sexta-feira, 30 de abril de 2021

A voz da Palavra: um breve ensaio sobre a sacramentalidade da voz

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Daniel Reis


‘Concorde ao princípio da Encarnação, onde Deus se fez acessível à nossa humanidade para nos salvar, o escopo de todo e qualquer sacramento é comunicar-nos essa salvação por Ele oferecida através de sinais sensíveis à nossa condição humana. Um desses sinais sacramentais, componente da estrutura simbólico-ritual da Liturgia, é a voz.

A voz é o elemento sensível que embala a Palavra de Deus proclamada, cantada e rezada. Como som que é, toda voz aspira a tornar-se palavra, a ganhar forma e sentido, contribuindo ou prejudicando para a manifestação do conteúdo da fala ou do significado das palavras. Como afirmava Santo Agostinho em um de seus sermões : ‘Suprime a palavra; o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração.’ (Sermo 293).

Especialmente para a fé cristã, a voz deve estar sempre a serviço da Palavra divina e, com ela, em perfeita simbiose, a fim de ultrapassar seu caráter informativo e alcançar o seu condão performativo, ou seja, sua força transformadora, animadora, libertadora e salvadora. Com o auxílio da voz, pode-se potencializar a eficácia sacramental da proclamação da Palavra de Deus, para que ela seja, efetivamente, Palavra da Salvação.

Nesse sentido, voltando ao sermão do bispo de Hipona, encontramos : ‘O som da voz te faz entender a palavra; e quando te fez entendê-la, esse som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece em teu coração’. Assim, no âmbito pastoral-ministerial, deve-se dar a máxima importância aos gêneros literários da Sagrada Escritura, bem como aos gêneros musicais e oracionais (suplicante, laudatório, penitencial, etc.), para que através de um adequado revestimento vocal das leituras, da música e das orações, as vozes contribuam para uma fecunda comunicação da Palavra à assembleia litúrgica, fazendo com que, mesmo depois de passada a voz, permaneça gravada no coração do ouvinte a Palavra que não passa (cf. Mt 24,35).

A responsabilidade da qualidade comunicacional da Palavra pela voz não recai somente sobre o aspecto vocal, uma vez que dependerá também de uma boa e dócil acolhida por parte dos interlocutores. E aqui reside uma grande dificuldade : o Povo de Deus, de ontem e de hoje, ‘é um povo de cabeça dura’ (Ex 32,9), de ‘dura cerviz e incircuncisos de coração e ouvido’ (At 7,51). Por isso o tema da ‘escuta’ nas Sagradas Escrituras é frequente, seja para denunciar a ‘surdez’, seja para exaltar a audição atenta.

No Monte Sinai, Deus instrui Moisés : ‘Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos.’ (Ex 19,5). Assim, por diversas vezes, Moisés, a mando do Senhor, dirige-se ao povo clamando : ‘Escuta ('Shemá'), ó Israel, as normas que eu hoje proclamo aos vossos ouvidos!’ (Dt 5,1. 6,3. 4,1). O profeta Jeremias se revolta com os ‘ouvidos fechados’ do povo, dizendo : ‘A quem falarei, para que ouça? Eis que seus ouvidos estão incircuncisos e não podem ouvir!’ (Jr 6,10). Por outro lado, o profeta Samuel, na narrativa de sua vocação, responde confiante : ‘Fala, Senhor, que o teu servo te escuta.’ (1Sm 3,10). Neemias, narrando uma autêntica Liturgia da Palavra em seu tempo, detalha a atitude da assembleia ali formada : ‘[...] Então o sacerdote Esdras leu o livro da Lei de Moisés desde a aurora até o meio-dia, na presença dos homens, das mulheres e dos que tinham o uso da razão. E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei.’ (Ne 8,3).

Nos evangelhos, a temática também está ‘na boca’ de Jesus. Quando avisado da chegada de sua família, responde a seus discípulos : ‘Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática!’ (Lc 8,21). Anunciando as bem-aventuranças, apresenta a maior delas : ‘Felizes, antes, os que ouvem a Palavra de Deus e a observam.’ (Lc 11,28). Sobre a maior prudência humana, diz : ‘Todo aquele que ouve as minhas palavras e as põe em prática são como o homem prudente que constrói sua casa sobre a rocha.’ (Mt 7, 24). Sobre nossa pertença e filiação a Deus, Jesus exclama : ‘Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus.’ (Jo 8,47). Temos também o que parece ser um bordão utilizado por Jesus : ‘Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!’ (Mc 4,23; Mt 11,15).

Ainda no Novo Testamento, encontramos no episódio da Transfiguração a voz do Pai que sai da nuvem mandando ouvir o Filho muito amado (cf. Mc 9,7). Também Paulo, em sua carta aos romanos, onde assevera : ‘A fé vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a Palavra de Cristo.’ (Rm 10,17).

O lugar por excelência onde escutamos a voz de Deus, na Palavra que é Cristo, falada sob o fôlego do Espírito, é a Liturgia. Assim afirmou o papa Bento XVI : ‘Considerando a Igreja como 'casa da Palavra', deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia Sagrada. Esta constitui, efetivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida : fala hoje ao seu povo, que escuta e responde.’ (Verbum Domini, nº 52).

