Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de César Thiago do Carmo Alves,
teólogo
‘‘A Palavra se fez carne e
habitou entre nós’ (Jo 1,14). Esse versículo do prólogo do evangelho de
João expressa que Deus assume nossa humanidade para poder salvá-la. Nesse
sentido, Tertuliano, escritor eclesiástico de Cartago morto em 260, cunhou a
frase ‘Caro cardo salutis’ (A carne é o eixo da salvação). Assim,
somente fazendo uma profunda experiência da humanidade é que se pode contemplar
a divindade de Deus e ao mesmo tempo perceber o dom salvífico. Aqui, se impõe
uma pergunta no atual cenário tendo presente a dimensão da religiosidade : E
quando a religiosidade impede a humanidade da pessoa?
Uma das respostas que pode se
ter para essa pergunta é o fanatismo religioso como causa.
O fanatismo religioso tem se
tornado cada vez mais explícito no cenário contemporâneo. Nota-se um apelo
excessivo a Deus por meio da religião. Na verdade, o que se cultua não é Deus
mesmo, mas sim a religião. Desse modo, pode-se perceber a força e influência
que ela exerce sobre a vida das pessoas. Muitas são capazes de se desfazerem de
bens necessários para sobrevivência simplesmente pelo fato de que o líder
religioso aponta isso como o caminho para a prosperidade. Além da ideia da prosperidade,
existiria algo que vincula a pessoa fiel de forma fanática à religião que está
para além da prosperidade? Essa é a pergunta fundamental que se impõe para se
entender o fanatismo que se descortina cada vez mais forte em nosso meio
eclesial. Em busca da resposta para a pergunta que se impõe, faz-se necessário
considerar dois aspectos. São eles : 1) psicológico; 2) sociológico.
No aspecto psicológico, o
fanático religioso tende a fazer da religião um fetiche. Atribui-se a elementos
da religião forças mágicas. No âmbito católico isso é perceptível. Ultimamente, no Brasil, tem se voltado com muita força entre
pessoas jovens, que não viveram o pré-Vaticano II, a ideia da missa em latim
como a única e verdadeira forma de celebrar. A língua latina e o rito da
celebração são envoltos numa aura que descredencia a beleza da reforma
litúrgica postulada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Nega-se até mesmo a
obra graciosa do Espírito Santo no Vaticano II. Os jovens ministros ordenados
que estão nessa linha, fazem dos paramentos seu fetiche. Busca-se nos armários
das sacristias, paramentos utilizados anteriormente à reforma da liturgia. Isso
sem contar o uso da batina. O que está em jogo aqui não são as roupas em si ou
determinada forma de celebração. O que se questiona é o que está por trás de
tudo isso. Numa rápida conversa com alguém que se insere nesse contexto
religioso pode-se perceber que se fala muito de Igreja e sua estrutura, pouco
de Deus e quase nada de comunidade e comprometimento com os mais pobres. Desse
modo, a religião está acima do próprio Evangelho. Além disso, não se admite
questionamentos. Afinal, o errado é sempre quem vai contra esses princípios. Ir
contra eles é ser apóstata, herege! A dimensão da humanização simplesmente fica
de escanteio.
Esse exemplo
católico, que é possível ser constatado tanto em alguma parte do clero como do
laicato, indica que o fanático religioso não está preocupado com Deus mesmo e
as causas que o Evangelho propõe. O que está no imaginário são as fantasias.
Essas fantasias do sagrado, por vezes, estão vinculadas à ideia de poder e de
uma pseudo-segurança institucional. Assim, cria-se um deus segundo à nossa
imagem e semelhança para satisfazer o prazer do fetiche. Uma religiosidade,
literalmente, idolátrica. A fantasia
religiosa levada ao extremo causa doença psíquica. Ou, ainda, a fantasia
religiosa pode ser apenas a ponta do iceberg de algo mais
sério, psicologicamente falando, que a pessoa trás consigo e que precisa ser
trabalhada e que no caso do clero ou foi negligenciada durante o processo
formativo ou o candidato à época conseguiu camuflar muito bem. Nesse sentido, é
urgente a procura de um psicólogo para ser ajudada. O problema é que a pessoa
fanática nunca admite essa doença. É como alguém viciado em alguma droga que
afirma não estar no vício.
Do ponto de vista sociológico,
o coletivo tende a influenciar no particular. As mídias católicas têm
colaborado muito nesse campo. Ao exibirem
programações com líderes religiosos profundamente fundamentalistas, as pessoas,
consumidoras daqueles programas, vão sendo moldadas naquela perspectiva. Eles
são tidos como gurus. São inquestionáveis. Suas palavras são palavras de
salvação. Tudo o que vem desses líderes deve ser aplicado. Curiosamente, como
no caso psicológico, uma vez que ambos os aspectos estão correlacionados, essas
lideranças falam muito de instituição, pouco de Deus e quase nunca de
comprometimento com os pobres e com a comunidade. O problema é que vão se
formando legiões de seguidores que desejam impor determinadas visões que estão
no lado contrário à proposta de Jesus. Assim, tem-se uma religiosidade de
autorreferencialidade.
Não se pode deixar de
considerar que esse fanatismo tem repercussões na vida pública. Em nome de um
deus, de uma igreja e de uma fé busca-se impor aquilo que se acredita para toda
a sociedade. Desse modo, o que vai contrário ao que se professa como fé, não pode
ser aceito pelo Estado. Assim, o fanatismo religioso tende a minar o Estado
laico. Usa-se o bordão : ‘o Estado é laico, mas o povo não’. Por um
lado, essa frase tem sua razão. O povo brasileiro em sua maioria é religioso.
No entanto, nem todos acreditam da mesma forma. Esse bordão tem servido para
promover a discriminação e o ódio e frear acesso a direitos para as minorias
sociais. Enfim, uma religiosidade que desumaniza e que não consegue se fazer
próximo de quem sofre.
Uma palavra de esperança. Mesmo
em meio ao fanatismo e desumanização religiosos, existem pessoas sérias nas
igrejas, comprometidas com o reinado de Deus proposto por Jesus. Não estão
pautadas no fetiche que as prendem cegamente à religião e numa religiosidade
que enclausura. Muito pelo contrário. São pessoas críticas a ela quando esta
não está em consonância com o Evangelho. O Papa Francisco tem demonstrado o que
significa ler o mundo através das lentes da Palavra de Deus e não por meio de
fundamentalismos ou verdades que se tornaram caducas pelo fato de serem
relativas. Desse modo, ele revela que a única verdade absoluta é Deus revelado
por Jesus Cristo e as outras todas são passíveis de serem questionadas. Sinal
de saúde religiosa e, por isso, de uma vivência humanizadora da religião.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1544621/2021/10/religiosidade-fanatismo-e-humanizacao/
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