quinta-feira, 30 de abril de 2020

Como Nicodemos confunde entre “nascer do Alto” e “nascer de novo”


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Lição 3 – Jesus e o Novo Nascimento – Assembleia de Deus do Arsenal
*Artigo de Dom Henrique Soares da Costa,
Bispo de Palmares, PE


Dom Henrique Soares da Costa, bispo de Palmares, PE, publicou em seu blog uma esclarecedora reflexão sobre o tempo pascal que estamos vivendo e a sua relação profunda com o Batismo e a Eucaristia :

Nos dias da Oitava da Páscoa ouvimos na Missa diária os evangelhos que narram as aparições do Ressuscitado aos seus discípulos. Na segunda semana, ouvimos o capítulo terceiro de São João. E por quê? Porque a tradição da Igreja vê aí, no diálogo de Jesus com Nicodemos, uma catequese sobre o Batismo. Batismo e Eucaristia, os sacramentos pascais, simbolizados na água e no sangue que brotaram do lado do Crucificado logo depois que Ele entregou o Espírito.

Como afirma a Primeira Carta de São João : três são os que dão testemunho de Jesus : o Espírito, a água e o sangue. Em outras palavras : no Batismo e na Eucaristia recebemos o Espírito Santo que nos testemunha o Cristo morto e ressuscitado como Senhor vivente e nos dá a Sua própria Vida divina recebida do Pai no evento mesmo da Ressurreição : ‘Morto na carne, foi vivificado no Espírito’ (1Pd 3,18).

Na perícope de João 3, Nicodemos vem de noite à procura de Jesus. É um chefe judeu versado na Torá. Vem de noite à procura da Luz… Ele reconhece que Jesus vem de Deus, acredita nos sinais que o Senhor realiza, mas ainda não sabe, não crê que Jesus é o Filho de Deus… Como judeu, ainda está na noite! Aqui, não há remédio : um filho de Israel, por bom que seja, por bem intencionado que se mostre, somente alcança a luz quando crê em Jesus como o Messias enviado pelo Pai. Até lá, está na noite!

Ora, para que que se veja a Luz é necessário nascer do Alto, nascer de Deus, recebendo uma Vida divina, ressuscitada, e somente Jesus Cristo pode realizar isto, dando-lhe o Seu Espírito. Nicodemos confunde ‘nascer do Alto’, isto é, nascer de Deus, receber a Vida divina, do Eterno, com ‘nascer de novo’ (em grego ánothen significa as duas coisas). Jesus, no entanto, refere-Se ao Batismo, no qual se nasce para a Vida que vem de Deus, Vida dada pelo próprio Jesus morto e ressuscitado : nascer da água e do Espírito significa nascer pela água que é instrumento do Espírito, isto é, que é símbolo eficaz da potente ação do Espírito. O que nasce da carne, da pura natureza humana, é somente carne e não tem como chegar à Vida de Deus. É preciso receber essa Vida divina pela água que doa o Espírito no Batismo.

Aqui, a inteligência humana desfalece. A ação do Espírito de Deus é como o vento : vemos os seus efeitos, mas não sabemos de onde vem nem para onde vai, pois Deus é Mistério, Deus é liberdade em toda a Sua obra. Ao homem cabe acolhê-Lo com amor e adoração. Aquele que recebe o Espírito e se deixa por Ele conduzir, torna-se livre, como o vento, é uma nova criatura, tem uma nova compreensão e, finalmente, experimenta que Jesus, nosso Senhor, realmente veio de Deus não como um simples profeta realizador de sinais, mas como o próprio Filho, divino como o Pai.

É esta a experiência dos que foram batizados na Páscoa; é esta a nossa experiência : experimentar que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, Vivo e Vivificante, pleno do Espírito, Senhor que dá a Vida! Tal experiência é fruto da presença do Espírito de Cristo que recebemos nas águas batismais! Eis! Como os antigos hebreus atravessaram o Mar Vermelho, como Jesus atravessou o Mar da Morte, nós, atravessamos as águas batismais, deixando o Egito da velha vida para entrar na Terra Prometida que é a comunhão com o Pai através do Seu Filho Jesus Cristo, pois recebemos o Seu Espírito Santo!


Fonte :
* Artigo na íntegra

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Ordem de Malta: a equipe de emergência da Igreja


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Ordem de Malta elege novo líder no sábado - ISTOÉ Independente
*Artigo de William Van Ornum,
professor de psicologia


‘Eles estão por toda parte : Síria, Jerusalém, Damasco, Turquia, Líbano, Haiti, África e até na cidade de Nova York.

A cruz maltesa de oito pontos (representando as oito bem-aventuranças do Sermão da Montanha), no peito ou nos ombros, identifica cada um dos 13.500 Cavaleiros e Damas da Ordem de Malta, ou os 82.000 membros da Malteser International.

Sua prioridade são os doentes e os pobres, que agora incluem os marginalizados, vítimas de perseguição e refugiados de diferentes fés e etnias.

No Camboja, a Ordem administra hospitais especializados para pacientes com hanseníase. A hanseníase não foi erradicada e em muitos lugares ainda é uma ameaça incapacitante à saúde.

As pessoas não gostam de leprosos. Nossa estranha doença as assusta’, explica Yim Heang, do Camboja. ‘Algumas pessoas mostram bondade e compaixão pelos leprosos, mas a maioria está preocupada com a infecção e não quer nenhum contato conosco.’

Durante o outono de 2013, bombas caíram sobre Aleppo, na Síria, uma das cidades mais antigas do mundo. As explosões demoliram estruturas que estavam em pé há centenas, talvez até milhares, de anos.

Sobrevoando Aleppo, via-se a multidão de refugiados desesperados e feridos que inundou o campo de refugiados sírios em Kilis, logo após a fronteira com a Turquia. No primeiro dia, 4.000 pessoas fugiram de seu país. Não havia comida, abrigo, remédio. A Malteser International trouxe os suprimentos necessários e construiu um hospital de campanha e um centro de triagem.

A Ordem de Malta apoia o Hospital da Sagrada Família em Belém, localizado em uma área que é um turbilhão de facções em guerra e grupos em oposição. É a maior maternidade da Palestina.

