Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo da Irmã Benjamine Kimala Nanga,
Missionária Comboniana
‘O meu trabalho principal como
missionária é colaborar com a Red Kawsay da Conferência de Religiosos do Peru,
uma rede de vida consagrada que começou em 2010 e cujo principal objetivo é
lutar contra o tráfico e a exploração de seres humanos. «Kawsay» é um termo
quéchua que significa «viver». A Palavra de Deus que inspira o nosso
compromisso cristão é o texto evangélico de João (10,10), onde Jesus diz : «Vim
para que eles possam ter vida, e vida em abundância.» A rede é constituída
por mais de 38 congregações religiosas e alguns padres diocesanos.
Eu e três irmãs de outras
congregações acompanhamos um grupo de mulheres e menores de Riveras de
Cajamarquilla, um bairro do município de San Juan de Lurigancho, na periferia
de Lima, que sofreu muito por causa dos deslizamentos de terra. O objetivo do
nosso trabalho é a prevenção, sensibilização e formação em relação ao tráfico
de pessoas. Fazemo-lo por meio de diversos cursos de capacitação, que visam
fortalecer as mulheres, nomeadamente reforçando a auto-estima das menores e
promovendo uma cultura de prevenção e cuidado contra os abusos sexuais.
A minha principal atividade é
realizar cursos de formação para professores, administradores, gestores,
assistentes, pessoal de apoio, autoridades (polícia, fiscais e pessoal de
centros de admissão de menores), catequistas e pais. Fiz um curso de formação
ministrado pelo Ministério do Interior do Peru; isso permitiu-me conhecer as
leis e falar com fundamento, e não apenas com a experiência.
O sofrimento das
vítimas
Conheci diferentes realidades no Peru e contactei muitos jovens que partilharam a sua situação pessoal : falta de trabalho, dificuldade em estudar, situação familiar complicada, etc. São essas situações que facilitam o tráfico humano, um problema de dimensões cada vez maiores. Esta forma de escravidão moderna realiza-se com diferentes propósitos e afeta, sobretudo, as pessoas mais vulneráveis. Em muitos ambientes, a maioria das vítimas são jovens e, em particular, raparigas com menos de 18 anos.
Um dos casos que mais me
impressionou foi o de uma rapariga de 17 anos, originária de uma aldeia da
selva peruana. No final da escola secundária foi para a cidade para se preparar
para o exame de acesso à universidade. Não passou, pois tinha um nível de
estudos mais baixo do que os estudantes da cidade. Para permanecer na cidade,
as necessidades foram-se acumulando : estudo, renda do quarto, alimentação...
Sem querer, caiu na exploração sexual.
Foi contratada para trabalhar
num cibercafé, um local que fornecia serviços de Internet. Um dia, quando lhe
liguei, ela disse-me calmamente : «Irmã, podes ligar-me mais tarde?» Ao
ouvi-la responder dessa forma, pensei que alguma coisa não estava bem. Dias
depois, liguei-lhe novamente. Ela contou-me que já não trabalhava no cibercafé
porque tinha sido obrigada a assinar um contrato por um mês para prestar
serviços sexuais a homens. Ouvi-a sem a julgar. Com o problema acrescido da pandemia,
não pode continuar e regressou à sua aldeia.
As distâncias são um dos
principais problemas que enfrentamos, pois muitos dos nossos destinatários
(jovens e professores) vivem em áreas muito remotas e de difícil acesso, o que
dificulta a continuidade. Outra dificuldade é que, em muitos casos, as pessoas
não sabem bem o que significa a expressão «tráfico humano». Muitos ficam
confusos e pensam que tem que ver com «tratar bem as pessoas».
Ignoram que o tráfico de seres
humanos é uma prática que viola os direitos humanos fundamentais. Um crime que
não distingue fronteiras e que tem cada vez mais vítimas no Peru : há
menores e adultos que são raptados, coagidos, detidos e reduzidos a vários
tipos de exploração sexual; forçados a mendigar nas ruas, onde vivem em
condições sub-humanas; ou sofrem com a remoção ilegal dos seus órgãos.
