Ser idoso é ser prudente e sábio,
aproveitando tudo o que a vida nos ensinou
*Artigo
de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor
‘Como
o tempo voa! Nem vi o ano passar! Meu Deus, o ano já está acabando! Essas
e tantas outras, são expressões de espanto que ouvimos a todo momento, quando
as últimas horas de mais um ano vão se ecoando pelas mãos inexoráveis de
Kronos. Em 1952, um físico alemão publicou uma teoria com seu nome, chamada ‘Ressonância
de Schumann’, em que afirmava que o tempo realmente estava encolhendo. Não
voltei a ver qualquer coisa a esse respeito.
Ideias,
teorias, tudo serve para justificar essa desagradável sensação de que hoje, o
tempo passa bem mais depressa do que em nossa juventude. Pelo menos, para isso
tenho uma explicação. Quando somos jovens, atribulados com os estudos colegiais
e universitários, temos a sensação de que o tempo não passa, pois estamos
ansiosos para nos tornar adultos e alcançar o sucesso profissional na área que
escolhemos.
Quando
os anos encanecem nossos cabelos, ou a genética dele nos rouba fio por fio, até
alcançarmos uma calvície que à alguns incomoda bastante, e a outros – como eu –
nunca se torna um problema; quando percebemos que nossa visão já não alcança as
letras miúdas que estávamos acostumados a ler com olhos nus; quando nossas
mãos, outrora firmes e fortes trocam essas qualidades por deformações e dores
articulares, roubando-nos a força de que gabávamos ter; quando percebemos que é
uma gratificante façanha conseguir uma posição que não seja tão desconfortável
para a nossa coluna, seja ao sentar ou ao deitar; quando todas as manhãs, ao
meio-dia e quando ele termina, temos de lembrar dos vários comprimidos,
cápsulas ou gotas que devemos tomar, buscando um razoável equilíbrio para
nossas funções vitais; quando entramos num ônibus ou numa instituição pública e
procuramos os lugares reservados para os idosos, que quase sempre
deseducadamente estão ocupados por jovens que se julgam com mil direitos, e que
os idosos são somente um estorvo; quando em diversas situações sempre temos uma
pessoa – prestativa e muito gentil – a nos sugerir cuidado com o degrau,
atenção por onde vamos passar, e mil outros conselhos semelhantes; quando
percebemos que sem esses cuidados, costumamos tropeçar e até cair, e então
sujeitar-nos a ser levantados por outras pessoas, também prestativas e gentis,
mas não sem ficarmos com nosso orgulho ferido; quando vamos atravessar a rua, e
algum gaiato escarnece de dentro do carro : ‘cuidado vovô!’,
deixando-nos com uma vontade danada de retrucar indagando: ‘e a senhorita
sua mãe, continua trabalhando muito nas madrugadas?’; quando algum
conhecido nos vê tomando aquele vinho espanhol que adoramos, ou quem sabe um
excelente escocês 12 anos, de puro malte, e nos aconselha : ‘cuidado com o
fígado, vovô!’; enfim, quando chegamos em casa e olhando-nos no espelho,
somos surpreendidos com tantas rugas que ali nunca estiveram, ficamos então a
matutar : ‘É, o tempo passou, e o fez depressa demais!’
Em
seguida vem aquele desconforto de estarmos passando por tantas vicissitudes,
sem poder, ou querer confidenciá-las aos nossos familiares, pois ou não nos
darão a devida atenção e apoio, ou dirão que reclamamos à toa e demais, pois
estamos muito bem. Pior ainda quando nos repreendem dizendo que não estamos nos
cuidando adequadamente. Mal sabem eles e elas que as aparências enganam, que as
dores existem sim, apesar de não serem vistas, que os desconfortos nos
acabrunham, e que essas verdades, um dia eles mesmos irão vivenciá-las. E
compreenderão que não queríamos piedade nem complacência, apenas paciência e
solidariedade no final de jornada.
E
para nós, os idosos, o que importa agora, independentemente desses julgamentos?
Com certeza será olharmos, não para a nossa imagem refletida no espelho, mas,
com os olhos fechados, mirarmos profundamente a nós mesmos, bem lá dentro,
penetrando em nossa história. Muitas pessoas reclamam da excessiva voracidade
do tempo porque, quando fortuitamente fazem essa experiência de
autocontemplação, descobrem quantas coisas poderiam e deveriam ter feito, mas
não o fizeram. Quantas omissões por descuido ou preguiça. Quantas declarações
de amor poderiam ter expressado para quem ama, mas acharam desnecessárias, quem
sabe, até inoportunas.
Olhar
para dentro de si mesmo, é desvelar um enorme universo que muitos, tão pouco
conhecem. E por isso, torna-se ameaçador, levando essas pessoas a
abandonar imediatamente tais descobertas. Contudo, olhar com certa frequência,
para dentro de si mesmo, é uma das coisas mais importantes para se fazer em
nossa vida. Não para nos recriminar, lamentando as coisas feitas, ou cobrando
com severidade o que deixamos de fazer, ou como o fizemos.
Olhar
para dentro de si mesmo, é buscar as arestas que precisam e ainda podem ser
aparadas, é descobrir tantos dons maravilhosos que recebemos, mas alguns ainda
adormecidos dentro de nós. É reconhecer que somos pessoas boas, e por não
demonstrarmos isso, duvidamos que o somos. É descobrir que frequentemente nos
deixamos levar pelas críticas alheias, pelas censuras que nos fazem, sem que
sejamos capazes de ver, em cada uma delas, uma razão e um impulso para nos
corrigirmos no que precisarmos, ou nos fortalecer em tudo o que sabemos ser
bom, e certo dentro de nós. Mas, é importante que se diga : é preciso cuidado
para não se valorizar, além da realidade, e saber reconhecer, com critério, os
próprios limites.
Ser
idoso, não é ser velho, mas também não é ser eternamente jovem. Ser idoso é, na
verdade, ser prudente e sábio, aproveitando tudo o que a vida nos ensinou. Há
alguns anos escrevi : ‘o bom artista é aquele que sai do palco
enquanto a plateia lhe aplaude, e nunca quando começam a lhe apupar, atirando
ovos e tomates podres’. Essa, é a hora boa e certa do adeus.’
Fonte
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