quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Afirmar a esperança: um desafio para o novo ano

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

‘Toda virada de ano é motivo de grande alegria para a maioria das pessoas. Afinal, acaba um novo ciclo e, como todo início de alguma coisa nova, tem-se a sensação de que o novo ano que se inicia será diferente, mais empolgante, mais cheio de realizações, etc.. É até mesmo comum recebermos mensagens, muitas vezes repetidas, desejando as mesmas boas coisas para todo mundo (ainda que durante o ano nada tenha sido feito para que tais coisas se realizassem na vida daqueles e daquelas para quem as mensagens são enviadas).

Este ano, porém, devido à pandemia que assola todo o mundo e, mais ainda em nosso país, no qual a contaminação e as mortes chegam a números exorbitantes - graças a um desgoverno que não prioriza sua população e nega a ciência - vemos desenrolar um cenário bastante diferente do qual estávamos acostumados quando da virada do ano. 

Em lugar de grandes encontros que reúnem toda a família, amigos e familiares, é demandada de nós a responsabilidade para que a celebração seja somente com o grupo familiar que mora junto conosco, de modo a evitar a propagação do vírus por meio de aglomerações. 

Infelizmente, porém, o que se vê são diversas pessoas não se atentando a tais recomendações, contaminando várias outras de uma vez só em festas, shows e encontros de amigos, o que mostra que ainda permanece em nossa sociedade uma postura egoísta. Nesse cenário, é difícil imaginar que os bons desejos se realizarão no próximo ano, parecendo mais uma questão demagógica enviar essas mensagens para amigos e familiares.

Diante do caos que vemos sobre nosso país em diversas áreas como educação, economia, saúde; diante da ausência de políticas públicas que visem diminuir a propagação do vírus e do aumento dos números de ocupação dos leitos em diversas cidades; diante de uma justiça que comumente é conivente com crimes de responsabilidade por parte dos governantes, não é difícil que tenhamos a sensação de que não há mais saída, de que não adiantam as denúncias e as lutas, enfim, de que o país sucumbirá a tudo isso e, consequentemente, seremos também aniquilados por esse tsunami que tem vindo sobre nós.

No entanto, partindo da fé cristã, é importante, novamente, recuperarmos a mensagem da esperança tão presente no texto bíblico. Nele, percebemos um Deus que sempre caminha com o seu povo, tomando consigo a causa dos injustiçados, perseguidos, enfermos, que não possuem parte na terra, desesperançados, daqueles e daquelas que, com coração contrito, clamam por socorro. 

Essa esperança bíblica nos mostra que Ele não nos deixa só, mas nos garante força e consolo não somente para suportarmos o mal que nos sobrevém, mas também para, baseado na esperança, levantarmo-nos e lutarmos contras as forças de morte que insistem em se fazer presente em nossa sociedade.

O texto bíblico nos mostra que a esperança cristã não é passiva, mas, na força do Espírito de Deus, é voz profética que denuncia e inspira coragem ao povo. Diante disso, nesse novo ano que se inicia, é importante não nos esquecermos de que Deus caminha conosco. 

Por causa da esperança que temos de que o mundo que habitamos não é da forma como Deus deseja que ele seja, também é necessário que cooperemos e lutemos para que a justiça, a igualdade e o amor possam se fazer presentes em nossa sociedade. Em outras palavras, viver de maneira que possamos apresentar as nuances do Reino de Deus que, em esperança, aguardamos.

Feliz Ano Novo!

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1490802/2020/12/afirmar-a-esperanca-um-desafio-para-o-novo-ano/

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Para onde o papa vai em 2021?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

‘A vida de Francisco (e a de todos nós) começou a ficar incerta a partir de março de 2020. Um vírus letal, que até então circulava em território chinês, chegou à Europa sem pedir licença. E não demorou muito para atravessar o Atlântico, atingir países mais pobres e arrasar famílias inteiras. Nossos projetos, viagens e sonhos tiveram que ficar para depois. O mundo parou diante de uma ameaça invisível.

Muitos se foram sem poder se despedir dos seus parentes. Todos os dias, infelizmente, renovamos esse luto. Para o cristão, o ‘desconhecido’ que luta pela vida numa UTI de hospital é um irmão. É o homem ferido na estrada, diante do qual o bom samaritano que passa, como ensina a parábola, não pode ficar indiferente. Portanto, um ‘e daí?’ diante do sofrimento alheio nunca fez parte do vocabulário evangélico.

É um ano para esquecer. Mas também para lembrar e agradecer por estarmos vivos. O Te Deum do dia 31, o hino utilizado na liturgia católica em eventos solenes de ação de graças, deverá ser entoado para celebrarmos também essa vitória.

Francisco subiu as escadarias da Basílica São Pedro, naquela noite chuvosa de 27 de março de 2020, consciente de que era só o início da batalha. Ele também teve que rever o seu papado. A propósito, o líder máximo da Igreja Católica admitiu, em uma entrevista, que a pandemia o havia colocado em crise. Ele teve que fazer as contas, afinal, é gente como a gente.

E agora, o que vem pela frente?

Num momento em que vários países do mundo anunciam seus planos de vacinação, inclusive o Vaticano, o papa surpreende o mundo ao confirmar que visitará o Iraque em março de 2021. À primeira vista, pode parecer que o pontífice tenha agido de maneira inconsequente. No entanto, é provável que, até lá, todos os cidadãos de seu pequeno Estado já estejam vacinados. O Vaticano, possivelmente, será o primeiro país do mundo a conseguir esse feito, já que conta com pouco mais de 800 habitantes.

Para além da discussão se foi prudente ou não o papa ter marcado essa viagem, uma coisa é certa : no ano da retomada, que será 2021, Francisco orientará todo o seu trabalho pastoral para as periferias. Se ele já faz isso ao longo de quase 8 anos de governo, fará ainda mais no ano que vem.

Não me surpreenderia se ele incluísse na lista de suas visitas apostólicas alguns países da América Latina e outros do Oriente Médio. Ir para onde ninguém quer ir ou jamais foi virou regra no pontificado atual. Para Francisco, é a expressão máxima do ‘ser pastor com cheiro de ovelhas’. E não existe pastor sem povo. Não existe Igreja que não se volte para os pobres.

É provável que o santo padre privilegie os países onde os problemas sociais foram mais acentuados pela pandemia. E nada melhor que iniciar por um dos países mais arrasados pelas guerras no século 21, como é o caso do Iraque. A terra de Abraão, o patriarca bíblico que os cristãos chamam de ‘pai de todos aqueles que creem no mesmo Deus’, será palco de uma nova fase que se inicia para Francisco.

