Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo d0 Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ
‘A Espiritualidade na sua
riqueza e complexidade convive igualmente com uma ambiguidade inata. Quando
pedimos a alguém para falar sobre sua vida ‘espiritual’, o que esperamos
ouvir? Seguramente algo sobre sua oração ou algum aspecto concreto de sua vida
na Igreja. Mas será que nossa vida ‘espiritual’ se circunscreve somente
a isso?
Quando ouvimos falar de ‘vida
espiritual’, quase automaticamente nossos olhos (e coração) se movem para o
termo ‘espiritual’, que qualifica a vida aqui. Talvez seja esse o erro mais
comum, que acaba por desviar a nossa atenção do que vem primeiro e que jamais
deverá ser relegada a uma posição secundária : estamos falando da VIDA! Vida no
Espírito! Se queremos compreender o que se passa na nossa vida espiritual, é
preciso partir sempre da vida como tal!
Quem me abriu os olhos para
essa realidade foi Ives Raguin, no seu livro ‘Atenção ao Mistério’.
Deixemo-nos provocar por suas sugestivas reflexões.
Vida interior, vida
espiritual e relação com Deus
Ao ouvir a expressão ‘experiência
mística’ sentimos nossos pés se desprenderem do chão da realidade, rumo a
cumes e êxtases. Mas será isso mesmo? Não deixa de ser curioso que sejam os
místicos os primeiros a falarem que Deus deve ser experimentado na Vida!
Se queremos falar de ‘experiência’
e de ‘mística’, temos que forçosamente partir de algo que vivemos, que
experimentamos, que faz parte da nossa vida. Na espiritualidade, trata-se
sempre da nossa relação com Deus. Ou, se preferimos, como Deus está presente na
nossa vida, como captamos, sentimos, experimentamos essa Presença e como
reagimos diante dela.
Grandes místicos como Teresa de
Ávila, João da Cruz, Inácio de Loyola acenaram com suas vidas para a
necessidade de nos voltarmos para o mais profundo de nós. Os termos ‘vida
interior’ e ‘vida espiritual’ significam praticamente a mesma coisa.
Ainda devedores ao dualismo grego, tendemos a seguir opondo ‘carne/espírito’
como compartimentos estanques incomunicáveis, perdendo de vista a unidade da
pessoa humana. Vem em nosso socorro a antropologia tripartida de Paulo, onde
entra também o ‘espírito’ : ‘E o mesmo Deus da paz vos santifique em
tudo; e todo o vosso espírito, alma e corpo sejam plenamente conservados
irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo’ (1 Ts 5,23).
Aí compreenderemos : falar de
vida ‘espiritual’ implica uma atenção às coisas do Espírito,
diferenciadas aqui do carnal e do sensível. Convém, todavia, não confundir vida
espiritual e vida intelectual. Há muita gente que coleciona diplomas e tem um
currículo invejável, mas no que toca à vida espiritual é bastante frágil. Por
outra parte, conhecemos muitas pessoas que, na sua simplicidade, revelam ter
uma intensa e profunda vivência espiritual.
Falar de ‘vida espiritual’
implica sempre uma atenção à nossa relação com o Absoluto. Todos os seres
humanos temos uma relação com o Transcendente e somente a partir dela nos
compreendemos e somos. No cristão, essa relação é ainda mais íntima e,
portanto, mais pessoal. O cristão precisa ‘viver’ essa relação. Viver
essa relação supõe uma tomada de consciência, e em seguida uma orientação de
todas as atividades humanas para a compreensão e a ‘realização’ da
relação com Deus.
Ao considerarmos a nossa ‘vida
espiritual’, é importante partir do primeiro termo : da ‘vida’!
Temos que partir da nossa experiência vivida, experimentada. Não podemos nos
limitar a uma mera reflexão. Tampouco a uma simples atenção curiosa. É preciso ‘viver’
a realidade da vida divina em nós… Ora, isso implica a pessoa toda :
inteligência, sensibilidade, vontade, liberdade etc. Mais ainda : nossa
existência é marcada (positiva ou negativamente) por muitas e muitas pessoas,
que dão sentido, tempero, gosto ao que vivemos. Pessoas cuja presença ou
ausência mudam tudo. Não podemos relegá-las a um plano inferior ou esquecê-las
ao considerar nossa vida espiritual. Elas são, em grande parte, responsáveis
pela nossa saúde interior!
No contexto tremendamente
especializado em que vivemos, temos que cuidar para que a vida espiritual não
seja uma especialização a mais, que alguns poucos estudiosos da espiritualidade
consideram (e o restante da humanidade ignora), mas que todos possam assumir a
responsabilidade de cuidar da sua vida espiritual e da dos outros (e da
Igreja).