A Ordem de Malta não toma partido, mesmo nos conflitos mais violentos. Eles estão presentes para servir os doentes e os pobres.

Um filme sobre a Malteser International mostra os voluntários trabalhando em Mianmar, em uma área atingida por ciclones e inundações. Juntamente com os moradores, os voluntários plantaram 18.000 árvores – para servir de quebra-vento e barreiras de proteção da vila no futuro.

Mais de 25.000 médicos e enfermeiros já participaram dos trabalhos da Ordem. Os centros médicos são a marca registrada da Ordem de Malta. A maioria dos hospitais fica na Alemanha, França e Itália. Alguns possuem unidades especiais para doentes terminais, onde se oferecem cuidados paliativos. Durante a Primeira Guerra Mundial, a Ordem administrava hospitais em trens que viajavam para onde fosse necessário.

Paul Wright, cardiologista norte-americano, viaja para Calcutá todos os anos para oferecer exames e tratamento gratuito para os necessitados.

Ele ingressou neste ministério depois de visitar Madre Teresa, que o levou à Casa dos Moribundos. Madre Teresa o levou a uma sala onde as pessoas estavam prestes a morrer e disse : ‘Não podemos curá-las. Aliviamos a dor delas, oferecemos compaixão e muito amor.

O serviço e o desapego às coisas materiais o levaram a se sentir sereno. ‘Também descobri que preciso de poucas coisas para ser feliz’, disse Wright.

Em 2013, a Ordem de Malta comemorou seu 900º aniversário. Os 4.000 membros que puderam viajar para Roma receberam uma bênção papal.

A Rádio Vaticano disse que, embora a Ordem não seja um país, é uma entidade soberana. Tem um observador nas Nações Unidas, além de embaixadas em quase cem países.

Onde quer que atuemos, somos construtores da paz’, disse Jean-Pierre Mazery, ministro de Relações Exteriores. ‘Não dependemos de ninguém, não defendemos territórios, não participamos de conflitos, agimos apenas para ajudar as pessoas, independentemente de sua nacionalidade, etnia ou religião’.

A Ordem foi fundada no século XII para ajudar os peregrinos pobres enquanto viajam para a Terra Santa.

A Ordem tem atualmente menos de 100 religiosos professos que fazem votos permanentes de pobreza, castidade e obediência, embora não exijam vida comunitária. Os membros leigos compõem dois outros níveis de comprometimento. É dado um interesse especial à promoção da santidade de cada membro.

Nos Estados Unidos, a Ordem de Malta tem cerca de 1.300 membros. Seu trabalho pode não ser tão dramático quanto nos lugares mais distantes, mas eles patrocinam centenas de iniciativas de caridade. Entre esses iniciativas estão asilos, escolas católicas, voluntariado, serviço assistenciais.

Todos os anos, associações de diferentes áreas geográficas patrocinam peregrinações a Lourdes. Isso não apenas resume o carisma original da Ordem, mas também oferece a oportunidade de oferecer às pessoas doentes ou deficientes, juntamente com seus cuidadores, a participação no poder de cura do santuário mariano.

Pratique firmemente a religião católica apostólica romana e defenda diligentemente a caridade para com o próximo e, principalmente, para com os pobres e doentes.’ Esse dizer faz parte da oração individual que os membros fazem todos os dias. ‘Conceda-me as virtudes necessárias para poder cumprir de acordo com o Espírito do Evangelho, com um espírito desinteressado e inteiramente cristão’.’


Fonte :
* Artigo na íntegra

terça-feira, 28 de abril de 2020

Freiras na linha de frente contra o tráfico de seres humanos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 GABRIELLA BOTTANI
Irmã Gabriella Bottani

*Artigo de Sivia Constantini

‘Um provérbio etíope diz que ‘quando as aranhas juntam suas redes, elas podem abater um leão’. Esse é o espírito que anima Talitha Kum, a rede internacional de vida consagrada contra o tráfico de seres humanos.

Hoje, a rede fundada em 1990 está em 92 países dos cinco continentes. Um pequeno exército de cerca de 2.000 colaboradores, dos quais a maioria são religiosas, mas também há leigos e religiosos, dedicando suas vidas à tarefa de tentar salvar os escravos do século XXI.

Sim, estamos falando mesmo de ‘escravos’. Porque, de acordo com a Organização Mundial do Trabalho, estima-se que cerca de 40 milhões de pessoas estejam reduzidas à escravidão no mundo, em 182 países. E os números parecem estar aumentando.

Para entender a dinâmica dessa triste e ampla realidade, conversamos com a irmã Gabriella Bottani, missionária comboniana e coordenadora da rede Talitha Kum, e perguntamos a ela como ainda podemos falar de escravidão em 2020.

Uma das causas dessa situação se deve à grave vulnerabilidade, que piorou nos últimos anos. De fato, a vulnerabilidade não é o problema, mas a exploração. E, para nós da Talitha Kum, é importante enfatizar isso, porque a vulnerabilidade pode se tornar um ponto de encontro, de solidariedade, não necessariamente um espaço onde se possa explorar com fins lucrativos.’

– Quem são os escravos hoje?

Atualmente, os que são mais explorados em sua vulnerabilidade são mulheres, crianças (meninos e meninas) e populações migrantes.

As estatísticas são bastante consistentes ao afirmar que 30% são crianças menores de 18 anos e jovens adultos. Logicamente, a idade está ligada à capacidade prestar serviços, como acontece no mercado do sexo ou na servidão doméstica.

– Quais são as formas mais comuns de escravidão?

A exploração sexual é uma das formas de escravidão, embora com várias conotações. Porque, além da prostituição, há a pornografia.

Outra forma de escravidão é a exploração do trabalho, em que um nicho importante é a servidão doméstica. Mas há também escravos na área de pastoreio, construção, mineração, pesca, principalmente na pesca em alto mar. Os contextos são muito diversos.

E depois há o tráfico de meninas para casamentos forçados. Trata-se de um fenômeno que afeta não apenas a Ásia e a África, porque também foram registrados casos no mundo ocidental, por exemplo, nos Estados Unidos, mas também na Itália. Muitas vezes, esses fenômenos estão ligados às comunidades de migrantes que residem em nossos países e, em outros casos, são casamentos combinados na internet.

