quarta-feira, 22 de abril de 2020

'Acolher o isolamento social é cuidar de si e daqueles que são importantes', diz monja beneditina

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Acolher o isolamento social é cuidar de si e daqueles que são ...
A crise de nossa sociedade não foi provocada pelo coronavírus. Quantas crises enfrentamos? (Thiago Ventura/DomTotal)

*Artigo de Thiago Ventura,
jornalista



‘A experiência do isolamento social provocada pelo novo coronavírus tem sido traumática para muita gente. Medo da doença e da morte, saudade da família e amigos e a falta do convívio público são alguns do sentimentos vividos pela população. Acostumados e se isolar do mundo por opção de fé, monges e monjas encontram na leitura e meditação o segredo para manter a fortaleza nesses momentos.

Em entrevista ao DomTotal, a madre Maria Letícia da Silva, OSB, abadessa do mosteiro Nossa Senhora das Graças, em Belo Horizonte aponta para a importância do silêncio e recolhimento, valores conflitantes com a agitação das grandes cidades e vida conectada.  ‘Não precisamos responder a tudo, sempre, pois algumas respostas são dadas pelo tempo. Silenciar nos permite, quando necessário for, agir virtuosamente, de forma que nos edifique’, afirma.

DomTotal : Como pode o cristão viver sua fé confinado em casa, sem acesso a missas presenciais e a experiência em comunidade?

Madre Maria Letícia, OSB : A fé cristã é uma experiência concreta com a pessoa de Jesus que transforma a vida do cristão. Essa experiência não está limitada a um determinado período ou circunstância, mas engloba toda a pessoa, todo o tempo e todas as situações. O cristão é aquele que se dispõe a modelar o seu ser tendo como referência a vida de Jesus. Isso é um processo lento, mas sempre ativo. Vivemos para formar em nós a imagem do Filho de Deus que nos foi Revelada. À medida que caminhamos, precisamos nos tornar sempre mais parecidos com o nosso ideal, para um dia podermos dizer como São Paulo : ‘Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim’ (Gl 2). Essa é a peregrinação humana neste mundo, neste tempo finito que nos é dado como um presente.

O tempo nos é dado por Deus como um dom, para que aproveitemos de todas as oportunidades para formar em nós a imagem do Cristo. Esse não é um tempo de confinamento, de nos sentirmos encarcerados ou aprisionados, pois algo muito peculiar que a revelação de Jesus nos trás é justamente a liberdade de filhos. A liberdade do Filho não foi tirada nem mesmo diante de seu julgamento, de sua Paixão e morte. A liberdade do cristão se encontra em sua entrega ao Pai, em seu abandono confiante nas mãos d’Aquele que de fato cuida de nós. Nada nem ninguém tira a liberdade de um cristão, somente ele pode entregá-la por suas escolhas.

Estamos em um tempo de sofrimento humanitário mundial. Permaneçamos confiantes que também o coração do Pai chora conosco cada perda, assim como o Filho chorou a morte de seu amigo Lázaro. Vivemos em um tempo que não cabe lamentações : ‘Ah! É uma pena que não tenhamos missas diárias! Ah! É uma tristeza que não possamos viver a Semana Santa... Ah!!!’. Não é tempo de queixas. Estamos no tempo de valorizar a nossa Igreja Doméstica, vivendo ao lado das pessoas que nos foram confiadas. Elas são a nossa Comunidade! Estamos em um tempo valioso e único, tempo em que os pais podem estar ao lado de seus filhos, podem brincar com eles, podem valorizá-los e corrigi-los. Tempo em que o esposo pode olhar sua esposa, realçando a importância que ela tem em sua vida. Tempo de celebrar as Festas cristãs junto das pessoas que amamos. Tempo da família. Instituição em crise? A família é o lugar onde Deus quis habitar e quer ainda se fazer presente. Tempo, como todos os outros tempos, presente de Deus confiado a nós. O Senhor deseja que em todos os fatos de nossa história estejamos atentos a passagem que Ele faz, a presença que Ele assegura, ao consolo que Ele nos oferece, para que em todo tempo possamos crescer na fé.