O coronavírus fez com que o país mergulhasse (ainda mais) na crise humanitária da qual nunca saiu desde 2003, quando os Estados Unidos e seus aliados invadiram o território. Por lá, sobretudo agora, o deserto virou cemitério, como relataram algumas agências de notícias internacionais.

Ao longo de 2020, Francisco fez um apelo à comunidade internacional para que deixe de investir em armas e use esse dinheiro para socorrer os países mais pobres. Também pediu um cessar-fogo global ‘que permita a paz e a segurança indispensáveis para fornecer a assistência humanitária’. Ele pensa nos países que receberam várias sanções por parte das grandes potências e, por conta disso, não puderam receber suporte necessário para combater a doença.

Francisco pediu um pacto global de fraternidade na sua encíclica Fratelli Tutti, publicada em outubro deste ano. Através das suas próximas viagens e documentos, certamente vai reforçar esse desejo. Se ‘todos estão no mesmo barco’, como ele disse em várias ocasiões, quer mostrar que, somente juntos, poderemos chegar à terra firme.

Será um ano diferente para um papa que estava acostumado a seguir um programa muito específico. Ele assume a responsabilidade de preparar a Igreja para uma mudança de época. E isso ficou evidente tanto nos últimos textos que lançou quanto no último consistório que convocou. Os seus gestos, daqui para frente, serão uma resposta a essa missão que acabou sendo desenhada pela própria pandemia.

Francisco se prepara para o fim e para o novo; coroa seu pontificado com o discurso da esperança, mas não deixa de denunciar as mazelas da sociedade. Sabe que o tempo urge e o próximo papa que virá terá muito trabalho.

Ele pensa na Igreja e no mundo do pós-pandemia. Quer que o cristianismo resplandeça como uma proposta que dá sentido à vida, não como uma religião dos perfeitos onde o ritualismo estéril transforma as comunidades católicas em ‘guetos dos perfeitos’. Se ao longo da história, quando a humanidade estava em ruínas, a Igreja assume as vestes de um grande hospital de campo, como pontua o papa Francisco, para ele é hora, então, de não negligenciar essa característica que lhe é própria.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1489265/2020/12/para-onde-o-papa-vai-em-2021/

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

No perigo, na solidão: deixar-se abraçar por Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*Artigo do Padre Carlos Padilla Esteban


‘Na vida, a generosidade exige renúncia. Renúncia ao próprio desejo, à possessão, a ter tudo, à paz constante, ao descanso permanente, aos meus planos. Amar é renunciar. O amor que não renuncia seca, morre.

O amor que cresce a partir da morte ao próprio eu é um amor fecundo, grande, próprio de um coração que se dilatou, que se tornou enorme no caminho. Um coração capaz de entregar a vida no silêncio, sem buscar aplausos ou reconhecimento. É um coração assim que queremos : um coração livre e pleno.

Santo Inácio rezava :Tomai, Senhor, e recebei / Toda a minha liberdade, a minha memória também. / O meu entendimento e toda a minha vontade / Tudo o que tenho e possuo, vós me destes com amor. / Todos os dons que me destes, com gratidão vos devolvo. / Disponde deles, Senhor, segundo a vossa vontade. / Dai-me somente, o vosso amor, vossa graça. / Isto me basta, nada mais quero pedir.

Decisões

Em nosso coração são tomadas as decisões mais importantes, e ninguém pode interferir nelas. Decisões nas quais nos entregamos e abandonamos totalmente. Lá, na solidão da alma, nós abraçamos Deus. Lá onde ninguém mais pode entrar, porque é nossa intimidade mais profunda e cálida.

E queremos que o nosso coração seja um lar para Cristo. Nesse lar de paz, poderíamos descobrir seu querer e estar dispostos, assim, a entregar tudo, a renunciar a tudo.

Diante do desconhecido, diante do que não controlamos, temos de olhar para Deus, confiar nele, abandonar-nos em suas mãos, sabendo que Ele nos conduz a um porto seguro.

Na verdade, nossa santidade repercute nos que nos cercam. Somos membros do Corpo místico de Cristo. O bem que fazemos é um bem para os outros. O mal que provocamos é uma ausência de bem.

Nosso amor pode ajudar outras pessoas a amar mais, a amar melhor, a amar mais santamente. ‘O verdadeiro amor é aquele que não diz ‘é suficiente’. A medida do amor é amar sem medidas. Nossa relação mútua deve nos submergir cada vez mais profundamente nesta medida sem medidas, no eterno, no Deus infinito.’

Ato de abandono

Uma vida que ama e é capaz de não dizer jamais ‘Isso é suficiente’ é a vida à qual aspiramos. Uma vida entregue nas mãos de Deus. É o abandono no meio do perigo. Quando nem tudo está garantido, quando nossa vida não está totalmente sob controle. É natural ter medo do futuro, da morte, da cruz. Não é natural viver sem medo.

Ninguém vive sem medo, a não ser por uma graça especial, por um dom sobrenatural, por uma união profunda do seu coração com o coração de Cristo na cruz. Os mártires suportaram o martírio não por falta de medo, mas porque receberam uma graça especial de Deus.

Nós não vivemos sem medo, mas sempre podemos entregar esse medo a Deus para que Ele nos liberte. O medo está na alma e pode nos impedir de avançar.

Hoje somos conscientes dos nossos medos. Sabemos quantas coisas existem em nossa vida que nos inquietam. O futuro, a crise, o medo de doenças : entreguemos tudo isso a Deus, para que Ele sustente nossa vida e nos dê sua paz em meio às tempestades.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2020/12/27/no-perigo-na-solidao-deixar-se-abracar-por-deus/

sábado, 26 de dezembro de 2020

Natal: tempo propício para meditar sobre a humildade

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

*Artigo de Philip Kosloski,

escritor e designer gráfico

 

‘Enquanto a Quaresma e a Semana Santa se concentram no imenso sofrimento de Jesus por nós, o Advento e o Natal representam a oportunidade perfeita para se concentrar na humildade e na pobreza.

Isso ganha vida principalmente quando sentamos e meditamos na cena humilde do nascimento de Jesus. Muitas vezes, os presépios modernos não comunicam essa verdade central com força suficiente, pois o estábulo moderno pode parecer quase aconchegante e quente, em vez do que provavelmente era a realidade fria, bagunçada e brutal por trás de tudo.