– Como alguém se enquadra na rede de tráfico de pessoas?

O fenômeno é extremamente complexo. Mas o que está na base é o desejo de uma vida melhor, de encontrar um emprego melhor.

Às vezes, essas pessoas recebem propostas concretas de trabalho escravo, às vezes emigram porque ouviram, de boca a boca ou por um anúncio, que em um determinado país se vive bem. Assim como nós, quando pensamos nos Estados Unidos ou Alemanha e temos certeza de que, nesses locais, é mais fácil encontrar um emprego melhor, sem ter feito uma análise séria da situação.

Às vezes, eles simplesmente tentam escapar da pobreza, uma pobreza digna, nem sempre da miséria desesperada.

Em geral, aqueles que vivem em um contexto de miséria são explorados dentro do país. É mais difícil para eles nos alcançar.

– Portanto, você entra no sistema de tráfico por um ato da própria vontade?

Devemos nos perguntar o que é vontade e liberdade. Entram temas na definição de ‘tráfico’ hoje, o que nos leva a profundas questões existenciais. Porque, se banalizamos, dizemos ‘coitadinho, eles o/a recrutaram e o/a levaram contra sua vontade.’ Mas nós, quando vamos à rua e conversamos com os meninos e meninas que vivem nessa situação, percebemos que isso não se encaixa realidade.

Na Sicília, por exemplo, meninos e meninas que se prostituem estavam passando fome. Eles queriam ou não? Que alternativa eles receberam? É muito complexo, porque alternativas são dadas quando uma pessoa tem um conjunto de possibilidades para escolher.

As desigualdades e ferimentos causados ​​por um modelo perverso impedem a possibilidade de escolha.

Por exemplo, eu trabalhei no Brasil com meninas que nasceram nas favelas, em barracos, e algumas foram abusadas e viveram em uma pobreza terrível.

Essas meninas chegavam à escola e atingiam o terceiro e o quarto ano da escola primária sem saber ler nem soletrar. Elas tinham uma desorganização tão grande do seu eu que eram completamente fragilizadas.

Essas meninas eram automaticamente recrutadas para exploração sexual.

Uma delas um dia veio me ver, estava feliz, ela tinha 10 anos e trazia um bebê nos braços. ‘Tia, ela me disse, olha a coisa mais linda que já fiz! Eu não sabia que poderia fazer uma coisa tão bonita!’ O filho nasceu dessa situação de abuso.

Às vezes, definimos e rotulamos ‘tráfico’ em categorias que não correspondem à realidade.

Existem situações em que o ‘sim’ da pessoa é a única opção possível.

É um sistema perverso que cria dinâmicas de grande pobreza.

Pensemos agora no problema do coronavírus. Fizeram confinamentos em todos os lugares e as pessoas estão morrendo de fome. Estão sendo criadas áreas assustadoras de vulnerabilidade. Quais serão as consequências, não sabemos.


– O que a rede Talitha Kum está fazendo nesta fase da pandemia de Covid-19?

Neste momento, muitas irmãs são forçadas a ficar em casa porque não podem sair devido ao confinamento.

Em alguns casos, com algumas organizações da Conferência Episcopal Italiana, estamos preparando e distribuindo kits de mantimentos para levar às pessoas que, de outra forma, passariam fome. Como aquelas que são forçadas à prostituição e que, sem clientes, não têm como sobreviver.

Colocamos trabalhadores para fazer máscaras. Em outros casos, as freiras levam o material para a casa das pessoas em fase de recuperação, para que a terapia ocupacional possa continuar e não interromper essa atividade produtiva, como crochê, artesanato… ou outras coisas que estavam fazendo.

– Qual é o carisma das irmãs de Talitha Kum?

O que nos une na rede Talitha Kum é a ‘abordagem centrada na vítima’, ou seja, a pessoa é o centro.

Então, dependendo do contexto, nosso acompanhamento é abrangente: formação humana, espiritual e apoio psicossocial, o que leva à reintegração econômica e, em vários casos, trabalhamos juntos na comunidade.

Por exemplo, há o trabalho manual, e os produtos são vendidos posteriormente. A anuidade é certamente um dos pontos comuns dos diferentes centros.

– Quantas pessoas vocês já salvaram?

Pelo contrário, são eles que nos salvam!

Mas falemos mais sobre a recuperação da vida. Em 2018, fizemos uma espécie de censo e percebemos que havíamos oferecido serviço a cerca de 15.500 pessoas em um ano.

Os serviços são diversos : acompanhamento espiritual, serviços de formação, etc. O serviço é muito extenso e costumamos fazer isso em conjunto com outras organizações. Nós não estamos sozinhos. Contribuímos para o processo de cicatrização, que é lento e traumático.

– O Papa Francisco fez da ação de vocês uma prioridade de seu pontificado. Que palavras ele quis compartilhar com vocês?

O Papa Francisco nos informou em várias ocasiões que se importa com a nossa ‘missão’, como ele a definiu. Por exemplo, ele insistiu na capacidade de colaborar. E acho que esse é o grande desafio.

O apoio do Papa é um dom que nos impulsiona a continuar com responsabilidade.

– O que a leva a continuar nessa luta contra a escravidão?

Neste momento, recolho também o trabalho que as outras irmãs fazem, e há histórias de fracasso, e são também essas que nos levam a seguir em frente.

Mas lembro-me do abraço no final da última Assembléia Geral, dado a nós por uma sobrevivente do tráfico : essa mulher descobriu que sua vida não era inútil e que ela podia fazer a diferença.

Ela havia escapado da Nigéria, chegou à Itália após mil incidentes e entrou no círculo da prostituição contra sua vontade. Então ela conseguiu escapar e se viu em um centro de acolhida administrado por freiras. Aqui ela fez todo o seu caminho de recuperação, de resgate à vida. Agora com 23 anos, ela retomou seus estudos e está reconstruindo sua vida. É isso que nos leva a continuar.

– E o que nós católicos podemos fazer?

Antes de tudo, é necessário não fechar os olhos. Tentar entender qual é a dinâmica, e não adquirir bens e produtos que provenham do trabalho escravo. Por exemplo, a Igreja nos Estados Unidos lançou uma campanha em favor de pescados que não empreguem mão de obra escrava na pesca.

