Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo d0 Padre Adenildo Godoy Barbosa
‘Por que então a
liturgia cristã interessou-se pelos mortos também fora da missa? Por que a
Igreja dedicou um dia exclusivo à lembrança dos finados? Você acha válido rezar
pelos falecidos? Como você se prepara para viver o momento de sua morte? Por
que o ser humano preocupa-se tanto em marcar com sinais exteriores a morte de
pessoas queridas?
1. História
O Cristianismo nasceu embebido
pela vida, morte e ressurreição de Jesus, o Cristo Senhor. O ápice da vida do
filho de Deus foi sentir em sua carne a frieza da morte. Sem dúvida, ao doar
amorosamente sua vida na cruz, Jesus viveu em sua própria carne a experiência
da morte. Ele morreu realmente. Mas a Graça de Deus, confirmando a mensagem e o
testemunho de vida de Jesus, o ressuscitou dos mortos e garantiu assim, a todos
os fiéis que nele depositam suas esperanças, a possibilidade de transcender
também a fase finita da vida e alcançar a plenitude da personalidade e
potencialidades humanas, na realidade de fé que chamamos de Vida Eterna.
Desde muito cedo o Cristianismo
celebrou os fiéis que morreram unidos à sua comunidade de fé. Os mártires eram
venerados nos locais de seu martírio e as primeiras construções genuinamente
cristãs foram monumentos em homenagem a estes heróis da fé. Além disso, as
perseguições imperiais obrigavam os cristãos a refugiarem em catacumbas para
celebração dos exercícios litúrgicos. E as catacumbas nada mais eram que os
primeiros cemitérios cristãos.
Os mais antigos sacramentários
romanos atestam o uso de missas pelos defuntos. O costume de rezar pelos mortos
em celebrações específicas parece ter surgido pelo fato de que não era possível
realizar exéquias dos cristãos no momento da morte, tamanho o medo da
perseguição pagã. Assim, dias depois do fato, geralmente uma semana ou mesmo
trinta dias, a comunidade reunia-se para as devidas homenagens ao falecido e
aos familiares.
Nos mosteiros irlandeses, no
século VII, já encontramos rolos com os nomes de monges falecidos, que
circulavam entre as comunidades, numa rústica forma de comunicação orante entre
os religiosos. Para estes falecidos era sempre dedicado algum ofício religioso
solene. Dessa tradição surgiram as necrologias, lista de nomes lidas nos
ofícios e os obtuários, lembrando serviços fundados ou obras de misericórdia
dos defuntos em suas datas. Passou-se claramente das menções globais aos nomes
individuais.
Nos séculos IX e X, no auge do
período carolíngio, já é possível encontrar o costume de anotar nomes de
falecidos para oferecimento de missas, mas ainda mantém-se a vinculação com o
nome de vivos, que faziam suas ofertas generosas para a comunidade cristã. Os ‘libri
memoriales’ (Livros Memoriais) carolingianos continham de 15.000 a 40.000
nomes a serem lembrados. Durante as Eucaristias chegava-se a enumerar de 40 a
50 nomes por dia!
Mas foi em Cluny, o renomado
Mosteiro francês, que começou a surgir uma explicação da oração pelos mortos. À
Igreja Peregrina nos caminhos da história unia-se a Igreja Triunfante (os
santos e santas) e à igreja Padecente (aqueles que mesmo mortos ainda não
tinham alcançado a plenitude da Ressurreição). Esta união entre santos e
pecadores, chamada de comunhão dos santos, já fazia parte da tradição cristã e
foi teologicamente elaborada pelo mestre da escolástica, Santo Tomás de
Aquino, nos seguintes termos :
Assim como no corpo natural a
atividade de um membro se subordina ao bem estar de todo o corpo, também no
corpo espiritual que é a Igreja, acontece o mesmo. E porque todos os fiéis são
um só corpo, o bem de um comunica-se ao outro.
Tudo indica que foi no século X
que, a partir do mosteiro do Cluny, instituiu-se a comemoração dos mortos para
o dia 2 de novembro, em íntimo contato com a festa de todos os santos. A Festa
dos Mortos será rapidamente celebrada em todo mundo cristão. Trata-se hoje de
um dos feriados mais universais do nosso planeta.
2. Sentido da
celebração de Finados
No dia de Finados, não
festejamos a morte. Seria uma ignorância e uma contradição. Celebramos sim,
nossa fé na ressurreição e a esperança do encontro na morada que Jesus nos
preparou, no seio amoroso de Deus. A comemoração dos fiéis defuntos é uma
oportunidade ímpar para agradecer a Deus pela existência daqueles que nos
precederam e, de certa forma, participaram da construção de nossa própria
história.
O gesto mais comum em Finados é
a visita ao cemitério, a participação na Eucaristia e as devoções próprias de
cada cultura, como acender velas, oferecer flores e enfeitar os túmulos dos
falecidos. Em todos estes gestos antropologicamente enraizados no ser humano
transparece a consciência que temos de nossa finitude e da necessidade absoluta
de apego ao Divino para a manutenção da esperança em glorificação da
existência.