Uma meditação encontrada em um livro de oração do século XIX destaca esse profundo mistério :

‘É meia-noite. O vento do inverno é frio. Veja um estábulo sem conforto, em parte galpão e em parte caverna, escavado ao lado de uma rocha. Um lugar pobre mesmo. A brisa afiada encontra seu caminho livremente. Nesse estábulo está um bebê. Seu único berço é uma manjedoura na qual o gado se alimenta. Ele está deitado sob a palha áspera – um bebê recém-nascido. Seus pequenos membros estão enrolados em faixas, como as crianças dos mais pobres.’

Sente-se e imagine essa cena por alguns minutos. Pense na pobreza de tudo ao redor e quão desconfortável deve ter sido! Estar em um quarto de hospital moderno não é nada bom, mas pense em como era dar à luz em tais circunstâncias.

A cena deve nos levar a pedir a Deus o dom da humildade e a examinar nossas próprias vidas, perguntando a nós mesmos se nossos confortos modernos têm alguma influência sobre nossas vidas espirituais.

Aqui está uma breve oração que vem após a meditação acima. Peça a Deus que nos preencha com um espírito de humildade :

Jesus, agradeço-te por ter vindo assim. Grande Deus, como te humilhaste! Parece demais, maravilhoso demais, mas sei que é verdade.Nada é maravilhoso demais para o Teu grande e eterno amor.Por amor a Ti, serei humilde. Tira o meu orgulho e a minha vontade própria.Maria, eu te agradeço e te abençôo por amar a Deus tão nobremente, tão puramente e tão humildemente, que Ele nos deu Seu querido Filho através de ti. Roga a esse Filho, para que eu tenha a graça de aprender com Ele e contigo a ser manso e humilde de coração. José, pai adotivo de Jesus, o coração daquela criança santa bate por mim. Maria é minha mãe; ora por mim para que eu seja verdadeiramente humilde e pertença a esta Sagrada Família, agora e na hora da minha morte. Amém.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2019/12/11/natal-tempo-propicio-para-meditar-sobre-a-humildade/

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Natal: descubra os tesouros escondidos no mistério do presépio

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

*Artigo de Emmanuel Pellat,

Jornalista


‘Como entrar no mistério do Natal? E como cultivar as graças da Natividade ao longo do ano? A seguir, uma entrevista com o Irmão Éric Bidot, capuchinho, guardião do convento francês de Clermont-Ferrand.

Por que, em 1223, São Francisco criou um presépio vivo?

Francisco viveu com Cristo. Ele o viu nos acontecimentos e nos encontros da vida quotidiana, reconheceu-o nos irmãos, especialmente nos mais pobres. Francisco tinha apenas um desejo : encontrar, ver, tocar seu Senhor. No Evangelho, dois mistérios da vida de Cristo trouxeram lágrimas aos seus olhos : a crucificação e a natividade. Francisco se apresenta como um homem ‘simples’, é artista, poeta, sensível. Para entender o evangelho, ele precisava vê-lo, tocá-lo, experimentá-lo.

Como as pessoas reagiram?

Mesmo se não temos nenhum vestígio do que Francisco disse durante seu sermão, diz a lenda popular que as pessoas ficaram tão tocadas que saíram com os fios de palha, a ponto de não sobrar nem um só. Além disso, sua maneira de falar sobre Jesus despertou fé e fervor. Tendo a pensar que Francisco pregava sobre a humildade de Deus : como o Deus três vezes santo, criador do universo, senhor do tempo e da história, pôde fazer-se homem, e nascer tão pobre? O presépio revoluciona a imagem que poderíamos ter de Deus : um Deus que se humilha para a nossa salvação.

Como entrar na contemplação deste mistério?

Concordemos em deixar-nos levar e ser tomados pelo mistério que se vive diante de nossos olhos. Coloquemo-nos na escola da humildade de Deus. Para aplaudir o maior milagre da história, precisamos encontrar nossa criança interior. Devíamos ficar chateados com o presépio, pois nossos berços nunca serão bonitos o suficiente. Devemos tentar torná-los ícones reais e contemplá-los com admiração por tão grande mistério!

É importante que, no presépio, sejam representadas as atividades ordinárias e concretas das pessoas de ontem e de hoje, imersas na vida cotidiana. Por que não adicionar médicos, operários da construção, fazendeiros, comerciantes, aos personagens tradicionais? No presépio, toda a criação é convocada : o cosmos, os elementos naturais, o pequeno e o grande deste mundo. Deus se faz homem para renovar e reconciliar toda a criação por dentro.

É este o cerne da mensagem do presépio?

O presépio é um mistério de simplicidade. Percebamos verdadeiramente que os pastores – as primeiras testemunhas do nascimento do Salvador – estavam entre os mais pobres e os mais desprezados dos judeus de seu tempo. Se tivéssemos coração e mãos de pobres, facilmente entraríamos no júbilo da contemplação deste grande mistério.

No Natal, a presença do Emanuel (‘Deus conosco’) revela-nos a simplicidade do Amor. Deus é simples. Somos nós que nos complicamos com o nosso pecado. Na manjedoura, Deus está lá. Mistério que ecoa a exclamação de Santo Agostinho : ‘Tarde demais eu Te amei! Eis que estavas dentro, e eu, fora – e fora Te buscava, e me lançava, disforme e nada belo, perante a beleza de tudo e de todos que criaste. Estavas comigo, e eu não estava contigo… seguravam-me longe de ti as coisas que não existiriam senão em ti.’

Como você cultiva a graça do Natal ao longo do ano?

Permitindo que Deus transforme todos os nossos relacionamentos : nosso relacionamento com ele, com nós mesmos e com os outros. Esta não é uma técnica psicológica, mas uma verdadeira conversão espiritual. E para isso só existe um caminho : a oração pessoal. Sem ela é impossível viver da graça do Natal. É um pedido exigente, mas é a verdade. Todos os dias, Deus só pede para renascer em nós, para nos dar a paz e a alegria do Natal. Não uma fachada de paz e alegria entusiasmada, mas uma paz profunda e a alegria de saber que se é amado. Não temos pelo menos cinco minutos por dia para que Deus se encarne em nós?

Correndo o risco de soar provocativo, uma pergunta : por que Deus se encarnou?