A Liturgia, assim, é o especial e primeiro locus theologicus, porque nela escutamos, sacramentalmente, o próprio Cristo se dirigir a nós, ‘pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura’, bem como ‘quando a Igreja reza e canta’ (Sacrosanctum Concilium, nº 7). É nela que podemos e devemos escancarar os ouvidos do coração para escutarmos a voz do nosso amado (cf. Ct 2,8), a voz do nosso Pastor (cf, Jo 10,3-4), para que a Palavra se faça carne em nós, e assim possamos anunciá-la ao mundo, reverberando nele o amor do Verbo.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1513321/2021/04/a-voz-da-palavra-um-breve-ensaio-sobre-a-sacramentalidade-da-voz/ 

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Como o papa escolhe os bispos: critérios, métodos, orientações

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo da Vatican News

 

‘O critério não é a busca da perfeição, de ‘santos’ inéditos, mas de homens certamente em posse de virtudes humanas e espirituais, antes de tudo a prudência, que não significa ‘reticência ou timidez’, mas ‘equilíbrio entre ação e reflexão no exercício de uma responsabilidade que requer muito comprometimento e coragem’. O cardeal Marc Ouellet traça claramente o tipo de perfil de um candidato ao ministério episcopal. A Congregação vaticana, guiada por ele há muitos anos, tem esta responsabilidade – que exerce de acordo com normas e praxes bem definidas – cujo resultado é o de ajudar o papa a escolher os pastores aos quais as comunidades eclesiais do mundo serão confiadas. Uma tarefa, explica, realizada de forma colegial e ‘com espírito de fé e não de cálculo’.

Para descrever a grande responsabilidade que cabe ao dicastério chamado a escolher os sucessores dos apóstolos, o papa Francisco usou uma forte expressão : ‘Esta Congregação existe para garantir que o nome daquele que for escolhido tenha sido, antes de tudo, pronunciado pelo Senhor’. Como se pode ser fiel a uma tarefa tão alta e exigente?

A tarefa que a Igreja confia a este dicastério é a de ajudar o santo padre a decidir. Nosso discernimento, portanto, é um discernimento prévio. No que diz respeito a esta ‘primeira etapa’, posso resumir este grande trabalho em três verbos : rezar, consultar, verificar. Rezar : a oração como primeira e última ação, como ato inicial e final de confiar nossas intenções ao Pai celeste; não é por acaso que no centro dos escritórios da Congregação está a Capela com o Santíssimo Sacramento. Toda vez que caminhamos pelos corredores, nos encontramos diante desta misteriosa Presença à qual toda ação deve ser referida. Consultar : a fase preparatória que estamos tratando atinge seu auge após um intenso trabalho utilizando o método sinodal : consultas com o povo de Deus, os Núncios, os Membros da Assembleia Plenária; tudo isso chega à mesa do papa já destilado. Verificar : isto é, tentar alcançar a maior certeza possível de que a pessoa identificada tem as características exigidas.

Por trás de cada nomeação episcopal há um trabalho de discernimento por parte da Congregação, mas também de consulta e envolvimento das nunciaturas apostólicas e das Igrejas locais. O senhor pode nos explicar como isso é feito e que uso de recursos envolve em relação ao balanço de sua missão? 

A identificação e o estudo de um candidato são o fruto de uma ação conjunta entre vários pontos. A cada três anos, é compilada pelos bispos metropolitanos uma lista de promovendis, ou seja, uma lista de presbíteros que poderiam ser adequados ao ofício episcopal, de acordo com as indicações dos bispos da Metropolia. A Nunciatura avalia estas candidaturas através de um processo de consulta com o povo de Deus, que tem a característica de máxima confidencialidade. No processo de consulta, solicita-se aos respondentes uma estrita confidencialidade a fim de garantir a veracidade das informações e sobretudo para proteger a reputação da pessoa que está sendo estudada. Uma vez identificados os melhores perfis para atender às necessidades do momento, as informações são transmitidas à Santa Sé. A Santa Sé, através da Congregação para os Bispos, considera as candidaturas à luz de critérios gerais e, com a ajuda de uma Assembleia de membros designados pelo santo padre, atualmente 23 cardeais e bispos de todo o mundo, faz a avaliação final que será entregue ao papa para sua decisão final.

Não há o risco de que possa pesar no processo de seleção dos prelados a afiliação ou condicionamento de uma natureza particular? Como isso pode ser evitado?

Como em todas as coisas humanas podem ser encontrados nos informantes a inveja e interesses pessoais. Para evitar isso, deveria ser cultivado no povo de Deus e na formação dos sacerdotes um espírito de desapego. A Igreja não precisa de ‘carreiristas sociais’, pessoas que buscam os primeiros lugares, mas homens que sinceramente querem servir seus irmãos e mostrar-lhes o caminho da fé e da conversão.

No perfil pastoral de um bispo contam mais as qualidades humanas, as virtudes espirituais ou a capacidade de governar uma diocese?

A Congregação para os Bispos, ao contrário da Congregação para os Santos, trata do perfil pastoral dos candidatos que ainda não são perfeitos, mas dos homens no caminho da perfeição. Num padre a ser proposto ao episcopado certamente contam as virtudes teologais e cardeais, as chamadas virtudes humanas principais, mas entre todas, a mais importante para este ofício é a prudência. Prudência não deve ser entendida como reticência ou timidez, mas como um equilíbrio entre ação e reflexão no exercício de uma responsabilidade que requer muito comprometimento e coragem.

A personalidade e a sensibilidade dos vários Pontífices tiveram alguma influência sobre os critérios de escolha?

A sensibilidade de um pontificado certamente tem uma influência notável sobre as escolhas. Cada papa recebe do Espírito Santo uma ‘visão’ particular sobre os problemas da Igreja e as suas prioridades. Os que colaboram com o papa são chamados a entrar na perspectiva do Primeiro Pastor com espírito de fé e não de cálculo.

As visitas ad limina que o episcopado do mundo inteiro faz a cada cinco anos são um importante momento de partilha entre as Igrejas locais, o papa e a Cúria Romana. Como podem ser valorizadas para que se tornem também uma ocasião de conhecimento e enriquecimento para os fiéis leigos e as comunidades paroquiais?