E então, trabalhe para mudar a mente das pessoas, e essa é a responsabilidade especial dos educadores.

Outra ajuda é apoiar projetos. Um que é especialmente querido por nós é o Super Nuns, uma coleta de fundos à qual artistas de rua, designers e cartunistas se juntaram, para contar o que Talitha Kum está tentando fazer. Com as doações recebidas, eles nos ajudam a apoiar nossas redes.’



Fonte :
* Artigo na íntegra

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Padre José Ambrosoli: Doar a vida com alegria

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Novo beato comboniano - Missionários Combonianos
*Artigo da Revista Além-Mar


‘José Ambrosoli nasceu a 25 de Julho de 1923 no Norte da Itália. Fez o curso de Medicina durante os anos conturbados da Segunda Guerra Mundial. Em 1951, sentido o chamamento à vocação missionária, entra no Instituto dos Missionários Combonianos.

Foi ordenado em Dezembro de 1955 e partiu para África um mês e meio depois. Foi enviado para Gulu, no Norte do Uganda, entre o povo Acholi. Em 1961, foi transferido para a missão de Kalongo. Ali fundou o hospital que serviu como médico-cirurgião por mais de trinta anos.

Médico da caridade

«Deus é amor, há um próximo que sofre e eu sou o seu servo», dizia Ambrosoli. Tinha a reputação de ser um cirurgião competente e as pessoas chamavam-lhe «grande médico». Com o seu trabalho desenvolve o centro de saúde de Kalongo e consegue que seja declarado hospital. A estrutura é grande e funcional : 350 camas e 30 pavilhões. Também dá novo vigor à escola de obstetras e enfermeiras, que se tinha iniciado em 1955 e continua a ser uma das mais importantes do Uganda.

Em 1984, os médicos tinham-lhe detectado uma insuficiência renal significativa e aconselharam-no a não voltar a África ou, no máximo, a dedicar-se apenas a tarefas administrativas e a abster-se de fazer um trabalho que ocasionasse um grande desgaste físico, nomeadamente de realizar operações.

No entanto, como missionário, tinha claro que fora para África para dar a vida pelos mais necessitados. «Durante alguns meses», afirma José Carlos Rodrigues, que viveu com Ambrosoli nessa época, «testemunhei como ele tentou reduzir a sua atividade diária. Mas quando a guerra começou, em Janeiro de 1986, no hospital da missão tivemos uma grande afluência diária de doentes. Ele podia passar vinte horas na sala de operações a realizar cirurgias sem interrupção. O ambiente social era muito tenso. Os soldados do Norte, enfurecidos pela derrota, procuravam pessoas do Sul para vingar-se. O hospital estava cheio de ugandeses do Sul que tinham procurado refúgio. Mais de uma vez, Ambrosoli teve de confrontar soldados armados no portão do hospital que queriam entrar à procura de “inimigos escondidos”. As suas boas artes diplomáticas e o prestígio que tinha junto da população impediram uma chacina

Em Janeiro de 1986, o novo regime de Yoweri Kaguta Museveni (que ainda permanece na presidência) instalou-se em Campala. Após alguns meses de relativa calma, os soldados acholis reorganizaram-se e lançaram um movimento guerrilheiro com ataques surpresa a estradas e destacamentos militares. Acusados de colaborar com as forças rebeldes, os missionários passaram vários meses em prisão domiciliária em Kalongo. Em Janeiro de 1987, o exército, incapaz de resistir à situação de assédio constante por parte dos guerrilheiros, forçou todo o pessoal de Kalongo a abandonar a missão.

Depois de percorrer 120 quilómetros numa comitiva vigiada pelos militares, os missionários chegaram à cidade de Lira. Desde então, a única preocupação de Ambrosoli era encontrar um novo lugar para a escola de parteiras, também para que as alunas não perdessem o ano letivo. Depois de um mês de esforços e dificuldades intermináveis, a escola estabeleceu-se na missão de Angal, na região ugandesa do Nilo Ocidental. Quando regressou a Lira, no início de Março de 1987, para organizar a transferência das alunas e das religiosas responsáveis pela escola, adoeceu com insuficiência renal aguda.

Vida doada por amor

Naqueles dias, as irmãs combonianas realizaram as terapias que ele mesmo indicava, mas a situação não melhorava. Não existia no lugar outro médico e o plano era levá-lo até Gulu e depois transferi-lo para Itália. Suplicava : «Não! Não devíeis fazer isso, será demasiado tarde, porque tenho as horas contadas. Sabíeis que sempre desejei ficar com a minha gente, porque é que agora me mandais embora?» Contudo, depois agradeceu e disse : «Seja feita a vontade de Deus.» Colaborou em tudo para se preparar e partir. «O padre José – escreve o seu companheiro P.e Marchetti –, dá-se conta do declínio da vista e da insensibilidade nas pernas, inteiramente consciente de que chegou o momento supremo. Repete com vigor e depois segue como pode as orações. Depois fixa os olhos na parede, em direção ao alto, como se visse alguém. As respirações distanciam-se e sem qualquer contorção ou estertor, apaga-se, enquanto o batimento do coração abranda gradualmente, até cessar.» Coube ao P.e Marchetti colher as suas últimas palavras no dia 27 de Março de 1987 : «Senhor, faça-se a tua vontade – depois como um suspiro – mesmo que fosse uma centena de vezes

José Ambrosoli impressionou pela sua mansidão, paciência e bom humor. Incarnou as mãos de Jesus que curam e sempre Lhe atribuiu explicitamente os seus sucessos. O Papa Francisco aprovou o milagre que abre caminho à sua beatificação. A celebração realizar-se-á na cidade de Kalongo no próximo dia 22 de Novembro.’



JIRENNA: NOVO BEATO COMBONIANO

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* Artigo na íntegra

domingo, 26 de abril de 2020

Pele, carne e ossos


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Somos agressivamente apunhalados, porque moramos sozinhos; e também devido à impaciência de um espaço, casa ou apartamento estreito, na convivência humana em família.
 *Artigo do Padre Geovane Saraiva,
jornalista, colunista e pároco
de Santo Afonso de Fortaleza, CE


‘O isolamento, ou confinamento, como queiram, em nossos aposentos ou casas, pesa e exige enorme renúncia, mas incomparavelmente menor, diante da dolorosa angústia de muitos irmãos e irmãs que passam pelo sofrimento na própria pele, carne e ossos, pela devastação da Covid-19, e também pelas pessoas relacionadas : os seus cuidadores.

