’, principalmente no Brasil, a impressão é que o ultramontanismo papista ficou para trás. E a ‘questão religiosa’, semelhante à que foi posta nos tempos da proclamação da República, promove uma romanização das práticas. A diferença é que, desta vez, não é estritamente necessário contar o papa como promotor dessa empreitada. Os luteranos do século 16 perdem feio para os antipapistas da atualidade. São os adeptos do Roma a la carte. Romanos, sim. Com Roma, não exatamente.

De um lado, os pró-reformas, que acompanham os apelos do presente, junto com o romano pontífice e grande parte do colégio cardinalício; do outro, os ritualistas, também conhecidos como ‘católicos de confraria’, que criaram uma espécie de dress-code da fé, no qual sequer o papa ‘é digno’ de se encaixar.

Trocando em miúdos, o sínodo sobre a sinodalidade trata da própria Igreja. Há quem diga que é uma ‘assembleia conciliar’ justamente por isso. Como ocorreu no último concílio ecumênico da história, é hora de a Igreja Católica fazer as contas novamente, porque os desafios de hoje são outros. E não são todas as instituições nem todos os papas que estão dispostos a trilhar esse caminho.

Se observamos bem, é um sínodo que sequer trata de um tema específico, mas foca simplesmente na sinodalidade, uma instituição que é muito mais antiga do que imaginamos. O cristianismo oriental que o diga. Tanto para a ortodoxia quanto para o catolicismo oriental (ainda que em menor proporção, por causa da submissão a Roma), o sínodo é palco de decisões, não um órgão simplesmente consultivo, como observamos na igreja latina.

No Ocidente, por exemplo, havia sínodos diocesanos, cujos primeiros registros são datados do século 6. E até o bispo de Roma, antes da instauração do Conclave, no século 12, era eleito por aclamação popular, da mesma forma que outros bispos da cristandade.

A ideia de Francisco nem é repropor esse tipo de estrutura, mas de refletir como as dioceses e os próprios leigos poderão, de alguma maneira, participar mais ativamente das decisões, como já aconteceu no passado.

Os sínodos diocesanos poderão ser reativados em vista da pastoral, contemplando as realidades locais? Grupos de representantes das conferências episcopais serão convocados a Roma, para participar de consultas públicas? Mais mulheres ocuparão posições de destaque em outros lugares, não só em Roma?

Ainda não sabemos, na prática, quais serão as medidas propostas. Mas é certo que Francisco quer, sim, transformar a Igreja numa instituição que caminhe junto. E Roma, em primeiro lugar, seria a promotora dessa sinodalidade. Por isso, justamente, a reforma começa aqui. E o sínodo, por assim dizer, é uma extensão dessa reforma.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1547735/2021/10/um-sinodo-sobre-o-que/

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