As visitas ad limina são um momento de sinodalidade concreta que os episcopados do mundo inteiro vivem com o papa e os dicastérios que auxiliam seu trabalho. As ‘apresentações’ que as Conferências Episcopais fazem de seus territórios compõem um mosaico fascinante no qual se pode ver o funcionamento de Deus em todas as latitudes. Cada bispo individualmente deveria ter escutado seu povo antes da visita e depois retornar à sua diocese após esta atarefada série de reuniões e contar a sua experiência compartilhando com todos o que ele recebeu. Recordemos que nas o ápice das visitas ad limina é a celebração da Eucaristia com o santo padre no Túmulo de Pedro.

O senhor também é presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, criada por Pio XII em 1958. Por que foi incluída na Congregação para os Bispos e qual é o seu papel hoje, no contexto do pontificado do primeiro papa latino-americano da história?

A Pontifícia Comissão para a América Latina (C.A.L.) nasceu historicamente como um órgão delegado para facilitar o envio de missionários da Europa para a América do Sul. Ao longo dos anos, sua fisionomia mudou com a mudança da face da Igreja. Atualmente o fluxo missionário também tem uma direção inversa, de modo que os sacerdotes do continente latino-americano retrocedem pelas estradas dos primeiros missionários a levar a proclamação do Evangelho em muitos países europeus. Hoje, a C.A.L. é uma entidade dinâmica, que promove o conhecimento do Continente na Cúria e vice-versa, e sobretudo o encontro com as necessidades daquelas terras com a oferta de disponibilidade; ela também segue diretamente e promove pequenas intervenções diretas. Nos últimos anos, a Comissão tem se concentrado especialmente no diálogo e na promoção, para estimular a reflexão sobre as prioridades e o futuro do continente católico, sob o impulso do papa Francisco. A Pontifícia Comissão para a América Latina conta com a colaboração de uma assembleia de 20 membros que participam de Plenários de reflexão e orientação sobre o futuro da área. Quero lembrar particularmente a Assembleia Plenária de 2018 com o tema : A mulher : pilar na construção da Igreja e da sociedade na América Latina. Foi um momento muito bonito, uma passagem do Espírito Santo.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1513093/2021/04/como-o-papa-escolhe-os-bispos-criterios-metodos-orientacoes/

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Moçambique: a situação é dramática em Cabo Delgado

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


*Artigo da reportagem local da Aleteia


‘O tema de Cabo Delgado esteve em destaque ontem na apresentação em Lisboa do Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo da Fundação AIS. Guilherme d’Oliveira Martins, que apresentou o documento, classificou de ‘dramática’ a situação que se vive nesta província no norte de Moçambique, e considerou essencial a cooperação entre todas as organizações presentes no terreno no apoio às populações. 

A situação é dramática e é indispensável que todos ajudem estas populações, designadamente as instituições da sociedade civil e as organizações de base religiosa [que] não podem deixar de ter um papel positivo sobretudo na proteão das pessoas que estão vulneráveis e que são objeto de violência de morte.

O administrador-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian sublinhou durante a sessão de apresentação do Relatório, que decorreu ontem de manhã numa sessão virtual, o papel que o Estado moçambicano deve desempenhar neste conflito causado por grupos terroristas que têm vindo a atacar aldeias, vilas e cidades desde 2017 e que já causaram mais de dois mil mortos e mais também de 700 mil deslocados. 

Vazio de autoridade

É indispensável que haja uma intervenção corajosa por parte da Estado moçambicano’, disse Oliveira Martins, acrescentando que ‘esta questão é absolutamente crucial para não gerar situações de vazio de autoridade’. ‘Deve haver [também] um apoio da comunidade internacional para que não haja um vazio de autoridade e para que haja a possibilidade efetiva de proteção e de salvaguarda das populações’, disse ainda.

Posição semelhante foi tomada por Catarina Martins de Bettencourt. A diretora da Fundação AIS em Portugal enfatizou o papel da sociedade civil e da Igreja no trabalho crucial de apoio às populações deslocadas pelo conflito, lembrando que ‘Moçambique é um dos países mais pobres do mundo, e as pessoas desta região [de Cabo Delgado] são já de si muito pobres também…’ 

Catarina Bettencourt lembrou ainda que a Fundação AIS pertence a uma ‘plataforma de várias organizações que está a tentar fazer um ‘lobby’ positivo no sentido de trazer esta questão para a agenda política de Portugal’, sublinhando ainda o papel que o governo de Lisboa pode desempenhar durante o primeiro semestre deste ano que corresponde à presidência portuguesa do Conselho da União Europeia. 

Catástrofe humanitária

Sobre o trabalho efectivo da Fundação AIS na ajuda humanitária às populações de Cabo Delgado, lembrou que ‘já no fim do ano passado’ foi enviada ‘ajuda de emergência para a Igreja alimentar, vestir, cuidar destes milhares e milhares de deslocados’, e que sem essa ajuda, que tem de continuar, ‘podermos assistir a uma calamidade, uma catástrofe humanitária ainda maior’.

O caso de Cabo Delgado foi discutido já na parte final da apresentação do Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, trabalho de investigação produzido a nível internacional pela Fundação AIS. Moçambique faz parte de um conjunto de países retratados a vermelho no Mapa do Relatório por causa da ‘perseguição’ e ‘discriminação’ aos crentes. É um mapa que engloba o Afeganistão, o Bangladesh, mas também a China, Mianmar, Irão, Coreia do Norte, Líbia ou Índia, num total de 26 países. O caso da Índia mereceu comentários por parte de Guilherme d’Oliveira Martins, em resposta a uma questão colocada no final da sessão de apresentação do Relatório. O facto de estar agendada para a cidade do Porto uma cimeira entre a União Europeia [EU] e a Índia, no âmbito da presidência portuguesa, pode ser importante para o debate das questões relacionadas com os direitos humanos.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2021/04/25/mocambique-a-situacao-e-dramatica-em-cabo-delgado/

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Os poderosos conselhos de 3 monges para vencer a acídia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Marzena Wilkanowicz-Devoud,

jornalista

 

‘A acídia, um estranho estado de espírito, uma espécie de tristeza e melancolia atingiu os primeiros monges cristãos, aqueles que escolheram refugiar-se no deserto para viver mais intensamente, na solidão ou em pequenas comunidades, o seu ideal de perfeição espiritual. 