Ficar em casa custa muito, sim! Como é indispensável com ponderações, nestes tempos de Coronavírus! Somos todos, agressivamente, atingidos por tal força devastadora, em primeiro lugar, por causa da idade avançada de muitas pessoas que moram sozinhas; e também devido o incômodo de um espaço, seja numa casa ou um apartamento pequeno, sem esquecer a cruz pesada da aglomeração, exigindo-se renúncia e doação, para que a convivência humana em família seja boa saudável.

Distanciados dos próprios interesses, vontades pessoais e individuais, convém lembrar, mais do que nunca, que, na dadivosa vontade divina, o que mais importa nessa circunstância é a vida como dom e graça. Vejamos e sintamos, providencialmente, aos olhos da fé e da esperança, dessa maneira, a mão afável de Deus a se manifestar em nosso favor.

Associados ao mistério da encarnação, na Anunciação do Senhor, quando Jesus entra no mundo querendo uma única coisa : habitar entre os seres humanos e reconciliar todas as coisas consigo mesmo, como na seguinte manifestação : ‘Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!’. Depois da mensagem de Deus pelo anjo Gabriel, em meio às perplexidades, temos a resposta de Maria : ‘Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra’ (cf. Lc 1, 38). Assim seja!’


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* Artigo na íntegra

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Teologia do acolhimento virtual: desafios para tempos de pandemia e pós-pandemia

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Será necessária pensar uma teologia do acolhimento virtual-tecnológico
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante


‘Vivemos tempos novos. Tristes, mas mesmo assim, novos. Essa nova realidade que se manifesta hoje na vida cotidiana ao redor do mundo é algo que nunca passamos e, por isso mesmo, tudo parece diferente, assustador, temeroso. São diversos os setores sociais que estão se adaptando a essa nova realidade. As dinâmicas de trabalho, de ensino e de relacionamentos têm sido reelaboradas por diversas pessoas para que possam dar conta de cumprir os prazos de trabalho, as agendas de escritas acadêmicas, bem como manter de alguma forma saudáveis os relacionamentos amorosos e de amizades.

Toda essa nova dinâmica que demanda uma nova forma de vida traz consigo os grandes desafios. Toda nova época é assim. Basta que nos lembremos das aulas de História que tivemos ao longo de nossos estudos para perceber que todo período crítico na sociedade gera novas formas de se pensar a relação entre nós e o mundo.

Da mesma forma, a teologia não está alheia a isso. Toda teologia é também fruto de seu próprio tempo. A ideia de uma teologia que existe nos céus e que de lá desce para a Terra e serve para todos os momentos da história é fantasiosa e, não raras vezes, desonesta. Uma simples leitura do texto bíblico deixa isso bem claro. Como conciliar a teologia da retribuição dos amigos de Jó com aquilo que diz o Eclesiastes? Ou ainda, como relacionar a imagem do Deus da aliança das bênçãos e maldições de Deuteronômio com os ensinamentos de Jesus de que aos pobres que se revela o Reino de Deus?

Se para além do texto bíblico, levarmos em conta a história do cristianismo isso se mostra ainda mais gritante : quem, ainda hoje, acharia razoável que as mulheres ficassem caladas nas reuniões cristãs e, caso houvesse dúvidas, perguntassem a seus maridos, como afirma o texto de Coríntios? Ou ainda, quem hoje acharia correto ter na família uma pessoa escrava, tal como fala o texto de Efésios?

Com isso em mente, é preciso ter consciência de que novos tempos demandam novas teologias. Isso não quer dizer jogar tudo o que se tem fora, mas, a partir do que se tem e a partir das novas realidades, propor teologias e interpretações da mensagem bíblica que façam sentido para o tempo presente, e alcancem os corações de homens e mulheres que na situação atual se perguntam ‘onde está Deus’?

Diante disso, faz-se necessário pensar novas teologias para o tempo de pandemia e também para o tempo de pós-pandemia; teologias que deem conta de pensar um ser humano que teve que se isolar para que a sociedade não sucumbisse ao desastre como aconteceu em alguns países e, ao mesmo tempo, pensar uma relação desse ser humano com Deus para além da liturgia dos templos, que se faz no íntimo de cada lar e juntamente com uma comunidade virtualizada, sem deixar de ser real e em comunhão com os membros dessa mesma comunidade.

Em outras palavras, será necessária pensar uma teologia do acolhimento virtual-tecnológico, na qual ao mesmo tempo em que essas pessoas se sintam acolhidas existencialmente em suas dificuldades e dramas causados pelos períodos de isolamento social, também possam reconhecer que Deus não se faz longe, mas perto e dentro de toda pessoa que crer, dando forças para continuar na caminhada, em esperança de que apesar das dificuldades Ele não nos deixa desamparados.

Esse acolhimento, todavia, não deve ser pensado somente em seu uso corriqueiro e muitas vezes simplista de meramente auxiliar financeiramente outras pessoas ou levá-las para casas onde pessoas cuidam delas. Muito além disso, deve ser um acolhimento disposto a ouvir, compreender, e tentar entrar no mundo do outro para, a partir daí, providenciar uma palavra que possa tocá-lo e gerar vida ao ser ouvida, mesmo que de maneira virtual e distante fisicamente.

Consequentemente, isso implica também um novo vocabulário teológico, que dê conta de alcançar uma nova geração que já nasceu dentro das vivências virtuais e tecnológicas, às quais nós estamos entrando nesse momento. Para esses, por exemplo, acredito que faça mais sentido entender a relação entre Pai e Filho da teologia cristã a partir do conceito de herança numa programação orientada a objeto a entender o que vem a ser a consubstancialidade do século IV da era comum.

Esse triplo movimento de ressignificar, traduzir e criar novos termos e teologias de maneira que possam fazer sentido para uma sociedade em e pós-pandemia é, talvez, um dos maiores desafios de teólogos e teólogas de nossos dias e dos próximos que virão.’