O silêncio, a escuta, o contato consigo próprio são virtudes aprendidas pelas irmãs nos mosteiros. Como todos podem desenvolver essas características?

Madre : O silêncio, a escuta, estar na solidão são ocasiões privilegiadas para aprofundar a relação com Deus, consigo mesmo e também as relações interpessoais. Nossa cultura nos volta ao barulho, ao muito falar e argumentar, à tentativa de sempre convencer o outro. Além disso, somos voltados para eventos de multidões, show’s, esportes, Shopping’s cheios, bares, todo o tempo nos trombamos. Com frequência, fugimos da solidão, fugimos do silêncio e pouco espaço damos para a escuta do outro e do Outro. Muitas vezes, essa fuga é um subterfúgio para não nos encontrarmos conosco mesmo, para não nos depararmos com questões essenciais de nossa vida, de nossas famílias. Perguntas oportunas para vivermos bem o silêncio, a solidão e a escuta são aquelas que nos leva ao sentido de nossa vida. As escolhas e direcionamentos que estamos fazendo nos conduz de fato a meta que queremos alcançar ou nos distanciam?

A escuta é uma faculdade necessária à qualquer relação e ao convívio. Ela é uma atitude concreta de amor e de atenção ao outro, mas está intrinsecamente ligada a nossa capacidade de silenciar. Silenciar é uma virtude e como tal se adquire pela escolha de exercitá-la. Acertando, errando e reescolhendo. Somente o silêncio externo e interno nos permite escutar, apreender aquilo que escutamos, refletir sobre o que escutamos, avaliar o que escutamos... quantos verbos podem entrar antes do ‘responder’, do ‘falar’, do ‘agir’. Silenciar nos permite discernir os momentos nos quais é necessário que não se diga alguma palavra. Não precisamos responder a tudo, sempre, pois algumas respostas são dadas pelo tempo. Silenciar nos permite, quando necessário for, agir virtuosamente, de forma que nos edifique e edifique também aqueles que se encontram ao nosso redor.

A solidão é o espaço propício para o silêncio e a escuta de Deus. Mas, para crescer na relação com Deus, antes é necessário passar por nós mesmos. O autoconhecimento é um caminho seguro, indicado por muitos místicos da Igreja, para alcançar a Deus. Conhecendo-nos, com coragem e transparência, podemos potencializar os talentos que naturalmente nos foram confiados; podemos trabalhar e fazer crescer as aptidões que não recebemos de forma natural, mas que são possíveis de serem adquiridas; podemos aceitar e acolher as propriedades que, por algum limite, não poderemos desenvolver. Nossa! O autoconhecimento é um caminho libertador que refletirá em todos os aspectos na vida humana. As relações se tornam mais leves e livres, com menos ‘picuinhas’; nos trabalhos sabemos onde rendemos mais e aprendemos a trabalhar junto a outras pessoas, com espírito de cooperação; com Deus ficamos mais agradecidos pelos dons que recebemos; conosco mesmo nos aceitamos como somos e nos oferecemos aos outros com generosidade.

De que forma a abadia tem lidado com esse surto global?

A vida monástica é uma oferta a Deus no louvor, na intercessão e na súplica constante pela Igreja e pelo mundo. A monja doa-se ao Senhor como oferta pela humanidade, com tudo aquilo que compõe nossa humanidade. Frente ao sofrimento que passamos, nossa Comunidade se une às pessoas que sentem medo para pedir ao Senhor que ‘aumente a nossa fé’, infundindo em nossos corações a confiança de filhos em seu amor. Nossa Comunidade se une às pessoas em luto, entregando a Deus nosso sofrimento pelas vítimas da pandemia, pedindo o consolo. Nossa comunidade se une aos profissionais dos serviços essenciais, àqueles que não podem parar em suas casas, pedindo ao Senhor a proteção contra todo o mal, a força necessária e a coragem para servir a sociedade com o mesmo amor de Cristo. O Mosteiro de Nossa Senhora das Graças se sente muito próximo do mundo, experimenta a dor e o sofrimento, pois todos somos atingidos pela pandemia que flagela algumas famílias de forma particular, tirando a vida de entes queridos. Ninguém está fora, ninguém pode pensar que está livre dos sofrimentos humanitários. Estamos todos juntos louvando, intercedendo e suplicando ao Senhor, confiantes de que Ele está ao nosso lado.