Este é um grande problema e tem muitas facetas. Os mais afetados são as
crianças e adolescentes.
Tráfico de pessoas em
tempo de pandemia
Por causa da pandemia, este ano
a situação é muito difícil também para as mulheres, por isso ajudamo-las com
produtos alimentares e de higiene básicos, e aproveitamos a oportunidade para
sensibilizar e protegê-las da covid-19 e contra o tráfico de seres humanos.
Noutras paróquias criámos as chamadas «ollas comunes» [panelas comuns] :
compramos os alimentos e as mães, organizadas em grupos, revezam-se para
cozinhar e distribuir a comida de acordo com o número de pessoas em cada
família.
Embora as fronteiras estivessem
fechadas devido à covid-19, o tráfico de seres humanos aumentou.
Os traficantes usam outras formas para continuar a atrair e enganar potenciais
vítimas, principalmente através da Internet e das redes sociais. Basta pensar
em qualquer jovem que perdeu o emprego durante a pandemia e ainda está desempregado,
e se alguém lhe oferecer uma oportunidade de emprego no estrangeiro,
dizendo-lhe : «Quando a pandemia acabar e as fronteiras abrirem, convido-te
para ires a esse país... ou podes ir para os Estados Unidos ou para a Europa,
onde podes trabalhar e estudar ao mesmo tempo.» Aquele jovem vai acreditar,
pensando que essa oferta é verdadeira.
Por impossibilidade de nos
deslocarmos no país devido à pandemia, oferecemos cursos de formação para
jovens e professores por videoconferência. Informamos sobre as estratégias que
os traficantes usam para convencer as pessoas, alertamos para o perigo que é
dar informação pessoal ao primeiro que encontram e de aceitar desconhecidos nas
redes sociais. Que investiguem e descubram primeiro se será verdade quando
recebem propostas de trabalho. Na ausência de aulas presenciais, difundimos
vídeos em que falamos de tráfico, das suas causas e consequências físicas e
psicológicas com o objetivo de prevenir este flagelo.
Graças ao nosso trabalho, temos
visto resultados e as pessoas começaram a reportar mais frequentemente o
tráfico. Não há muito tempo, uma jovem disse-me : «Irmã, ontem à noite vi
uma oferta de emprego na Internet. E como nos tinhas falado disto,
perguntei-lhe se era verdade. Depois de dois dias, a informação tinha desaparecido.
Era um anúncio falso.»
Nestes anos também aprendi a
relativizar muitas questões específicas da minha cultura. No meu país, o Chade,
falar de sexo é tabu, mas aqui tenho de falar claramente com jovens que chamam
as coisas pelo seu nome, sem complexos, mas com respeito. No início não foi
fácil. Também vejo que é necessário adaptar a nossa linguagem ao contexto onde
trabalhamos.
Aqui a vida é muito simples,
somos muito próximas das pessoas e trabalhamos com elas. É uma população
vulnerável que precisa de se envolver na procura de soluções, pois só assim
podem avançar. Quando termino um curso com jovens, pergunto-lhes : «O que
farias? Que compromisso assumes para ser um agente multiplicador desta
formação?» Às vezes dizem que querem fazer alguma coisa, mas não sabem, por
isso digo-lhes que ponham as ideias na mesa e falem sobre o tema. Muitos grupos
ligam-me para me falar das atividades que estão a fazer. Tudo isso me encoraja
e ajuda-me a continuar a trabalhar, porque esse era o sonho de São Daniel Comboni
: formar líderes que gerem a mudança, formar a Igreja local.’
Fonte : *Artigo
na íntegra https://www.combonianos.pt/alem-mar/actualidade/6/602/trafico-de-pessoas-a-outra-pandemia/
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