Para nos dizer que todo homem é filho e filha de Deus! Para nos revelar a verdadeira face de Deus e, ao mesmo tempo, restaurar nosso relacionamento com o Pai no céu. ‘Deus se fez homem para que o homem se tornasse Deus’, dizia Santo Irineu no século II. Jesus, sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, reconcilia o homem na sua pessoa com Deus e conduz o homem à sua dimensão verdadeira e plena. Encarnando-se, o Verbo Eterno revela a onipotência da sua bondade, da sua misericórdia e da sua ternura. Em Jesus, ele se faz muito próximo, muito pequeno para não nos assustar. A manjedoura, como a Eucaristia, é a revelação de um Deus que se faz servo de cada homem para nos anunciar toda a sua força de amor. Como diz uma das canções de natal mais antigas : ‘Da manjedoura à crucificação, Deus nos revela um grande mistério’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/cp1/2020/12/22/natal-descubra-os-tesouros-escondidos-no-misterio-do-presepio/



quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Vigiai: um conselho aos esperançosos

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

‘O mês de dezembro é um mês muito caro a todas as pessoas cristãs, independentemente da tradição a que pertencem : sejam católicas, protestantes ou ortodoxas. Por se celebrar o nascimento de Jesus Cristo, é comum que em todas se viva o tempo do advento. Nas duas primeiras semanas do mês refletimos sobre a esperança cristã da parusia, ou também conhecida como segunda vinda de Cristo; e nas duas últimas semanas sobre o nascimento do Messias, conforme narrado nos evangelhos.

O tema da vigilância aparece no texto bíblico quando Jesus fala a seus discípulos a respeito de sua segunda vinda. Nesses textos, uma vez que pertencem ao gênero apocalíptico, Jesus se utiliza de diversos símbolos para tratar das últimas coisas e que, por isso mesmo, precisam ser decodificados a fim de serem compreendidos.

Um dos temas recorrentes nos evangelhos sinóticos é o tema da vigilância. Em todos, aparece a famosa frase, mesmo que com algumas variações : ‘Vigiai, porque não sabeis nem o dia nem a hora em que virá o Filho do Homem’. Esse conselho de Jesus muitas vezes foi usado para instaurar o medo em fiéis. Afinal, lendo o texto de maneira literal, o que se tem é um evento cataclísmico, no qual o céu será abalado, haverá chuva de meteoros sobre a terra, tudo pegando fogo e um caos generalizado para que, dos céus, se veja o Filho do Homem vindo com poder e glória para colocar um fim na história. Nesse contexto, ai daquele e daquela que não vigia, uma vez que serão castigados por não cuidarem dos bens do senhor da casa.

Não precisamos de muito esforço para compreender porque esse tipo de mensagem gerou e ainda gera tanto temor para muitos cristãos ainda hoje, e uma espécie de ‘cobrança de santidade’ se faça presente em diversas igrejas e comunidades cristãs espalhadas pelo mundo.

No entanto, compreender o tema da vigilância não deveria causar medo ou espanto. Vigiar é observar com atenção, estar atento a algo ou a alguma pessoa. Nesse sentido, aquele e aquela que vigia é uma pessoa que presta atenção e está focada naquilo que deve fazer, sendo o foco uma das características principais quando falamos do tema. Com isso em mente, o conselho de Jesus deve ser compreendido como instrução para que, como seus discípulos e discípulas, estejamos atentos aos sinais dos tempos e àquilo que eles mostram. Se o Filho vem de maneira que ninguém percebe e em hora que ninguém espera, então somente os que estão atentos e atentas são capazes de acolher a sua chegada.

Longe de ser uma espécie de adivinhação do futuro autorizada, estar atento aos sinais dos tempos visa capacitar-nos a manter a esperança de que o Senhor da casa há de chegar. Aqui, a imagem de Noé, apresentada em Mateus 24,37-39, mostra-se importante. Voltando ao mito do dilúvio é possível perceber que este veio por causa da maldade humana. Noé, homem justo, foi chamado por Deus para construir um espaço de preservação de vida no meio do caos que haveria de vir sobre a terra, fruto do pecado da humanidade. A arca, nesse sentido, representa tanto o cuidado de Deus, quanto a esperança de que, no meio de todo caos, Deus não havia abandonado os que praticam a justiça. Em outras palavras, a justiça de um ser humano é suficiente para que o mundo não pereça.

Vigiar e ter esperança se mostram, então, intimamente ligados. Somente aquele que tem a esperança de que o senhor da casa há de chegar é capaz de vigiar. Nesse sentido, o conselho para a vigilância não tem a ver com o medo da punição, mas com a manutenção da esperança de que, mesmo nos momentos escuros e de trevas pelos quais passamos, devemos nos manter atentos à prática da justiça e naquilo que fomos chamados a fazer para o Reino de Deus, porque temos a esperança que, em algum momento, o Filho chegará e um novo dia chegará sobre a humanidade.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1488692/2020/12/vigiai-um-conselho-aos-esperancosos/

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Esperança cristã: a confiança de que a morte não tem a última palavra

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

‘Se estamos no mês em que celebramos a esperança no cristianismo, não é de se espantar que, novamente, outro texto reflita sobre esse ponto fundamental da fé cristã. Afinal, o cristianismo desde seus primórdios se mostrou como a religião da esperança. Quando Paulo, no início do seu ministério, anunciava o retorno iminente de Cristo, acreditando até mesmo que seria um dos que veriam a volta do salvador nas nuvens do céu, anunciava a esperança de que aquela perseguição e opressão que seu povo passava teria um fim. Esperava confiantemente que tudo aquilo passaria em um momento próximo e, assim, anunciava que Jesus estava às portas.

Da mesma forma, cerca de 40 anos depois das primeiras pregações paulinas, alguém de nome João escrevia o Apocalipse, um tratado de esperança que se encontra no Novo Testamento. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, esse livro nunca teve o intuito de trazer medo para o povo de Deus e, muito menos, ser um manual que ensinava a ler os sinais dos tempos para prever quando alguma coisa aconteceria no futuro. Desde as suas primeiras páginas anuncia a razão da esperança cristã, o Cristo ressurreto que está à direita do Pai e que, no meio das igrejas que formam a Igreja, caminha e sofre juntamente com ela a perseguição que a assolava e, consolando-a, anunciava que a libertação estava para chegar.

A mensagem do Apocalipse mostrava às igrejas perseguidas do primeiro século que tal perseguição não seria para sempre, que o mal não teria a última palavra, que por mais poderoso que o Império Romano poderia parecer, Deus é aquele que reina soberano sobre toda terra e está atento ao sofrimento de seu povo, promovendo consolo e anunciando a derrota dos opressores num futuro breve.

Lembrar-se da esperança cristã hoje se mostra também tarefa importante. Em um momento no qual lidamos com uma pandemia que já matou milhões de pessoas ao mesmo tempo em que temos um governo negacionista e que não demonstra o menor interesse em promover o bem-estar da população, até os mais animados começam a encarar com desânimo o futuro. Não são poucas as pessoas que pensam que tal pesadelo nunca terá fim, que a morte vencerá e que o desespero permanente é inevitável.