Acendemos velas para lembrar
que essa luz segue iluminando-nos, em nossos corações. Veneramos seus exemplos
e imitamos sua fé (Hb 13,7). Enfeitamos as sepulturas com flores, símbolo da
ressurreição. Nossos mortos são plantados como sementes, regadas com nossas
lágrimas, e florescem ressuscitados no jardim do Senhor.
Além disso, ao recordar a vida
de um ente querido, nós próprios deparamo-nos com a realidade da morte em nossa
vida e pesamos nossos comportamentos pessoais e sociais. A presença da
limitação e fraqueza da vida permite-nos ser mais humildes na consideração da
validade de nossa vida. Não há como ficar insensível diante da finitude da
carne humana!
3. Sentido Teológico
de Finados : a certeza da Ressurreição
Nossa fé cristã é a fé no
Ressuscitado. Esta certeza de fé elimina de nós toda e qualquer idéia de
renascimento ou reencarnação. Somos únicos desde a concepção, durante a vida e
após a morte. A razão de nossa fé na Ressurreição é a experiência radical de
Jesus. Ele foi Ressuscitado pelo Pai (At 2, 22s), numa atitude amorosa que
confirmou toda a obra realizada pelo homem de Nazaré em favor dos mais
oprimidos e marginalizados.
O fundamento teológico para a
nossa compreensão de fé em torno da vida que começa na morte está na
Ressurreição de Jesus Cristo. É São Paulo que diz : ‘Se Cristo não tivesse
ressuscitado, vã seria a nossa fé, e nós ainda estaríamos em nossos pecados’
(1Cor 15, 17).
Nós cremos na ressurreição como
um momento de transcedência de nossa realidade finita para uma realidade
infinita ao lado de Deus. Na Ressurreição nossa vida é transformada. Assim como
acontece com a semente que, ao ser lançada na terra, morre e desta morte nasce
a nova vida, cremos que também nós vamos ressuscitar e assumir uma nova vida.
Nós cremos que a nossa vida terrestre é uma preparação para a verdadeira e
definitiva vida. Temos uma única oportunidade de viver no mundo e nos preparar
para a eternidade.
O próprio Jesus viveu apenas
uma única vida humana, iniciada no momento de sua concepção no seio virginal de
Maria e consumada na cruz, quando exausto e sem forças, Jesus entrega sua vida
nas mãos do Pai (Jo 19,30). Mas, como já dissemos, Deus não permitiu ao Cristo
permanecer preso nas cadeias da morte, mas o fez receber vida nova,
ressuscitando-o e reafirmando assim o valor da vida justa sobre os poderes
nefastos de uma sociedade marcada pela cultura de morte.
Mas, Ele ressuscitou. O corpo
físico de Jesus foi transformado em um corpo glorioso, que não ocupa mais
espaço, não envelhece mais com o tempo e não morre mais. Este Cristo vivo e
ressuscitado está na Eucaristia, está nos sacrários de nossas igrejas e está
também na comunidade cristã, já que Ele disse : ‘Onde dois ou mais estiverem
reunidos em meu nome, eu estarei presente’ (Mt 18,20) ou então : ‘Eis
que eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos’ (Mt 28,
20). Nada pode nos separar do amor de Cristo.
Já a teologia de oração pelos
mortos alicerça-se na noção tradicional de purgatório, momento de expiação dos
erros passados e de contemplação da face gloriosa de Deus. A teologia atual não
aboliu, com se pensa, a noção de purgatório. Obviamente, a idéia de um fogo devorador
que aflige atemporalmente os homens e mulheres que falecem afastados de Deus
recebe hoje um tratamento mais aceitável. O purgatório seria a própria
percepção de não realização da missão confiada por Deus a cada um de nós. Ao
deparar-nos com a imensa distância entre o ideal sonhado por Deus e o real
vivido, o ser humano sofre por ter sido tão leniente. Imediatamente,
entretanto, contempla a glória de Deus e nela mergulha. Rezar pelos mortos
significa ajudá-los a tomar consciência de que estão afastados do ideal de
Deus.
4. Celebrando o dia de
Finados
As celebrações litúrgicas do
dia de hoje são comedidas e cercadas de um clima de saudade e tristeza. São
comuns as missas rezadas nos cemitérios, onde um ou outro grupo pastoral pode
estar presente para acolher as pessoas mais sensibilizadas.
Nas igrejas e capelas reze-se
pelos fiéis defuntos que participaram da história da comunidade, mas evite-se
enumerar nomes ou dar destaques a algum falecido. Mantenha a sobriedade dos
cantos e respeite-se o silêncio com marca da celebração.
Entretanto, evite-se o clima de
luto nas celebrações. Vale a pena recordar que a celebração de Finados marca a
esperança cristã na Ressurreição e deve ser iluminada por aquela alegria que
marca a fé cristã.
Para os celebrantes, atenção
nas homilias. O Mistério da Ressurreição deve ser o centro da reflexão,
aproveitando para refletir bem as palavras do Evangelho e esclarecendo o real
sentido da morte para o cristão, numa catequese que contemple toda a eliminação
de idéias estranhas tão espalhadas pela mentalidade do povo católico
brasileiro.’
Fonte : *Artigo
na íntegra https://comshalom.org/o-sentido-liturgico-do-dia-de-finados/
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