Esses homens às vezes eram tocados por um desconforto que os deixava ao mesmo tempo preocupados, insatisfeitos, tristes e cansados. O mal chamado pela Igreja de acídia é, portanto, aquilo que hoje conhecemos como ansiedade e depressão. 

Este mal poderia, então, assumir diferentes formas : irritação com os irmãos e a vida monástica, falta de concentração na leitura e na oração, grande fadiga, fome e sono repentinos, desejo de novidades, desejo incontrolável de estar em outro lugar. O ‘demônio da acídia, também chamado de demônio do meio-dia, é o mais pesado de todos os demônios’, avisa Evagrio Pôntico, um monge do século IV que vivia no deserto egípcio. Ele explicou : 

Ele ataca o monge por volta da quarta hora e o rodeia até por volta da oitava. Começa dando-lhe a impressão de que o sol está muito lento em seu curso, ou mesmo imóvel, e que o dia é de cinquenta horas. Em seguida, ele o exorta a olhar sem parar pela janela, o joga para fora de sua cela para examinar o sol e ver se a hora oitava se aproxima, finalmente o exorta a lançar os olhos por todos os lados, esperando a visita de um irmão. Ele o faz odiar seu lugar, seu modo de vida, o trabalho das mãos; ele sugere a ele que não há mais amor entre os irmãos, que ele não pode contar com nenhum…’ 

De fato, a acídia é uma espécie de torpor que paralisa a fé e deve ser combatido. Sim, mas como? Algumas ideias vêm destes três grandes monges que lutaram contra a acídia :

1. Santo Antônio, o Grande

Ascético e embriagado de Deus, como muitos anacoretas nos primeiros séculos do cristianismo, Santo Antônio, o Grande retirou-se no deserto para encontrar no silêncio e na solidão as condições ideais de união com Deus. Assim como Cristo, foi no deserto que testou sua fé. Apesar da sensação de esgotamento psíquico, até mesmo de loucura que o acometeu, decidiu resistir às visões impostas por Satanás : ‘Vi todas as redes do demônio instaladas na terra’.

Este último se esforça para distraí-lo de suas orações, instando-o a renunciar em espírito ao jejum a que se vincula e, em um sonho, chafurdar na gula… Ele, então, entende que o ascetismo nunca deve ser considerado como um fim em si. A salvação vem de Deus. Como ele explica, dando este conselho valioso : 

Guarda o que te mando : aonde quer que você vá, tenha sempre Deus diante de seus olhos; faça o que fizer, tenha o testemunho das Sagradas Escrituras; e onde quer que você esteja, não se mova facilmente. Guarde essas três coisas e você será salvo’.

2. São Pedro Damião

O monge eremita Pedro Damião dedicou-se desde muito jovem à oração, ao ascetismo e ao estudo das Sagradas Escrituras, tanto à contemplação como à pregação. 

Em suas numerosas obras que o tornaram doutor da Igreja, São Pedro Damião insiste em certas manifestações do mal. Surpreendido pela sonolência durante a leitura, descreve este ‘inevitável peso das pálpebras a que nem mesmo um santo de grande temperamento resiste’. Para ele, o remédio encontra-se na caridade que leva à verdadeira alegria :

Que a esperança os conduza à alegria! Que a caridade desperte seu entusiasmo! E que nesta embriaguez a tua alma se esqueça que está a sofrer, para florescer caminhando para o que contempla dentro de si’. 

3. São Romualdo

São Romualdo de Ravenna admitiu sofrer de acídia. O mal se manifestou nele particularmente durante o aprendizado mecânico dos Salmos. Diante da rebelião do corpo contra os constrangimentos da vida monástica a que estava submetido, ele repetiu que não era necessário ceder, mas, ao contrário, aumentar vigílias, orações e jejuns. 

Para ele, o monge trabalhador deve lembrar que não há outro descanso além do descanso eterno. Visto que as horas da manhã são aquelas em que a acídia ocorre com mais frequência, eles devem então estar ocupados com a oração.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2021/04/23/os-poderosos-conselhos-de-3-monges-para-vencer-a-acidia/

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Razão, história e fé: algo sobre o percurso de Joseph Ratzinger

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Cardeal Joseph Ratzinger antes de sua eleição como papa

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

Pensar a própria fé é uma tarefa teológica. Toda e qualquer pessoa que se propõe a se debruçar sobre a teologia precisa estar disposta a fazer esse exercício. Ao mesmo tempo, a fé deve ser compreendida como um movimento vivo, sempre tendo clareza de que a teologia se faz a partir de questões de nosso tempo. Toda teologia que não acompanha seu tempo tende a não cumprir seu papel e se mostrar como sistema morto para o momento em que se está.

Ratzinger exemplifica muito bem essa situação ao utilizar o conto de Kierkegaard, colocando o teólogo como um palhaço sem máscara que tenta avisar uma aldeia que o circo no qual trabalha está a pegar fogo e este atingirá a cidade se nada for feito. Por acharem que o palhaço está a fazer palhaçadas, todos da aldeia não lhe dão atenção. Como consequência, o circo pega fogo, a cidade pega fogo e todos morrem.  O mesmo drama que sofre o palhaço ao ver que não lhe dão ouvidos, assim também sofre o teólogo no mundo de hoje ao tentar expor sua fé com a antiga roupagem medieval (RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. 1970, p.9).

Vemos em Ratzinger a preocupação com essa teologia que deve ser atualizada para o mundo contemporâneo e que sirva de base para diversos cristãos que querem responder a respeito de sua fé.