Falar de ‘vida espiritual’
e não ‘espiritualidade’ já indica que estamos considerando a pessoa nas
suas mais diversas relações e atividades, em posse de todas as suas potências e
qualidades humanas. Bem sabemos como a nossa relação com Deus toca de forma
determinante a nossa vida em todas as suas expressões.
A pergunta que temos que nos fazer constantemente é : como anda a saúde da
nossa vida espiritual. Ela existe? Como estamos cuidando dela? E o que podemos
fazer para elevar o nível da saúde espiritual de nossa comunidade de fé e da
Igreja como um todo? Como cuidar dos mais fragilizados?
Falamos grego ou
hebraico?
Grande parte das confusões a
respeito da espiritualidade seriam equacionadas respondendo à questão acima :
ao falar de espiritualidade/espírito, estamos falando em que língua? Jean
Daniélou apontava para esse perigo, quando afirmava : ‘Quando falamos
que Deus é Espírito, que queremos dizer? Falamos grego ou hebraico? Se falamos
grego, queremos dizer que Deus é imaterial etc. Se falamos hebraico, dizemos
então que Deus é um furacão, uma tempestade, uma força irresistível. Daí todas
as ambiguidades quando falamos de espiritualidade. Espiritualidade consiste em
nos tornarmos imateriais ou em sermos animados pelo Espírito?’(1).
O termo ‘espiritual’
deve ser tomado no sentido de ‘relativo a Deus’. O Espírito, em absoluto,
é Deus. A vida é chamada de ‘espiritual’ por ser orientada para Deus.
Ela será, portanto, no seu âmago, uma atenção ao Mistério da Presença da vida
divina em nós, uma realização crescente da nossa relação com Deus. Dessa
atitude fundamental irá decorrer todas as práticas que permitirão àquela ‘vida
interior’ se desenvolver : esforços de conhecimento pelo estudo do
Evangelho e da doutrina cristã, esforços de conformidade a Cristo, de
contemplação, de união… Assim se explica a elaboração, ao longo dos tempos, de
teorias e técnicas da vida espiritual, por todas as religiões (2).
Nossa vida é uma
vida orientada para Deus? Pergunta provocadora e não fácil de responder. Como a
desenvolvemos?
Vida interior sem
relação explícita a Deus?
Seria possível algo assim? Ives
Raguin faz notar que existem muitos métodos de vida interior e de meditação que
nada tem de religioso, isso é, não possuem nenhuma referência objetiva a Deus.
Cada vez mais e mais pessoas, no mundo secularizado em que vivemos, os utiliza
e com resultados muito positivos. A finalidade desses métodos é oferecer meios
para a pessoa poder se concentrar, harmonizar suas energias, pacificar-se
interiormente. Tais métodos de controle mental e tomada de consciência foram
particularmente desenvolvidos na Índia pela yoga e na China e no Japão pelo
zen.
O confucionismo também
desenvolveu certos métodos de cultura pessoal que nada tem a ver com uma busca
religiosa. O taoísmo, da mesma forma, desenvolveu métodos muito elaborados cujo
objetivo é alimentar as energias vitais que trazemos no nosso interior. Hoje
encontramos muitas oficinas de meditação transcendental, por exemplo.
Tais métodos proporcionam uma
tomada de consciência prazerosa da riqueza oculta do ser humano, produzindo
assim sentimentos de alegria, de paz, de plenitude, por vezes tão grandes que
nada mais parece desejado ou desejável. Contudo, essa experiência é sempre, de
modo essencial, limitada ao meu ser. Seja qual for o sentimento de plenitude
percebido no mais profundo de meu ser, não consigo explicar a mim mesmo o que
sou nem de onde venho. A plenitude que vislumbro deve acabar por me parecer
relativa em vista de outra relação que, essa sim, será plena, absoluta.
Ao me adentrar no mais íntimo
da minha unidade e de minha identidade, perceberei a presença de um ‘Outro’
em quem nada é relativo. Ao pretender dar passos por um caminho humano,
subitamente me encontrarei trilhando também uma estrada divina e, aí sim, minha
experiência se tornará genuinamente religiosa.’
Notas :
[1] Citado em Y. CONGAR, Credo nello Spirito Santo, I,
Queriniana, Brescia 1982,18.
[2] Yves RAGUIN, Atenção ao Mistério. Um aprofundamento na
vida espiritual. Paulinas, SP 1981, 12-16.
Fonte : *Artigo
na íntegra https://domtotal.com/noticia/1550063/2021/11/atentos-a-vida-no-espirito/
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