Diante disso, a mensagem do Apocalipse se mostra como arauto da esperança. Em Apocalipse 20,14 se afirma que a morte e o inferno serão lançados no lago de fogo. Os símbolos do inferno (o lugar da sepultura, o sheol, que na cultura do povo judeu, era para onde os mortos iam quando morriam), e do lago de fogo (símbolo para a aniquilação) utilizados por João precisam ser lidos como sinais de esperança e não de medo, como quiseram fazer os diversos folclores criados na Idade Média a respeito do inferno, como câmara de tortura para onde vão os que não são cristãos.

A esperança de que na nova criação de todas as coisas (Ap 21) não haverá mais morte (e consequentemente o lugar para onde os mortos vão) é uma mensagem poderosa que precisa ser sempre relembrada. A morte não tem a última palavra, o desespero não é quem dita o futuro. Ainda que os momentos ruins pareçam não ter fim, a esperança de que as estruturas geradoras de morte e os diversos infernos pelos quais a humanidade passa não permanecerão para sempre deve servir de motivação para que não desistamos de lutar por uma sociedade mais justa e digna. É por se ter esperança que não se deve desistir de assumir a causa dos aflitos, necessitados, pequeninos e perseguidos.

Um novo amanhã há de nascer e nele, o sol da justiça brilhará com toda sua força.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1488491/2020/12/esperanca-crista-a-confianca-de-que-a-morte-nao-tem-a-ultima-palavra/

sábado, 19 de dezembro de 2020

Vacina: os pobres serão excluídos

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 

*Artigo de Paolo M. Alfieri

Tradução : Moisés Sbardelotto


‘Enquanto os países ricos estão em contagem regressiva para o início das campanhas de imunização contra o coronavírus (depois do Reino Unido, os EUA também estão prontos para começar), bilhões de pessoas no Sul do mundo correm o risco de não conseguir se vacinar sequer em 2021. É uma constatação amarga divulgada nessa terça-feira pelas organizações da People’s Vaccine Alliance, da qual fazem parte, entre outros, a Anistia Internacional, a Global Justice Now e a Oxfam.

Os países ricos já garantiram doses iguais a três vezes as da sua população para as vacinações do ano que vem, durante o qual, por outro lado, em 67 países pobres, apenas uma em cada 10 pessoas poderá se vacinar contra o coronavírus. Uma desigualdade que infelizmente reflete dinâmicas relacionadas também a outros setores, mas que é ainda mais humilhante considerando-se que estamos falando da saúde de bilhões de pessoas.

Ainda no dia 19 de setembro passado, o Papa Francisco havia enfatizado : ‘Seria triste se, no fornecimento da vacina, se desse prioridade aos mais ricos, ou se essa vacina se tornasse propriedade desta ou daquela nação’. E, invocando uma globalização do cuidado, havia concluído que a vacina ‘deverá ser universal, para todos’.

De acordo com a tendência atual, estamos diante de uma enorme desigualdade no acesso à vacina, que é o principal instrumento para erradicar a pandemia’, destacou a Oxfam, observando que um país como o Canadá garantiu doses suficientes para vacinar a sua população quase cinco vezes, e a União Europeia, 2,3 vezes.

Daí o apelo da Oxfam, junto com as organizações da People’s Vaccine Alliance, a todas as empresas farmacêuticas que trabalham com as vacinas anti-Covid-19 para compartilharem a sua tecnologia e os direitos de propriedade intelectual, aderindo a uma iniciativa promovida pela OMS.

Só assim poderão ser produzidos bilhões de doses de vacinas seguras e eficazes, disponibilizadas a todos aqueles que delas necessitam’, afirma uma nota. A People’s Vaccine Alliance também pediu aos governos que façam tudo o que estiver ao seu alcance para garantir que as vacinas anti-Covid-19 se tornem um bem público global, distribuído igualmente.

Um primeiro passo seria apoiar a proposta apresentada nesta semana pela África do Sul e pela Índia à Organização Mundial do Comércio de suspender os direitos de propriedade intelectual para as vacinas, os testes e as terapias anti-Covid-19 até que todos estejam protegidos’, afirma o apelo.

A acumulação das vacinas por parte de poucos países corre o risco de anular os esforços globais para garantir que todos, onde quer que seja, possam estar protegidos do vírus’, denunciou a Anistia Internacional.

Até hoje, todas as doses da Moderna e 96% das produzidas pela Pfizer-BioNTech foram adquiridos por países ricos’, continua a Oxfam, acrescentando que o consórcio Oxford-AstraZeneca, por sua vez, se comprometeu a fornecer 64% das doses aos países em desenvolvimento (a preço de custo), ‘mas, para o próximo ano, poderá abastecer no máximo 18% da população mundial’.

Cerca de 96% das doses da Pfizer-BioNTech, em vez disso, irão para os países ricos. Mesmo para as poucas doses restantes, levanta-se a questão da temperatura de armazenamento necessária para a distribuição, embora, de acordo com os produtores, a segunda geração da vacina, que poderia chegar em seis meses, poderá ser transportada em temperatura ambiente.

O mais importante projeto internacional para distribuir a vacina é a Covax Alliance, criado pela Gavi Alliance e que inclui dezenas de países, da Itália à China. O objetivo é garantir uma distribuição justa de dois bilhões de doses da vacina, 450 milhões das quais para 92 países pobres e em desenvolvimento, a um custo máximo de três dólares cada. Mas a população total desses 92 países é de 3,9 bilhões de pessoas.

Além disso, os acordos unilaterais dos países ricos com as empresas farmacêuticas reduzem as quantidades disponíveis no mercado. Ao contrário, os países pobres dependerão exclusivamente dos programas de distribuição internacional. É necessário um empurrão moral para que as suas esperanças não sejam frustradas.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/periscopio/2285/2020/12/vacina-os-pobres-serao-excluidos/

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

‘Veio morar entre nós’ - Terceira Pregação do Advento de 2020

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  

*Artigo do Frei Raniero Cantalamessa, OFMCap,

pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)

Tradução : P. Ricardo Farias, OFMCap

 

Entre vocês existe um que você não conhece!’ É o grito triste de João Batista ouvido no Evangelho do Terceiro Domingo do Advento que gostaríamos de receber neste último encontro antes do Natal.