Fonte :
* Artigo na íntegra

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Padre, a gente sabe rezar!

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Por causa do isolamento social diante de uma pandemia, a vivência da fé, em certa medida, também se viu diante deste desafio. Não seriam mais possíveis os encontros celebrativos
Por causa do isolamento social diante de uma pandemia, a vivência da fé, em certa medida, também se viu diante deste desafio. Não seriam mais possíveis os encontros celebrativos.

*Artigo do Padre Carlos Henrique Alves de Resende, 
Diocese de Divinópolis, MG


‘Repetindo as palavras do Papa Francisco, no momento extraordinário de oração em tempo de epidemia, realizado no adro da basílica de São Pedro, no último dia 27 de março de 2020 : ‘fomos surpreendidos por uma tempestade’. No cenário de enfrentamento à Covid-19, o isolamento social se apresentou como uma medida necessária e urgente a fim de minimizar os contágios. Do dia para a noite, fomos ‘jogados’ no espaço virtual. 

Por mais que, de certo modo, fizesse parte da rotina de grande número de pessoas, tratava-se de uma experiência complementar, diferente do que temos vivido nos últimos dias, onde o ambiente virtual tornou-se, praticamente, o único espaço de encontro com as pessoas. A vivência da fé, em certa medida, também se viu diante deste desafio. Não seriam mais possíveis os encontros celebrativos. E, tragicamente, tudo isto acontece bem no período mais solene de nossa vida litúrgica : as celebrações da semana santa, nossa páscoa anual. 

O Santo Padre nos dizia, naquele comovente momento de oração, que ‘a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades’. E nos exortava à ‘coragem de abraçar todas as contrariedades da hora atual, abandonando por um momento a nossa ânsia de onipotência e possessão, para dar espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar’. Este desafio tem sido enfrentado desde o primeiro momento em que nossas assembleias foram impedidas de se reunir. As iniciativas se multiplicaram no desejo de ajudar os fiéis a sentirem a proximidade da Igreja. Todas elas são louváveis, pelo esforço de tentar.

Contudo, não sei se entendemos bem o convite à criatividade. Vale nos perguntarmos : o que entendemos por ser criativos? Resisti pensar sobre o assunto, e muito mais, escrever algo a respeito. Acreditava que, no meio da tempestade, o que realmente interessava era a pergunta, como sair dela. Contudo, temos percebido que o período de turbulência está se alongando e se alongará ainda mais. Diante de algumas realidades já vistas, não resisti à tentação de pensar sobre elas. E justifico : concordo que precisamos de ‘remédios’ que cuidem da ‘dor espiritual de nossa gente’; mas, tenho receios porque toda medicação tem efeitos colaterais e contraindicações : maiores ou menores. 

Na ideia de que a ‘tempestade desmascara’, uma possível leitura é o fato de muito do que estamos vendo, no esforço de celebrar a fé, neste cenário, esteja desmascarando uma não assimilação real e profunda das intuições iluminadoras do Concílio Vaticano II. A primeira pauta do Concílio se debruçou sobre questões litúrgicas. Contudo, quando da reforma dos textos litúrgicos, sobretudo, nós sabemos que a grande impostação conciliar era eclesiológica e, por assim dizer, pastoral. Deste modo, antes de pensar nas questões litúrgicas, gostaria de resgatar alguns aspectos de nossa compreensão eclesial, reafirmadas na escola conciliar.

Parto de um fato. Já estou para celebrar 13 anos de ministério; logo nos primeiros meses, no entusiasmo da vida paroquial, recordo-me de uma ocasião em que fui à capela do Santíssimo em um dia de adoração comunitária. Ali, estava um grupo de senhoras rezando. Confesso que, no olhar de um padre novo, interessado em assuntos de liturgia, 1 Sacerdote da Diocese de Divinópolis – MG, Doutorando em Teologia Sacramental do Pontifício Ateneu Santo Anselmo em Roma.  A ‘reza’ não era a mais organizada. Ao final, tomei a iniciativa e disse às senhoras, ali reunidas, que iria lhes oferecer um livreto para rezarem melhor.

Uma delas, na sua simplicidade, me deu naquela hora uma das mais importantes aulas de teologia que já tive, ao me responder : ‘Ô padre, a gente sabe rezar!’. Não se trata de uma resposta maleducada; mas, de uma bela lição dada a um jovem padre acerca de uma das significativas verdades evidenciadas pelo Concílio Vaticano II : somos um povo sacerdotal. Será que não havíamos compreendido bem a preciosa Constituição Pastoral sobre a Igreja, chamada Lumen Gentium, onde o Concílino nos ensinava que somos um povo sacerdotal (LG 10)? Será que nos que esquecemos de que o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se diferenciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo (LG 10)?

Pode ser que não estejamos tendo em vista a profundidade do texto conciliar, quando nossos bispos nos ensinaram que os fiéis, incorporados na Igreja pelo Batismo, pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela; assim, quer pela oblação, quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente, mas cada um a seu modo, todos tomam parte na ação litúrgica (LG 11). Diante de algumas iniciativas se impõem algumas perguntas : será que não estamos nos esquecendo que os fiéis são a Igreja? O que entendemos por celebrar? O que entendemos por Eucaristia? Um rito a ser executado? Uma cerimônia a ser vista? Um alimento a ser digerido? Uma experiência mágica? Ou uma experiência ritual que se confunde com uma realidade existencial? Talvez a resposta não seja por exclusão; e, esse, acredito, seja um dos nossos equívocos.

Ao mesmo tempo em que a Sagrada Eucaristia é um mistério a ser celebrado é, também, um mistério a ser imitado. Ao mesmo tempo em que é um alimento divino; é, ainda, um ideal de vida que se impõe : a configuração a Cristo. Ao mesmo tempo em que é um rito a ser vivido; é, por conseguinte, uma vida a ser testemunhada : a vida cristã. Digo isso acreditando que considerar um aspecto em detrimento de outros, sempre pode ser uma experiência desastrosa, sobretudo, neste tempo. Daí a preocupação com efeitos colaterais daquilo que temos oferecido ao nosso povo.

