*Artigo
de Fabrício Veliq,
teólogo protestante
‘Vivemos
tempos novos. Tristes, mas mesmo assim, novos. Essa nova realidade que se
manifesta hoje na vida cotidiana ao redor do mundo é algo que nunca passamos e,
por isso mesmo, tudo parece diferente, assustador, temeroso. São diversos os
setores sociais que estão se adaptando a essa nova realidade. As dinâmicas de
trabalho, de ensino e de relacionamentos têm sido reelaboradas por diversas
pessoas para que possam dar conta de cumprir os prazos de trabalho, as agendas
de escritas acadêmicas, bem como manter de alguma forma saudáveis os
relacionamentos amorosos e de amizades.
Toda
essa nova dinâmica que demanda uma nova forma de vida traz consigo os grandes
desafios. Toda nova época é assim. Basta que nos lembremos das aulas de
História que tivemos ao longo de nossos estudos para perceber que todo período
crítico na sociedade gera novas formas de se pensar a relação entre nós e o
mundo.
Da
mesma forma, a teologia não está alheia a isso. Toda teologia é também fruto de
seu próprio tempo. A ideia de uma teologia que existe nos céus e que de lá
desce para a Terra e serve para todos os momentos da história é fantasiosa e,
não raras vezes, desonesta. Uma simples leitura do texto bíblico deixa isso bem
claro. Como conciliar a teologia da retribuição dos amigos de Jó com aquilo que
diz o Eclesiastes? Ou ainda, como relacionar a imagem do Deus da aliança das
bênçãos e maldições de Deuteronômio com os ensinamentos de Jesus de que aos
pobres que se revela o Reino de Deus?
Se
para além do texto bíblico, levarmos em conta a história do cristianismo isso
se mostra ainda mais gritante : quem, ainda hoje, acharia razoável que as
mulheres ficassem caladas nas reuniões cristãs e, caso houvesse dúvidas,
perguntassem a seus maridos, como afirma o texto de Coríntios? Ou ainda, quem
hoje acharia correto ter na família uma pessoa escrava, tal como fala o texto
de Efésios?
Com
isso em mente, é preciso ter consciência de que novos tempos demandam novas
teologias. Isso não quer dizer jogar tudo o que se tem fora, mas, a partir do
que se tem e a partir das novas realidades, propor teologias e interpretações
da mensagem bíblica que façam sentido para o tempo presente, e alcancem os
corações de homens e mulheres que na situação atual se perguntam ‘onde está
Deus’?
Diante
disso, faz-se necessário pensar novas teologias para o tempo de pandemia e
também para o tempo de pós-pandemia; teologias que deem conta de pensar um ser
humano que teve que se isolar para que a sociedade não sucumbisse ao desastre
como aconteceu em alguns países e, ao mesmo tempo, pensar uma relação desse ser
humano com Deus para além da liturgia dos templos, que se faz no íntimo de cada
lar e juntamente com uma comunidade virtualizada, sem deixar de ser real e em
comunhão com os membros dessa mesma comunidade.
Em
outras palavras, será necessária pensar uma teologia do acolhimento
virtual-tecnológico, na qual ao mesmo tempo em que essas pessoas se sintam
acolhidas existencialmente em suas dificuldades e dramas causados pelos
períodos de isolamento social, também possam reconhecer que Deus não se faz
longe, mas perto e dentro de toda pessoa que crer, dando forças para continuar
na caminhada, em esperança de que apesar das dificuldades Ele não nos deixa
desamparados.
Esse
acolhimento, todavia, não deve ser pensado somente em seu uso corriqueiro e
muitas vezes simplista de meramente auxiliar financeiramente outras pessoas ou
levá-las para casas onde pessoas cuidam delas. Muito além disso, deve ser um
acolhimento disposto a ouvir, compreender, e tentar entrar no mundo do outro
para, a partir daí, providenciar uma palavra que possa tocá-lo e gerar vida ao
ser ouvida, mesmo que de maneira virtual e distante fisicamente.
Consequentemente,
isso implica também um novo vocabulário teológico, que dê conta de alcançar uma
nova geração que já nasceu dentro das vivências virtuais e tecnológicas, às
quais nós estamos entrando nesse momento. Para esses, por exemplo, acredito que
faça mais sentido entender a relação entre Pai e Filho da teologia cristã a
partir do conceito de herança numa programação orientada a objeto a entender o
que vem a ser a consubstancialidade do século IV da era comum.
Esse
triplo movimento de ressignificar, traduzir e criar novos termos e teologias de
maneira que possam fazer sentido para uma sociedade em e pós-pandemia é, talvez,
um dos maiores desafios de teólogos e teólogas de nossos dias e dos próximos
que virão.’
Fonte :
* Artigo na íntegra
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