Na atualidade, por sua vez, é possível perceber certo movimento duplo: ao mesmo tempo em que há grande valorização daquilo que é comprovável pela ciência e pode ser tangível, também há a busca constante das experiências espirituais por parte do ser humano contemporâneo. A sociedade de hoje busca a experiência, o novo, o diferente, como que em uma tentativa feroz de sair daquilo que pode ser visto e cientificamente provado.

É comum surgir novos movimentos que propõem a explicação do Universo, o encontro consigo mesmo, a interação com a natureza. Diante disso, poderíamos nos perguntar : haveria nessa atitude impressa a necessidade da busca por algo que transcende a nós mesmos? Estaria nossa sociedade cansada de tanta comprovação e partiria a buscar algo que não pode ser explicada pela via científica e histórica? Terá nossa sociedade a necessidade de algo que seja mistério, somente experimentado pelo mais profundo do ser?

Ratzinger, por sua vez, está longe de ser um místico no sentido comumente pensado do termo. Todo aquele que se dispuser a ler suas obras com atenção perceberá que a intenção de nosso teólogo é fazer a conciliação entre razão, história e fé. Esta talvez pode ser caracterizada como uma de suas principais bandeiras ao longo da trajetória como teólogo. Porém, ao mesmo tempo em seus escritos, revela-se como alguém que vê com grande valor a experiência de fé.

Dessa forma, Ratzinger se mostra como teólogo que busca de alguma maneira contribuir para o enriquecimento da fé cristã, seja por meio da grande pesquisa científica que faz, seja pelo grande interesse que tem em propor um relacionamento pessoal com Jesus Cristo para todo aquele que se dispõe a Segui-lo.

Revisitar o pensamento de Ratzinger se mostra de grande valia para o cristianismo contemporâneo, visto seu esforço enquanto teólogo ter se mostrado como tentativa de trazer a fé cristã para um mundo que não está mais na cristandade, mantendo o comprometimento intelectual demandado pelo nosso tempo e uma fé genuína, ancorada na pessoa de Jesus Cristo.

Caso o leitor e a leitora desse pequeno texto tenham interesse em conhecer mais sobre a obra de Ratzinger, recomendo seu livro Introdução ao Cristianismo, elaborado com base nos cursos de verão dados em 1967, bem como sua trilogia escrita a partir de 2005, Jesus de Nazaré.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1511634/2021/04/razao-historia-e-fe-algo-sobre-o-percurso-de-joseph-ratzinger/

terça-feira, 20 de abril de 2021

Freira missionária reencontra Deus servindo refugiados na Grécia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

Ir. Victoria Kovalchuk com uma jovem refugiada em Atenas, Grecia, em abril de 2021

*Artigo da redação da ACI


Irmã Victoria Kovalchuk é uma religiosa missionária da Crimeia, de 38 anos de idade, que se reencontrou com Deus após ser enviada para servir às famílias refugiadas na Grécia.

Meu sonho era o Brasil’, disse a irmã à EWTN News. Mas Deus a levou para servir aos refugiados na Grécia. ‘Acho que agora não será um grande problema se eu não for para lá, porque me apaixonei pela Grécia’, disse.

A irmã Victoria nasceu na década de 1980 e foi batizada na Igreja Ortodoxa Russa. Embora sua família não praticasse a fé, Deus sempre esteve presente na sua vida. Quando criança, por exemplo, ela pegou emprestada uma Bíblia infantil de uma biblioteca e, como não queria devolvê-la, copiou algumas histórias em seu caderno. No final, confessou, nunca devolveu a Bíblia.

Após a queda da União Soviética, as Bíblias reapareceram nas prateleiras das lojas e sua avó comprou uma. ‘Lembro que esse livro me impressionou tanto que costumava levá-lo para a cozinha para abrir a primeira página e começar a ler’, disse.

No início, ‘não consegui entender nada, então fechei o livro e disse a mim mesma : ‘Algum dia eu o lerei’. Graças a Deus, li e continuo lendo. Através desta experiência posso ver que Deus estava de alguma forma próximo e já estava agindo na minha vida’, acrescentou.

A religiosa conheceu a Igreja Católica graças ao seu amor pela língua e pela cultura da França. ‘Eu só queria saber como os franceses rezavam e como era a missa’ disse ela, acrescentando que depois de ler um dos livros de Alexandre Dumas, quis saber o que era o hino ‘Te Deum’.

Ela contou que convidada pelas meninas polonesas de sua universidade, participou pela primeira vez na missa em 2001, e sentiu que queria ficar para sempre; mas como foi batizada como ortodoxa, ao início teve dúvidas sobre se era correto unir-se à Igreja Católica. Logo percebeu que ao se converter, aprofundaria na presença de Deus em sua vida através dos sacramentos.

Converteu-se quando tinha apenas 18 anos e, após terminar a universidade, ingressou na vida religiosa. Antes de ser enviada para a Grécia, estava servindo na Ucrânia.

A serviço dos refugiados na Grécia

Irmã Victoria serve aos refugiados e migrantes assentados em Atenas, junto com outros membros de sua comunidade, e de empregados e voluntários do Jesuit Refugee Service (JRS). ‘Este é o melhor lugar para este tempo que Deus me deu. Este é o lugar onde Ele me fala através do país e das pessoas com as quais trabalho todos os dias’, afirmou.

Durante a crise de refugiados de 2015 e 2016, a Grécia recebeu mais de um milhão de pessoas. De acordo com a Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), no final de 2019, a Grécia abrigava mais de 186 mil refugiados e solicitantes de asilo, incluindo mais de 5 mil menores. A maioria está nas ilhas orientais do país, em frente à costa da Turquia.