Na memorável mensagem ‘Urbi et orbi’ de 27 de março passado na Praça São Pedro, após ter lido o evangelho da tempestade acalmada, o Santo Padre se perguntava em que consistia a ‘pouca fé’ que Jesus censurava nos discípulos, e explicava :

Não é que deixaram de crer N’Ele, pois invocam-No; mas vejamos como O invocam : ‘Mestre, não te importas que pereçamos?’ (Mc 4,38). Não te importas : pensam que Jesus Se tenha desinteressado deles, não cuide deles. Entre nós, nas nossas famílias, uma das coisas que mais dói é ouvirmos dizer : ‘Não te importas de mim’. É uma frase que fere e desencadeia turbulência no coração. Terá abalado também Jesus, pois não há ninguém que se importe mais de nós do que Ele.

Podemos perceber também uma outra nuance na reprovação de Jesus. Eles não tinham entendido quem era que estava com eles no barco; não tinham entendido que, com ele dentro, o barco não podia afundar porque Deus não pode perecer. Nós, discípulos de hoje, cometeremos o mesmo erro dos apóstolos e mereceremos a mesma reprovação de Jesus se, na violenta tempestade que se abateu sobre o mundo com a pandemia, nós nos esquecêssemos que não estamos sós no barco e à deriva nas ondas.

A festa do Natal nos permite alargar o horizonte : do mar da Galileia ao mundo inteiro, dos apóstolos a nós : ‘E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós’ (Jo 1,14). O verbo grego no aoristo, eskenosen (literalmente, ‘fincou a tenda’), expressa a ideia de uma ação cumprida e irreversível. O Filho de Deus desceu sobre esta terra e Deus não pode perecer. O cristão pode proclamar com razão mais forte do que a do salmista :

Deus é nosso refúgio e fortaleza,

socorro sempre encontrado nos perigos.

Por isso, não temeremos,

e se a terra tremer, e se as montanhas afundarem no mar (...).

Deus está em seu meio, ela não se abalará (Sl 46,2-4).

Deus está conosco’, isto é, está do lado do homem, é seu amigo e aliado contra as forças do mal. Devemos reencontrar o significado primordial e simples da encarnação do Verbo, para além de todas as explicações teológicas e dos dogmas construídos sobre ela. Deus veio habitar em nosso meio! Quis fazer deste evento o seu nome próprio : Emanuel, Deus-conosco. O que Isaías profetizara, ‘A virgem ficará grávida e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Emanuel’ (Is 7,14), tornou-se fato realizado.

Devemos, eu dizia, remetermo-nos para antes de todas as controvérsias cristológicas do V século – para antes dos concílios de Éfeso e Calcedônia – para reencontrar o paradoxo e o escândalo encerrados na afirmação : ‘A Palavra se fez carne’. É interessante voltar a escutar a reação de um pagão culto do II século, que veio a tomar conhecimento daquela afirmação dos cristãos. ‘Filho de Deus – exclamava o filósofo Celso, horrorizado – um homem vivido há poucos anos?’ Logos eterno, alguém ‘de ontem ou anteontem?’, um homem ‘nascido em um lugarejo da Judeia, de uma pobre fiandeira?[1]. Não admira. A união perfeita da divindade e da humanidade na pessoa de Cristo era a maior de todas as novidades possíveis, ‘a única coisa nova debaixo do sol’, como o define São João Damasceno [2].

A primeira grande batalha que a fé em Cristo teve que encarar não foi aquela acerca de sua divindade, mas sobre sua humanidade e a verdade da encarnação. À origem desta recusa, estava o dogma de Platão, segundo o qual ‘nenhum Deus se mistura ao homem[3]. Santo Agostinho descobriu, por experiência própria, a raiz última da dificuldade em crer na encarnação, ou seja, a falta de humildade. ‘Não sendo humilde – escreve nas Confissões – eu não compreendia a humildade de Deus[4].

A sua experiência nos ajuda a entender a raiz última do ateísmo moderno e nos indica o único modo possível para superá-lo. A partir de Hermann Samuel Reimarus no século XVIII, tudo foi um assalto à verdade histórica do Evangelho e à divindade de Cristo. Jesus disse : ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim’ (Jo 14,6). Uma vez declarada intransitável esta única via de acesso a Deus, foi fácil passar primeiro ao deísmo e, em seguida, ao ateísmo.

A experiência de Agostinho – eu dizia – indica também a via para superar o obstáculo : depor o orgulho e aceitar a humildade de Deus. ‘Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos’ (Mt 11,25) : toda a história da incredulidade humana é explicada por estas palavras de Cristo. A humildade fornece a chave para entender a encarnação. É preciso pouca força para expor-se; é preciso muita, ao contrário, para colocar-se de lado e se apagar. Deus é esta força ilimitada de ocultação de si mesmo : ‘Mas esvaziou-se, assumindo a forma de servo... Humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte’ (Fl 2,7-8).

Deus é amor, por isso é humildade! O amor cria dependência da pessoa amada, uma dependência que não humilha, mas torna felizes. As duas frases ‘Deus é amor’ e ‘Deus é humildade’, são como dois lados da mesma moeda. Mas o que significa a palavra humildade aplicada a Deus e em que sentido Jesus pode dizer : ‘Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração’ (Mt 11,29)? A explicação é que a humildade essencial não consiste no ser pequeno (pode-se ser pequeno sem, de fato, ser humilde); não consiste no considerar-se pequeno (isso pode depender de uma má ideia de si mesmo); não consiste em proclamar-se pequeno (pode-se dizê-lo sem crê-lo); consiste em fazer-se pequeno e fazer-se pequeno por amor, para elevar os demais. Neste sentido, realmente humilde é somente Deus.

Quem é como o Senhor, o nosso Deus, que reina em seu trono nas alturas,

mas se inclina para contemplar o que acontece nos céus e na terra?

Ele levanta do pó o necessitado e ergue do lixo o pobre (Sal 113, 5-7).

Tinha-o compreendido, sem muitos estudos, Francisco de Assis, que, em seus ‘Louvores a Deus Altíssimo’, em um certo ponto, voltado para Deus, diz : ‘Vós sois humildade!’, e em sua ‘Carta a toda a Ordem’, exclama : ‘Vede, irmãos, a humildade de Deus’ [5]. Eis que se humilha – escreve em uma de suas Admoestações – diariamente, como quando veio do trono real ao útero da Virgem[6].

O Natal é a festa da humildade de Deus. Para celebrá-la em espírito e verdade, devemos nos fazer pequenos, como devemos nos abaixar para entrar pela porta estreita que dá acesso à Basílica da Natividade em Belém.

‘No meio de vós está quem não conheceis!’ 