Acredito que precisamos pensar algumas coisas : se motivamos nosso povo a simplesmente ver, pelos meios de comunicação, os atos litúrgicos, será que amanhã teremos argumentos para motivá-los à vivência comunitária novamente? Talvez neste mundo tão individualista, descubram a comodidade de ver de casa e julguem ter o mesmo efeito. E sabemos que não tem. Será que motivar nossa gente a serem meros espectadores seria o remédio mais eficaz neste momento? Pode ser que se sintam ‘detentores do controle remoto’ e reivindiquem o poder escolher o que ver, sem nenhum compromisso de conversão, sem nenhum vínculo de comunidade.

Se a Eucaristia gera a Igreja, acredito que teremos uma série de problemas, com algumas das nossas ofertas de hoje que podem não contribuir para a edificação do Corpo de Cristo. Serão as práticas de devoção à Santíssima Eucaristia, como carreatas ou até os voos com o Santíssimo as melhores propostas? Serão propostas de oferecer aos fiéis a possibilidade da Sagrada Comunhão Eucarística, fora da missa ou ao menos de uma pequena celebração da Palavra de Deus, uma alternativa salutar? Algumas práticas devocionais de culto aos santos, serão realmente as mais indicadas para o momento? São questionamentos e não críticas. São perguntas que, sinceramente, penso não têm respostas prontas hoje. Por isso vale, antes de qualquer iniciativa, por mais bem-intencionada que seja, a pergunta pela legitimidade teológico-litúrgica do que nos propomos fazer.

Ao contrário do que muitos dizem, ‘liturgia não é terra de ninguém’. Liturgia é oração de Cristo total, cabeça e membros, é a oração da Igreja (SC 7). Vale visitar a Tradição e perceber se o que estamos propondo tem um sadio fundamento. Devemos considerar o perigo da linguagem. Muitos colocaram nas portas das igrejas cartazes do tipo : ‘não teremos missa’, ou até divulgaram ‘as missas estão suspensas’ e ainda vimos expressões do tipo ‘missas privadas’, ‘missas sem a presença de fiéis’, ‘missas online’.

Parece que no fundo ainda existem algumas compreensões pré-conciliares : ‘ter missa’, ‘assistir à missa’, ‘receber a Comunhão’ e ‘tomar a Comunhão’.

O conceito de Eucaristia parece sempre exterior; algo ‘fora’ de nós; a que assistimos ou, de alguma forma, obtemos e da qual nos apossamos, como se fôssemos frequentadores de teatro ou consumidores; mas, não algo que somos chamados a viver e a nos tornar. Será que foi isso que a Tradição genuína da Igreja nos ensinou? Será que a partir da fundamentação bíblico-teológica do sacramento, não estamos minimizando sua grandeza? Não podemos nos esquecer de que, quando celebramos a Sagrada Eucaristia, acima de tudo, reunimos como um Povo, o Povo de Deus (LG 5). É o mistério de um corpo que reúne seus membros para alimentar-se, a fim de se tornar mais plenamente aquilo que é : um corpo. A assembleia que se forma é um sacramento; é o primeiro sinal, não é predeterminada ou selecionada, mas convocada pelo Espírito : esta é a primeira matéria para celebrar. É preciso o povo convocado, esta é exatamente a primeira rubrica do missal romano para celebrar a celebração eucarística. Este povo que se reúne em torno dos sinais do pão e do vinho, para ouvir e meditar a Palavra e clamar ao Espírito que nos faça ser Corpo, assim como fez com que o Pão e o Vinho o fossem. (EE 23).

A tradição da Igreja se firma sobre os pilares da Lex Orandi, Lex Credendi, Lex Vivendi. O modo como rezamos determina o modo como cremos e vivemos. Por isso, o cuidado e a preocupação que devemos ter com o modo como rezamos. A liturgia é uma grande escola de fé. Salvatore Marsili, em sua ativa participação no movimento litúrgico, já recordava que liturgia é teologia. Ou seja, o que fazemos e o modo como fazemos expressam e ensinam uma verdade de fé. Muito tem se questionado se algumas das iniciativas vistas neste tempo realmente buscam o consolo dos fiéis. Será que não visam simplesmente à manutenção da estrutura? E o que é curioso, em tempos que falamos da necessidade de renovar a estrutura. Parece que não vai funcionar bem, transferir para o mundo virtual, algumas experiências que já vimos fracassar no mundo real. Será que não estamos diante de uma teologia eucarística rasa, fragmentada, travestida de uma preocupação de cuidado?

Desde o início da pandemia, o Papa Francisco tem pedido aos pastores proximidade para com os fiéis. Em uma entrevista telefônica ao jornal La Repubblica, publicada na quarta-feira, 18 de março, ele sublinhava a necessidade de, durante esse período de isolamento, procurar uma nova forma de nos aproximarmos uns dos outros numa relação concreta tecida de atenção e de paciência. Acredito que, na Igreja no Brasil, temos uma grande luz. Logo no objetivo geral das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora (DGAE), nossos bispos nos convocavam ‘a evangelizar no Brasil cada vez mais urbano, pelo anúncio da Palavra de Deus, formando discípulos e discípulas de Jesus Cristo, em comunidades eclesiais missionárias, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, cuidando da Casa Comum e testemunhando o Reino de Deus rumo à plenitude’. Logo, seria uma proposta oportuna, para este momento de incertezas, o que já nos havia sido indicado por nossos bispos : ‘A casa, enquanto espaço familiar, um dos lugares privilegiados para o encontro e o diálogo de Jesus e seus seguidores com diversas pessoas (Mc 1,29; 2,15; 3,20; 5,38; 7,24)’ (DGAE 73).

Talvez seja o tempo para cultivar, na pequena comunidade – a família, com os  vizinhos –, uma verdadeira vida de oração, enraizada na Palavra de Deus, tendo em Jesus Cristo, o orante por excelência; e; na Oração do Senhor, o paradigma de toda oração, verdadeiros sustentos. Pela oração cotidiana, os membros da comunidade se sentem consolados, redescobrem sua dignidade de filhos e filhas de Deus, tomam consciência de que são colaboradores de Deus na missão e são impelidos a saírem ao encontro das pessoas e à prática da misericórdia (DGAE 95).