Existe algum conselho de São Bento previsto na regra para tempos de crise como o que vivemos?

A crise de nossa sociedade não foi provocada pelo coronavírus. Quantas crises enfrentamos? Crise de valores fundamentais que sustentam nossa vida familiar, humana, social e espiritual. Essa pandemia vem sublinhar as dificuldades que já encontramos ao nosso redor : egoísmo, busca de vantagens para si, supervalorização da economia em detrimento dos pobres, marginalizados e todos aqueles que se encontram nas ‘periferias existenciais’, como nosso Papa Francisco costuma dizer. Crise que agrava e acentua tantas outras crises. Fica a pergunta : Até onde vamos para sustentar valores destorcidos, muitas vezes contrários até mesmo a vida?

São Bento ensina que a monja deve buscar viver a estabilidade. Esse é um compromisso que a monja assume como voto. A estabilidade afronta nossa realidade de escolhas e pessoas ‘descartáveis’, contribui na fidelidade aos demais votos e aponta para a estabilidade infinita de Deus. Deus é sustento para a criação por sua estabilidade, firmeza, segurança. Ele é sempre o mesmo. Tem seu projeto de amor para a humanidade e age na história para levá-lo a termo. Deus realiza o que Ele diz, porque Ele é agente da história.

Ser reagente significa ser instável. Minhas ações mudam de acordo com a resposta que encontro no meio, nas crises que vejo ao meu redor. Enfim, respondo ao desafeto com desafeto e ao desespero com desespero. Quanto mais estável sou, mais maduro humana e espiritualmente. Quanto mais agente me torno, mais perto de Deus estou, mais pessoas poderão experimentar o amor de Deus através do canal que é a minha vida.

Deus é agente da história. Ele é estável e está próximo de nós neste momento de dor, como sempre está. Deus é sempre da mesma maneira, não é ora uma coisa e ora outra. Deus é! Ponto e basta. Santo Agostinho, comentando o salmo 122, vai dizer que Deus é ‘idipsum’. Ele cita essa palavra para dar nome a característica estável de Deus, que por inúmeras vezes se apresenta como ‘Eu sou’, no antigo e no novo Testamento. Deus não se apresenta como ‘Eu estou’. Quem ‘está’ somos nós! Deus é Estabilidade infinita, por isso Ele é agente da história, não abandonando a humanidade nas crises que por várias vezes passou e passa neste momento.

O salmista vai cantar : ‘Sobre nós venha Senhor a vossa graça, da mesma forma que em vós nós esperamos’ (Sl 32). A graça de Deus sempre é disponível a nós. Sempre, sempre, sempre! Mesmo diante de nossa resposta, muitas vezes, pobre e inconstante, Deus não retira de nós o seu amor, não muda a fidelidade da aliança que fez conosco. Ele age na história humana para realizar seu projeto. Projeto que não conhecemos, projeto que, às vezes, chegamos a duvidar de sua existência devido à grande dor que sofremos. Contudo, somos chamados a contribuir na medida em que acolhemos a sua graça em nós. Se esperamos em Deus da mesma forma, como canta o salmista, então devemos esperar n´Ele sempre, sempre, sempre!

Pensando no cidadão de modo geral, independente de crença ou mesmo os que em nada acreditam: o que a experiência monástica e eremita podem aconselhar para que passem por essa 'clausura forçada'?

Cada momento de nossa vida é único e, por isso, valioso. Viver bem esse momento é se dispor a construir sua história pessoal. Cuidar-se, obedecendo as indicações de isolamento social é um gesto de amor próprio e de amor fraterno. O salmista canta : ‘Não haja brechas em nossas muralhas’ (Sl 143,14). Não ‘ousar’, não arriscar, haja excesso de cuidados, para que em nosso lar não entre esse vírus por negligência. Cuidemos uns dos outros e de forma especial de nossos idosos. Os idosos são um precioso tesouro na história de uma família, de uma sociedade, de um país. Um povo incapaz de valorizar seus idosos é um povo sem história. Acolher o isolamento social é cuidar de si e daqueles que nos são caros.’


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