Mas voltemos ao coração do mistério : ‘E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós’. Deus está conosco, irrevogavelmente. Isto é, de agora em diante, o objeto central da profecia cristã. Zacarias saúda o Precursor chamando-o ‘profeta do Altíssimo’ (Lc 1,76) e Jesus diz que ele é ‘muito mais que profeta’ (Mt 11,9). Mas em que sentido João Batista é um profeta? Onde está a profecia, em seu caso? Os profetas bíblicos anunciavam uma salvação futura; João Batista não anuncia uma salvação futura; aponta, ao contrário, para alguém que está presente ali, diante dele. Os profetas antigos ajudavam o povo a ultrapassar a barreira do tempo; João Batista ajuda o povo a ultrapassar a barreira, ainda mais espessa, das aparências contrárias. O Messias tão esperado – aguardado pelos patriarcas, anunciado pelos profetas, cantado pelos salmos – seria, portanto, aquele homem de aspecto e origens tão humildes e ordinárias, do qual tudo se sabe, inclusive o vilarejo de origem?

É relativamente fácil acreditar em algo de grandioso e divino, quando se projeta em um futuro indefinido : ‘naqueles dias’, ‘nos últimos tempos’, em uma paisagem cósmica, com os céus que orvalham doçura e a terra que se abre para germinar o Salvador (cf. Is 45,8). É mais difícil quando se deve dizer : ‘Ei-lo! É ele!’. O homem é tentado a logo dizer : Só isso? ‘De Nazaré pode sair algo de bom?’ (Jo 1,46); ‘Este, porém, nós sabemos de onde é’ (Jo 7,27).

Este era um dever profético sobre-humano, e se entende porque o Precursor é definido ‘muito mais que profeta’. Ele é o homem que aponta para uma pessoa e pronuncia um peremptório ‘Eis, Ei-lo! Eis o Cordeiro de Deus!’ (Jo 1,29). Que calafrio deve ter experimentado o corpo daqueles que receberam por primeiro tal revelação. Uma poderosa ação do Espírito Santo acompanhava as palavras do Precursor e revelava tal verdade aos corações bem dispostos. Passado e futuro, espera e cumprimento se encontravam. O arco voltaico da história da salvação se fechava.

Creio que João Batista nos deixou o seu mesmo dever profético : continuar a gritar : ‘No meio de vós está quem não conheceis!’ (Jo 1,26). Ele inaugurou a nova profecia que não consiste – eu dizia – em anunciar uma salvação futura, mas em revelar a presença de Cristo na história : ‘Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos’ (Mt 28,20). Cristo não está presente na história somente porque se escrive e se fala continuamente dele, mas porque ressuscitou e vive segundo o Espírito. Não só intencionalmente, mas realmente. A evangelização começa a partir daí.

No tempo do Batista, o que criava dificuldade era o corpo físico de Jesus, a sua carne tão semelhante à nossa, exceto o pecado. Hoje, é sobretudo o seu corpo místico, a Igreja, a criar dificuldade e a escandalizar. Tão semelhante ao resto da humanidade, não excluído nem mesmo o pecado! Como o Precursor fez reconhecer Cristo sob a humildade da carne aos seus contemporâneos, assim é necessário fazê-lo reconhecer hoje na pobreza e na miséria da sua Igreja, e na pobreza e miséria da nossa própria vida.

O que Paulo acrescenta a João

 Mas devemos acrescentar algo ao que foi dito até aqui. Não importa, de fato, apenas saber que Deus se fez homem; importa saber também que tipo de homem Deus se fez. É significativo o modo diverso e complementar em que João e Paulo descrevem, cada qual, o evento da encarnação. Para João, ela consiste no fato de que a Palavra era Deus e se fez carne (cf. Jo 1,1-14); para Paulo, no fato de que ‘Cristo, existindo em forma divina, assumiu a forma de servo’ (cf. Fl 2,5ss.). Para João, a Palavra, sendo Deus, fez-se homem; para Paulo, ‘Cristo, de rico que era, tornou-se pobre’ (cf. 2Cor 8,9).

A distinção entre o fato da encarnação e o modo dela, entre a sua dimensão ontológica e aquela existencial, interessa-nos porque lança uma luz singular sobre o problema atual da pobreza e da postura dos cristãos em relação a ela. É de ajuda dar um fundamento bíblico e teológico à opção preferencial pelos pobres, proclamada no Concílio Vaticano II. ‘Os Padres conciliares – escreveu Jean Guitton, observador leigo no Vaticano II – reencontraram o sacramento da pobreza, isto é, a presença de Cristo sob as espécies daqueles que sofrem[7].

O ‘sacramento’ da pobreza! São palavras fortes, mas fundamentadas. Se, de fato, pelo fato da encarnação, a Palavra, em certo sentido, assumiu cada homem (assim pensavam alguns Padres gregos), pelo modo em que ela se realizou, ele assumiu, em um título todo particular, o pobre, o humilde, o sofredor. ‘Instituiu’ este sinal, como instituiu a Eucaristia. Assim, aquele que pronunciou sobre o pão as palavras : ‘Isto é o meu corpo’, pronunciou as mesmas palavras também sobre os pobres. Ele o fez quando, falando do que se fez – ou se deixou de fazer – pelo faminto, pelo sedento, pelo prisioneiro, pelo nu e pelo exilado, declarou solenemente : ‘Foi a mim que o fizestes’ e ‘Foi a mim que o deixastes de fazer’ (Mt 25,31ss).

Tiremos a consequência que deriva de tudo isso no plano da eclesiologia. São João XXIII, por ocasião do Concílio, cunhou a expressão ‘Igreja dos pobres[8]. Ela se reveste de um significado que vai além daquele que comumente se entende. A Igreja dos pobres não é constituída apenas pelos pobres da Igreja! Em certo sentido, todos os pobres do mundo – sejam eles batizados ou não – pertencem a ela. ‘Mas – contesta-se – não tiveram a fé, nem receberam o batismo!’. É verdade, mas nem mesmo os Santos Inocentes, que festejamos depois do Natal, tinham-no recebido. Sua pobreza e sofrimento, se isentos de culpa, aos olhos de Deus, são seu batismo de sangue. Deus tem muitas maneiras de salvar, mais do que possamos imaginar, ainda que estas maneiras – sem exceção – ‘por um modo só por Deus conhecido[9], passam por meio de Cristo.