Em 2020, chegaram mais de 15 mil, principalmente do Afeganistão, Síria, Irã e Congo. Nesse ano, os incêndios nos refúgios nas ilhas gregas de Lesbos e Samos obrigaram milhares de pessoas a fugir e viver por dias e semanas na Praça Victoria, chamada de ‘Afghani Park’ por causa dos refugiados afegãos que vivem lá. É um espaço de encontro para mulheres e crianças, destacou a irmã Victoria.

Ela contou que ia todos os dias à Praça Victoria junto com os voluntários para brincar com as crianças. Além disso, diziam às mulheres que no centro que dirigem há chuveiros, lavanderia, roupa usada gratuita e um assistente social que dá orientação e outros recursos.

Ela trabalha com afegãos, que são em sua maioria muçulmanos, mas também há ‘cristãos e católicos dos Camarões’. Ressaltou que não os chama de refugiados ou migrantes, pois ‘são meus amigos’ e são ‘o povo de Deus, de meu Deus que os criou, que os amou’.

Sempre fala com eles que seu amor vem de Jesus, porque ‘foi Ele quem me trouxe aqui, quem colocou esse amor dentro de mim e [me permite] deixar minha família e meu país’. Ela sabe que não tem o poder para mudar a situação física e política na Grécia, ‘mas o que posso fazer é amar’.

Digo-lhes : vim aqui para estar vocês na situação em que se encontram. Estarei com vocês quando estiverem rindo ou chorando. Posso lhes mostrar um pouco do amor que tenho’, disse.

Crianças refugiadas e bonecas de pano

Atualmente, as freiras e voluntários dão aulas de grego, francês e inglês, que durante a pandemia da Covid-19 foram realizadas por chamadas de vídeo. Além disso, oferecem aulas e atividades para as crianças, uma vez que muitas não vão à escola e têm tempo livre.

Irmã Victoria confecciona ‘motanka’, bonecas de pano da tradição ucraniana que depois dá de presente às crianças para que elas brinquem. São feitas com roupas velhas que são doadas e estão em más condições. Até o momento, fizeram cerca de 500 bonecas.

Nossos filhos refugiados não têm brinquedos nem nada para brincar. Este é realmente o melhor lugar para as minhas bonecas’, disse, acrescentando que as crianças gostam de sentar com ela e vê-la fazer as bonecas, ou mesmo aprender a fazê-las.

Escolhem diferentes cores de vestido, de cabelo. E eu acho que isso também é muito importante e um pouco terapêutico’, porque eles não têm a oportunidade de tomar decisões no dia a dia, nem sequer sobre coisas pequenas como o que querem usar. ‘Portanto, ficam muito felizes em poder escolher o seu próprio estilo’, destacou.

A irmã fica realizada ao ver ‘os sorrisos, a felicidades destas crianças que, na realidade, não têm nada, que às vezes passam fome’ e não podem pedir algo para suas mães, ‘mas estão contentes com as coisas simples’, disse.

Apesar das diferenças de idioma, cultura e religião, a irmã Victoria disse que se sente respeitada e apreciada por aqueles que ajuda. As pessoas lhe expressam gratidão convidando-a para comer um pão no forno ou tomar um chá; e as crianças, espontaneamente, levam água quando faz calor ou compartilham biscoitos com ela.

Isso é muito comovente e me ajuda a ver como Deus também cuida de mim por meio deles, mesmo sendo de diferentes nacionalidades e religiões’, disse, acrescentando que a melhor recompensa são os ‘sinais de amor’ que recebe como beijos e abraços de crianças.

Minha viagem aqui começou principalmente por causa da minha necessidade pessoal de encontrar e redescobrir Deus novamente em minha vida e em minha vocação, e essas pessoas me ajudaram a conseguir isso aqui. É mútuo : busco ajudá-los da maneira que posso, simplesmente estando com eles, e depois, eles me ajudam muito’, concluiu.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://www.acidigital.com/noticias/freira-missionaria-reencontra-deus-servindo-refugiados-na-grecia-61460

domingo, 18 de abril de 2021

O pequeno, mas importante, papel dos anjos e demônios na Bíblia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
'A destruição do Templo do Vício' (1832)

*Artigo de Charles C. Camosy,

publicado originalmente em Crux Now

Tradução : Ramón Lara 


John Gillman Ph.D., é conferencista do Departamento para o Estudo da Religião da San Diego State University e educador certificado pela ACPE para Educação Pastoral Clínica. Também é Editor Associado do The Catholic Biblical Quarterly. Entre outras publicações, e é autor de What does the Bible say about life and death? (O que a Bíblia diz sobre a vida e a morte?, em tradução literal). Neste artigo reproduzimos uma entrevista com Charles Camosy sobre seu novo livro What does the Bible say about angels and demons? (em tradução literal, O que a Bíblia diz sobre anjos e demônios?).

Você pode nos contar um pouco sobre sua formação e como isso o levou a escrever um livro sobre anjos e demônios?

Primeiro, um pequeno histórico : cresci em uma família católica tradicional em uma pequena cidade no sudeste de Indiana. Depois de completar meus estudos de doutorado na Katholieke Universiteit Leuven, na Bélgica, uma universidade fundada em 1425, dediquei minha vida profissional a uma combinação de trabalho pastoral e academia. Servi como capelão em diversos ambientes, como educador certificado para Programas de Educação Pastoral Clínica (CPE) e como professor universitário no Departamento de Estudos da Religião em San Diego, onde nos últimos três anos lecionei um curso sobre ‘Morte, falecer e viver após a morte’. Atualmente, sou editor associado do Catholic Biblical Quarterly.