O momento nos desafia a corajosamente ajudar nosso povo a viver o mistério da presença real de Jesus Cristo que o Concilio Vaticano já protagonizava : ‘O Senhor está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu : ‘Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles’ (Mt 18,20)’ (SC 7). Neste cenário, não seria, pois, oportuno, valorizar e oferecer pistas para as Celebrações da Palavra em família como uma proposta mais segura? Não poderíamos usar as mídias para orientar a leitura orante da Palavra de Deus? O Concílio já nos advertia que a Liturgia é, simultaneamente, a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força (SC 10). Mas, não esgota toda a ação da Igreja (SC 9).

Não seria um caminho, pensar a Liturgia como o exercício da função sacerdotal de Cristo, onde os sinais sensíveis significam e, cada um à sua maneira, realizam a santificação dos homens (SC7)? Deste modo, não seria salutar perceber que, embora os templos estejam fechados, a liturgia é celebrada como desdobramento de um mistério que exige consequências na vida de quem crê? Temos diante de nós o desafio de uma Igreja que ultrapassa as paredes do templo e se faz pobre para os pobres (EG, n. 198). Talvez não fosse a hora de, ao mesmo tempo, com coragem profética, a Igreja assumir alguns gestos e se fazer mais próxima, dos pobres, mas também daqueles que detém os ‘meios de produção’, para serenar-lhes o coração e ajudá-los a fazer uma experiência de fé que os levem a um cuidado maior com os irmãos, para que se sintam chamados a abrir mão de algumas seguranças econômicas, que poderão ser reconstruídas?

Muitos ainda têm dúvida acerca do que vem primeiro : a vida ou a economia. Não seria o tempo de gastarmos nossas forças e nossos recursos no cuidado das pessoas? Não seria um caminho propício, o de favorecer iniciativas que promovam a vida solidária e a proximidade para com os que sofrem? Mesmo nas ‘missas transmitidas’, não precisaríamos superar a mera assistência/audiência, a mera transmissão e o mero individualismo em rede? Não seria preciso buscar formas que permitam um verdadeiro encontro, uma verdadeira escuta e um verdadeiro diálogo com as pessoas que se conectam com as redes digitais da Igreja? Não seria importante provocar os fiéis para que este momento seja vivido como um momento intenso do cultivo da espiritualidade; mas, sem atribuí-lo um valor substitutivo? Acredito que precisaríamos cuidar mais da forma da celebração a ser transmitida; ela é sempre ação de toda a Igreja (IGMR 5).

Será que basta apenas levar em conta a transmissão, sem se preocupar com o modelo apresentado na mesma? Não sei se estamos bem atentos ao missal romano que prevê três possibilidades para a celebração : a ‘missa com povo’, a ‘missa concelebrada’ e a ‘missa com assistência de um só ministro’ (IGMR 252). Portanto, no contexto em que estamos, a Igreja propõe a celebração desta última, entendida, de acordo com a IGMR, como a missa celebrada por um sacerdote, ao qual assiste e responde um só ministro (n. 252), mas agora transmitida pelas mídias (a IGMR também deixa bem claro : Não se celebre sem a assistência de um ministro ou ao menos de algum fiel, a não ser por causa justa e razoável, n. 254).

Porém, que se tenha claro que a oração do presbítero, ainda que com um só ministro; e mesmo em casos de justa causa, onde ele se veja obrigado a rezar sozinho, será sempre a oração de toda Igreja; portanto, a oração de todo o povo, em comunhão com todo povo. Não seria viável, onde possível, que ao invés de cada padre transmitir a sua missa, se reunissem pequenos grupos de presbíteros para fazê-lo? Não seria mais pedagógico? Não seria mais testemunhal? Reapresentar o Ofício Divino, não poderia ser uma grande possibilidade para celebrar a fé, como oração pública da Igreja, fonte de piedade e alimento da oração pessoal (SC 90)? Não sabemos por quanto tempo ficaremos assim.

Ademais, é preciso fazer desse tempo uma ocasião que nos ajude a voltarmos mais qualificados para nossas assembleias litúrgicas. Por isso, o desafio de não deixar nossas iniciativas serem conduzidas pela vaidade ou por uma teologia rasa. Talvez, como nunca, tenhamos hoje, a oportunidade de usar as mídias como instrumento de catequese, de aprofundamentos de temas e mesmo de ‘viralização’ do Evangelho anunciado; mas, sobretudo, testemunhado. Quem sabe não é hora de apresentar a riqueza humana e espiritual de nossa Igreja, através dos trabalhos de tantos grupos e pastorais? Como já aconteceu em outros períodos históricos, provisoriamente nosso povo vive um grande ‘jejum da comunhão eucarística’. Mas não estamos privados da comunhão com o Senhor. Seu Corpo santo nos convoca. Não só na ‘branca hóstia’, com a qual os fiéis estão, de modo geral, agora, impedidos de se encontrarem; mas, também, na força de sua Palavra e no irmão que nos estende a mão e precisa, mais que nunca, de nosso cuidado solidário.

São João Paulo II nos recordava que o mistério eucarístico – sacrifício, presença, banquete – não permite reduções nem instrumentalizações; há de ser vivido na sua integridade, quer na celebração, quer no colóquio íntimo com Jesus recebido na comunhão. Então a Igreja fica solidamente edificada, e exprime-se o que ela é verdadeiramente : una, santa, católica e apostólica; povo, templo e família de Deus; corpo e esposa de Cristo, animada pelo Espírito Santo; sacramento universal de salvação e comunhão hierarquicamente organizada (EE 61).

Não podemos perder a sensibilidade de perceber que nosso povo sabe rezar. Não precisamos fazer para eles simplesmente verem. Talvez seja mais eficaz ajudá-los, com pistas, com provocações, para que eles celebrem e vivam a força do mistério celebrado a partir da Igreja Doméstica, ou seja, a sua família. São perguntas... Perguntas que não desejam diminuir ou desqualificar o esforço de ninguém. Mas são perguntas que desejam provocar a reflexão para que este tempo seja oportunidade de crescimento. Seja verdadeiramente uma oportunidade pascal. Um tempo que nos ajude a dar passos na tão sonhada ‘conversão pastoral’.’



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