Os pobres são ‘de Cristo’, não porque se declaram pertencentes a ele, mas porque ele os declarou pertencentes a si, declarou-os seu corpo. Isto não quer dizer que basta ser pobre e faminto neste mundo para entrar automaticamente no reino final de Deus. As palavras : ‘Vinde, benditos de meu Pai’ são dirigidas àqueles que cuidaram dos pobres, não necessariamente aos próprios pobres, pelo simples fato de terem sido materialmente pobres em vida.

A Igreja de Cristo é, portanto, imensamente mais vasta do que dizem os números e as estatísticas. Não por simples modo de dizer, ou por triunfalismo – especialmente hoje – fora de lugar. Ninguém, além de Jesus, proclamou : ‘Todas as vezes que fizestes isso a um destes mínimos que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes’ (Mt 25,40), onde o ‘irmão mínimo’ não indica apenas o fiel em Cristo, mas todo homem.

Daí deriva que o Papa – e com ele os demais pastores da Igreja – seja realmente o ‘pai dos pobres’. É uma alegria e um estímulo para todos nós ver o quanto este papel foi assumido pelos últimos Sumos Pontífices e, de maneira toda particular, pelo pastor que hoje senta na cátedra de Pedro. Ele é a voz mais fidedigna que se levanta em defesa deles, em um mundo que conhece apenas a seleção e o descarte. Ele, com certeza, não ‘se esqueceu dos pobres’! A Escritura contém uma bênção especial para quem assume o cuidado com o pobre :

Feliz, quem pensa no indigente...

O Senhor o guardará e lhe preservará a vida,

há de fazê-lo feliz na terra,

e não o entregará à fúria dos seus inimigos (Sl 41,2-3).

Sobre Maria e José, lê-se no evangelho que ‘não havia lugar para eles na hospedaria’ (Lc 2,7). Também hoje não há lugar para os pobres na hospedaria do mundo, mas a história mostrou de que lado estava Deus e de que lado deve estar a Igreja. Ir aos pobres é imitar a humildade de Deus, é fazer-se pequeno por amor, para elevar os que estão abaixo.

Mas não nos iludamos : isso é algo que pode ser mais fácil dizer do que fazer. Um antigo Pai do deserto, Isaac de Nínive, deu este conselho àqueles que são forçados pelo dever a falar de coisas espirituais que ele ainda não alcançou com vida : ‘Fale dele como alguém que pertence à classe dos discípulos e não com autoridade, depois tendo humilhado a sua alma e feito menor do que qualquer um de seus ouvintes[10]. E foi assim que falei sobre isso. 

‘Nele faremos a nossa morada’

 ‘E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós’. Antes de concluir, devemos passar do plural ao singular. Não veio genericamente ao mundo, mas pessoalmente, em cada alma que crê. Jesus disse : ‘Se alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós viremos a ele e nele faremos a nossa morada’ (Jo 14,23). Portanto, Cristo não está presente apenas na barca do mundo ou da Igreja; está presente no pequeno barco da minha vida. Que pensamento, se conseguíssemos crer realmente! Santa Isabel da Trindade aí encontrou o segredo da própria santidade. ‘Parece-me – escrevia a uma amiga – ter encontrado o meu céu aqui na terra, pois o céu é Deus, Deus está em minha alma. No dia que entendi isso, tudo se iluminou[11].

Com as restrições que põe ao culto público e à frequência às igrejas, a pandemia poderia ser a ocasião para muitos para descobrir que não encontramos Deus apenas indo à Igreja; que podemos adorar Deus ‘em espírito e verdade’ e conversar com Jesus também estando fechado em casa, ou em nosso quarto. O cristão jamais poderá se abster da Eucaristia e da comunidade, mas, quando isto for impedido por força maior, não deve pensar que sua vida cristã se interrompeu. Se jamais encontrou Cristo no próprio coração, jamais o encontrará fora, no sentido forte do termo.

Há uma afirmação ousada sobre o Natal, que é repetida época após época, pela boca de grandes doutores e mestres espirituais da Igreja: Orígenes, Santo Agostinho, São Bernardo, Angelus Silesius, e vários outros. Substancialmente, assim reza : ‘De que me adianta que Cristo tenha nascido uma vez em Belém, de Maria, se ele não não nasce pela fé também em meu coração?[12]. ‘Onde é que Cristo nasce, no sentido mais profundo, senão em teu coração e em tua alma?’, escreve Santo Ambrósio [13]. ‘O Verbo de Deus, afirma São Máximo Confessor, quer repetir em todos os homens o mi­stério da sua encarnação[14]. Uma verdade, como se vê, realmente ecumênica.

Ecoando esta mesma tradição, São João XXIII, na mensagem de Natal de 1962, elevava esta ardente oração : ‘Ó Verbo eterno do Pai, Filho de Deus e de Maria, renovai também hoje, no segredo das almas, o admirável prodígio do vosso nascimento’. Façamos nossa esta oração, mas, na situação dramática em que nos encontramos, acrescentemos também a ardente súplica da liturgia natalícia : ‘Ó Rei das nações. Desejado dos povos; Ó Pedra angular, que os opostos unis : Oh, vinde e salvai este homem tão frágil, que um dia criastes do barro da terra![15]. Vinde e reerguei a humanidade extenuada pela longa prova desta pandemia.

 

Fonte :

*Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2020-12/raniero-cantalamessa-terceira-pregacao-advento-2020.html

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[1] Cf. Orígenes, Contra Celso, I,26.28; VI,10.

[2] De fide orthodoxa, 45.

[3] Cf. Platão, Simposio, 203º; cf. Apuleio, De deo Socratis, 4 : ‘Nullus deus miscetur ho minibus’.

[4] Confissões, VII, 18.24).

[5] Carta a toda a Ordem, 28.

[6] Admoestações 1,16.

[7] Cf. J. Guitton, citado por R. Gil, Presencia de los pobres en el concilio, in ‘Proyección’ 48, 1966, p. 30.

[8] In AAS 54, 1962, p. 682.

[9] Gaudium et spes, 22.

[10] Isaac de Nínive, Discursos ascéticos, 4.

[11] Cf. Carta 107 à Condessa De Sourdon (1902).

[12] Cf. Orígenes, Commento al vangelo di Luca 22,3 (SCh 87,p. 302); Angelo Silesio, Il Pellegrino cherubico, I, 6 1 : ‘Wird Christus tausendmal zu Bethlehem geborn / und nicht in dir : du bleibst noch ewiglich verlorn’.

[13] Cf. Santo Ambrósio, In Lucam, 11,38.

[14] Cf. São Máximo Confessor, Ambigua (PG 91,1084).

[15] Antífona das Vésperas de 22 de dezembro.