A resposta à pergunta sobre como vim a ser co-autor deste livro é muito simples. O editor da série estava procurando alguém para concluir o projeto depois que o autor original teve que se retirar por motivos de saúde. Aceitei o convite, caso contrário, provavelmente não teria começado a escrever sobre este assunto. Assim que comecei trabalhar no material, no entanto, fiquei fascinado com o tema. Eu não pensava muito em anjos desde a infância, quando memorizei a oração tradicional do anjo da guarda. Quanto aos demônios, fiquei intrigado com o filme O Exorcista (1973), o nono filme de maior bilheteria de todos os tempos nos EUA e Canadá. Além disso, anos atrás, uma mulher perturbada me pediu para abençoar sua casa e protegê-la do que acreditava ser uma presença demoníaca. Eu fiz a bênção - não era um exorcismo - e parecia ter trazido algum conforto.

Anjos e demônios são tópicos populares em nossa imaginação cultural, mas adotar um ângulo especificamente bíblico é interessante. Existe algo como uma visão bíblica coerente sobre anjos e demônios? Até que ponto essa visão se sobrepõe - ou não - ao nosso imaginário cultural popular?

Os anjos raramente faziam mais do que aparições no Antigo e no Novo Testamento. Eles não são o foco central. As exceções são os anjos nas narrativas da infância de Mateus e Lucas (onde o anjo se chama Gabriel) e o Livro de Tobias, onde encontramos Rafael. Na última história, Rafael é enviado por Deus a Tobias e sua família servindo como guia e protetor, mediador do casamento, conselheiro de cura e fonte de orações.

Ao contrário dos anjos na cultura popular, onde às vezes são retratados como humanos que partiram, os anjos bíblicos funcionam não por sua própria autoridade, mas como mensageiros celestiais de Deus. Uma sobreposição ocorre na assistente social angelical Monica da popular série de TV O toque de um anjo (1994-2003). O seriado oferece uma intervenção útil na vida das pessoas em dificuldades.

Embora a crença em demônios tenha uma longa história que remonta à Mesopotâmia e à Grécia, os demônios estão praticamente ausentes no antigo Israel. Satanás, não apresentado como um demônio, mas como um acusador, desempenha um papel no início do Livro de Jó. O diabo só aparece no Novo Testamento, cerca de 35 vezes, mais proeminentemente nas tentações de Jesus.

Hoje, os cristãos podem atribuir a fonte da tentação ao diabo e as pessoas, em geral, podem atribuir eventos horríveis e a discórdia divisora a espíritos demoníacos ou malignos. Por exemplo, após uma eleição contenciosa, o cardeal Gregory de Washington, DC, declarou : ‘Temos muitos espíritos malignos que de alguma forma estão destruindo e trazendo mal para a nação, fazendo com que pessoas de diferentes raças, culturas, línguas e religiões tenham medo de uns dos outros’ (janeiro de 2021).

Entendo, só tenho que perguntar algo porque um colega meu (teólogos podem ser pessoas estranhas!) é meio obcecado com esse assunto. A Bíblia tem uma visão de anjos e demônios que permite que alguns deles sejam algo diferente do espírito? Para ser mais direto : a Bíblia imagina que alguns anjos e demônios têm corpos?

A resposta curta é sim. No Livro de Tobias, mencionado acima, Rafael aparece pela primeira vez disfarçado de jovem e não é identificado como um anjo até muito mais tarde na narrativa. O demônio que confronta Jesus no deserto é apresentado com características humanas : o demônio leva Jesus até um ponto alto para mostrar-lhe todos os reinos do mundo, leva-o a Jerusalém e o seduz por meio de palavras comuns, tudo em vão. Seria ir além da narrativa da tentação, porém, sustentar que o diabo que aparece tem um corpo físico.

É uma coisa muito católica acreditar no Anjo da guarda. Existe um fundamento bíblico para essa crença?

Embora seja verdade que a crença no Anjo da guarda é uma ‘coisa católica’, alguns protestantes também têm crenças semelhantes. Por exemplo, a declaração de Martinho Lutero ‘que os anjos estão conosco é muito certo, e ninguém deveria ter duvidado disso’ se aproxima de uma crença em anjos da guarda. Embora a expressão ‘anjo(s) da guarda’ não apareça na Bíblia, há alguns textos que apontam nessa direção, como no Salmo 91,11. ‘Porque a seus anjos Ele dará ordens a seu respeito, para que o protejam em todos os seus caminhos’. Em Mateus 18,10 é relatado que Jesus disse : ‘Cuidado para não desprezarem um só destes pequeninos! Pois eu digo que os anjos nos céus estão sempre vendo a face de meu Pai Celeste’. E em Atos 12,15, quando Pedro chegou à casa de Maria, os presentes acreditaram que era ‘seu anjo’. Em Hebreus 1,14, surge a pergunta ‘Os anjos não são, todos eles, espíritos ministradores enviados para servir aqueles que hão de herdar a salvação?’.

Muitos relatam ter um anjo da guarda. No outro dia, encontrei a história de Francisca de Roma (1340-1440), que recebeu um anjo da guarda enviado por Deus depois que seu marido se foi e um filho morreu, para servir como companheiro constante durante os últimos vinte anos de sua vida. Ela teria sido capaz de ver este anjo. Pouco antes de sua morte, disse : ‘O anjo terminou sua tarefa - ele me chama para segui-lo’. Entre aqueles que acreditam em anjos, poucos parecem ter uma experiência tão vívida.

Esta é uma pergunta complexa, mas é outra que tenho que fazer. Suspeito que muitas pessoas se interessam por anjos e demônios pelos mesmos motivos pelos quais se interessam por dragões, alienígenas e zumbis. Leva você de seu mundo atual, totalmente físico, para um lugar fantástico de imaginação encantada. Mas seu livro deixa claro que, para as pessoas da Bíblia, este não era um mero lugar fantástico de imaginação. A existência de anjos e demônios para os antigos era muito séria. É possível para nós, pessoas da modernidade, entrar na mentalidade encantada que abre espaço para a realidade de anjos e demônios?

