sexta-feira, 17 de abril de 2020

O que as irmãs e sacerdotes enclausurados têm a nos ensinar sobre a quarentena?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Dom Geraldo González, OSB e madre Maria Letícia, OSB: aproveitar o momento para refletir a própria vida
Dom Geraldo González, OSB e madre Maria Letícia, OSB : aproveitar o momento para refletir a própria vida
(Divulgação de ThiagoVentura/DomTotal)

*Artigo de Thiago Ventura,
jornalista

Leitura, silêncio e meditação são ferramentas para superar o isolamento social e a vida confinada em casa. Quarentena pode ser tempo de autoconhecimento de descoberta de novos talentos


‘De uma hora para outra, mais de metade da população mundial foi chamada a ficar confinada em casa devido à pandemia do novo coronavírus. O isolamento social, segundo cientistas e a Organização Mundial da Saúde (OMS), é a melhor forma de reduzir o contágio da Covid-19, uma doença que ainda não tem vacina nem tratamento. Mas o que é novidade para milhões de pessoas ao redor do planeta é um hábito milenar de várias ordens religiosas, entre elas os beneditinos, trapistas e cartuxos, por exemplo. Mas, o que as irmãs e sacerdotes enclausurados têm a nos ensinar sobre a quarentena?

Surgida no século VI, a Ordem de São Bento já passou por momentos semelhantes na história da humanidade, como a peste negra ou a gripe espanhola. E desde aquela época, homens e mulheres têm como regra a meditação, a escuta e o trabalho, dentro dos muros de mosteiros e abadias. Em tempos como estes, da pandemia do novo coronavírus, tal fortaleza interior pode ser um diferencial para superar o isolamento social.

A madre abadessa do Mosteiro Nossa Senhora das Graças, em Belo Horizonte, irmã Maria Letícia Silva, OSB, aponta para a importância de se valorizar o silêncio e escuta pessoal em tempos de quarentena. ‘Nossa cultura nos volta ao barulho, ao muito falar e argumentar, à tentativa de sempre convencer o outro. Além disso, somos voltados para eventos de multidões, shows e shopping centers. Muitas vezes, essa fuga é um subterfúgio para não nos encontrarmos conosco mesmo, para não nos depararmos com questões essenciais de nossa vida, de nossas famílias’, afirma a monja.

Segundo dom Geraldo Gonzalez y Lima, OSB, monge espanhol com nacionalidade brasileira que vive na Abadia Primacial de Sant'Anselmo, em Roma, apesar dos desafios, esse recolhimento compulsório pode ser de grande crescimento. Com inúmeros seguidores nas principais redes, dom Geraldo tem espalhado mensagens de esperança pelas mídias sociais.

 Dom Geraldo na abadia primacial: ´na Bíblia, Deus nos fala, nos acolhe e nos conforta”,
Dom Geraldo na abadia primacial : 'na Bíblia, Deus nos fala, nos acolhe e nos conforta’

Não é a primeira vez que ocorre a privação da vida sacramental e comunitária na História da Igreja mas hoje contamos com recursos tecnológicos que nos facilitam certa participação e convívio à distância e esperamos que tudo isto seja passageiro’, afirma o monge em entrevista ao DomTotal.

A própria Igreja nos dá saídas : a comunhão espiritual, os atos penitenciais  e as suas celebrações, a Indulgência plenária’, completa dom Geraldo, que é o tesoureiro mundial da Ordem de São Bento e trabalha também na AIM Alliance Inter Monastere em Paris.

´Ora et Labora´: trabalho dentro dos muros é incentivado pela Regra de São Bento. Redescobrir sua casa é uma opção para tempos de pandemia 
'Ora et Labora': trabalho dentro dos muros é incentivado pela Regra de São Bento. Redescobrir sua casa é uma opção para tempos de pandemia.

Na mesma linha, a madre do Mosteiro Nossa Senhora das Graças aponta que essa quarentena pode trazer frutos positivos, em que as famílias podem se redescobrir. ‘Estamos em um tempo valioso e único, tempo em que os pais podem estar ao lado de seus filhos, podem brincar com eles, podem valorizá-los e corrigi-los. Tempo em que o esposo pode olhar sua esposa, realçando a importância que ela tem em sua vida. Tempo de celebrar as festas cristãs junto às pessoas que amamos. Tempo da família. Instituição em crise? A família é o lugar onde Deus quis habitar e quer ainda se fazer presente’, afirma madre Maria Letícia.

Dom Geraldo indica a leitura como grande aliada para superar a angústia e o medo gerados em época de pandemia. ‘O contato com a Palavra de Deus através da Lectio Divina. Na Bíblia, Deus nos fala, nos acolhe e nos conforta’, recomenda.

O monge conta que a abadia primacial, complexo que reúne universidade, colégio, mosteiro e a cúria do superior geral dos beneditinos, tem seguido toda as recomendações eclesiásticas e governamentais para evitar o contágio da Covid-19. Dom Geraldo indica que nesse período de recolhimento é propício para encontrar consigo mesmo. ‘Deve-se retomar ou privilegiar o contato com Deus e redescobrir o deserto como lugar dos três ‘esses’, silêncio, solidão e o Senhor; e também dos dois ‘tês’, tentação e teofania. Reconheço que será um grande desafio, mas também trará um grande crescimento e maturidade espiritual’, afirma.

Em Belo Horizonte, a madre Maria Letícia conta que o mosteiro também tomou cuidados especiais devido à pandemia. As monjas passaram a transmitir suas orações pelas redes sociais, para evitar aglomerações na abadia. ‘Ninguém está fora, ninguém pode pensar que está livre dos sofrimentos humanitários. Estamos todos juntos louvando, intercedendo e suplicando ao Senhor, confiantes de que Ele está ao nosso lado’, explica.

Dom Geraldo ainda recorda que a ‘solidão’ forçada das pessoas não pode limitar a solidariedade. São Bento viveu em tempos de crise e de convulsão social assim, toda a sua regra é rica nesses conselhos práticos, tais como ‘nada antepor ao amor de Cristo’, ‘nunca desesperar da misericórdia de Deus’, ou mesmo o lema ‘Ora et labora’, ensina.

Madre Maria Letícia lembra do voto de estabilidade feito pelos monges e monjas segundo a recomendação de São Bento. Para a religiosa, tal postura ajuda a diferenciar o que é essencial do que é descartável, numa reflexão que está à disposição de todos nessa época de quarentena. ‘O autoconhecimento é um caminho seguro, indicado por muitos místicos da Igreja para alcançar a Deus. Conhecendo-nos, com coragem e transparência, podemos potencializar os talentos que, naturalmente, nos foram confiados; podemos trabalhar e fazer crescer as aptidões que não recebemos de forma natural’, indica a monja.'


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