Existem tantas oportunidades através de programas de TV, filmes e outras mídias, para entrar em um mundo tão encantado. No entanto, não tenho certeza se uma pessoa precisa entrar em uma ‘mentalidade encantada’ para criar espaço para essa realidade. Algumas semanas atrás, comentei com um amigo da caminhada sobre meu livro sobre anjos e demônios. Ele se virou para mim e disse : ‘Não tenho certeza do que acredito nos anjos’. Em seguida, passou a contar o que começou como uma história mundana sobre como a luz de verificação do motor em seu carro havia se acendido durante uma viagem para fora do estado. Meu amigo parou para investigar, e descobriu que havia algum outro problema relacionado ao funcionamento seguro de seu carro que não tinha conexão com o indicador ‘verificar motor’. Subiu as mãos e se perguntou : de que se tratava esse aviso?

Agora sobre os demônios : quando o ataque ao Capitólio dos EUA ocorreu em 6 de janeiro de 2021, o representante Jim McGovern, um veterano da Marinha, disse depois que ‘viu o mal’ nos olhos dos atacantes. Se isso era o mal personificado, o demônio em ação ou simplesmente loucura, ele não diz. Não é absurdo interpretar isso como algo mais do que uma turba fora de controle envolvida em algo que as pessoas mais razoáveis imaginariam como totalmente impensável.

Para muitos, a questão permanece em aberto se o espaço (sobre o qual você pergunta) deve ser aberto para anjos e demônios. Outros podem ter fortes convicções de um lado ou do outro. A Bíblia oferece suporte para tal realidade e, de muitas maneiras, nossa cultura contemporânea também o faz.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1510568/2021/04/o-pequeno-mas-importante-papel-dos-anjos-e-demonios-na-biblia/

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Eterno minuto de silêncio

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
 *Artigo de Franca Giansoldati,

para Il Messaggero

Tradução : Luisa Rabolini

 

‘‘Carrego no corpo o fato de ter nascido em Codogno. Em um ano, muitas pessoas caras para mim morreram. Amigos, conhecidos, sacerdotes. A imagem histórica de caminhões carregados de caixões marca o início da consciência de algo que mudaria toda a humanidade, não apenas a Itália ou a Europa. Marca o início de uma nova temporada que a humanidade sozinha não conseguiria enfrentar imediatamente. Depois, há outra imagem, ainda mais poderosa’, diz em entrevista Dom Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização e um dos teólogos mais reconhecidos do mundo.

Qual é a outra imagem?

Em 27 de março do ano passado. O Papa sozinho na Basílica de São Pedro. Representa a humanidade desorientada em busca de sentido. As pessoas estavam fechadas em suas casas, sem ter relações interpessoais com as pessoas próximas e queridas e com a consciência das mortes que se avolumavam sem sequer poder dar-lhes uma última despedida. Talvez nunca como naquela época marcada pela Covid a humanidade tenha erguido os olhos ao céu.

Foi realizada uma enquete : desde o ano passado até hoje aumentou a percepção da incerteza, do medo, da tristeza ...

Há uma reflexão enorme e macroscópica a fazer. Estamos diante de um fenômeno significativo para a cultura de nosso tempo. Estamos tocando com a nossa mão o início da pós-modernidade. O que está acontecendo nos diz que a época moderna acabou e ainda não sabemos como será o futuro. Diante desses fatos, a ilusão de que tudo é tão lindo quanto nos foi apresentado nas últimas décadas e que o homem sozinho administra a sua vida, nos faz entender que não é assim. No dia 27 de março do ano passado, o Papa falou a São Pedro sobre o barco no meio da tempestade e quase gritou : por que vocês estão com medo, vocês perderam a fé?

Ainda há espaço para esperança?

A imagem do barco de Pedro é fundamental. O Papa nos lembrou que o drama não é uma tragédia. Na tragédia nunca há esperança, mas no drama sim. A morte, segundo a mesma enquete, parece que está impressionando menos, como se tivéssemos criado um calo...

A morte entrou efetivamente na nossa vida cotidiana e desmantelou um tabu. As imagens dos caixões que saíam nos caminhões militares de Bérgamo deixaram claro que a morte não era uma ficção e ficaram impressas. O imaginário mudou desde então.

Se há necessidade de esperança, por que as igrejas ficam vazias?

O problema de dar voz à esperança está relacionado com a capacidade de falar uma linguagem nova. Talvez ainda estejamos inseridos numa linguagem demasiado tradicional. Talvez devêssemos refletir sobre como melhor utilizar aquelas que são as mensagens da fé, sobre o fato de que a morte, a doença e o sofrimento são vividos e foram vencidos.

Como a fé pode andar em paralelo com a ciência?

O homem de fé sempre tem confiança na ciência porque tem confiança na obra criativa, na inteligência do homem : saber falar de esperança significa ir além das mensagens e criar sinais de esperança. Esse é o grande desafio que marca o momento histórico que estamos vivendo.

Talvez a Igreja fale muito pouco sobre a vida após a morte?

Temos a tendência de raramente falar sobre isso porque também nós somos vítimas da crise de fé que se vive no Ocidente. Às vezes, há a incapacidade de dar primazia ao mistério da nossa vida. O mistério não é o que não se compreende, mas o ficar em silêncio a contemplar a fim de entrar em profundidade e deixar a mente e o coração abertos para receber também uma iluminação. Esquecemos essa dimensão, trazer de volta o mistério de um Deus que se faz homem e vence a morte.

O que dizer para aqueles que perderam amigos e parentes por causa do Covid?

Quem amamos tanto mantém uma forte presença entre nós. A força do amor dura para sempre. O amor autêntico vai além da morte. E Deus que é amor venceu a morte. E quando se fala com uma pessoa que vive o luto, ela bem sabe que tem a presença da pessoa falecida ao seu lado, que se transformou em outra forma.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/periscopio/2317/2021/04/eterno-minuto-de-silencio/