terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Final de ano, final de jornada

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Ser idoso é ser prudente e sábio, aproveitando tudo o que a vida nos ensinou
Ser idoso é ser prudente e sábio,
aproveitando tudo o que a vida nos ensinou

*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor


‘Como o tempo voa!  Nem vi o ano passar! Meu Deus, o ano já está acabando! Essas e tantas outras, são expressões de espanto que ouvimos a todo momento, quando as últimas horas de mais um ano vão se ecoando pelas mãos inexoráveis de Kronos. Em 1952, um físico alemão publicou uma teoria com seu nome, chamada ‘Ressonância de Schumann’, em que afirmava que o tempo realmente estava encolhendo. Não voltei a ver qualquer coisa a esse respeito. 

Ideias, teorias, tudo serve para justificar essa desagradável sensação de que hoje, o tempo passa bem mais depressa do que em nossa juventude. Pelo menos, para isso tenho uma explicação. Quando somos jovens, atribulados com os estudos colegiais e universitários, temos a sensação de que o tempo não passa, pois estamos ansiosos para nos tornar adultos e alcançar o sucesso profissional na área que escolhemos. 

Quando os anos encanecem nossos cabelos, ou a genética dele nos rouba fio por fio, até alcançarmos uma calvície que à alguns incomoda bastante, e a outros – como eu – nunca se torna um problema; quando percebemos que nossa visão já não alcança as letras miúdas que estávamos acostumados a ler com olhos nus; quando nossas mãos, outrora firmes e fortes trocam essas qualidades por deformações e dores articulares, roubando-nos a força de que gabávamos ter; quando percebemos que é uma gratificante façanha conseguir uma posição que não seja tão desconfortável para a nossa coluna, seja ao sentar ou ao deitar; quando todas as manhãs, ao meio-dia e quando ele termina, temos de lembrar dos vários comprimidos, cápsulas ou gotas que devemos tomar, buscando um razoável equilíbrio para nossas funções vitais; quando entramos num ônibus ou numa instituição pública e procuramos os lugares reservados para os idosos, que quase sempre deseducadamente estão ocupados por jovens que se julgam com mil direitos, e que os idosos são somente um estorvo; quando em diversas situações sempre temos uma pessoa – prestativa e muito gentil – a nos sugerir cuidado com o degrau, atenção por onde vamos passar, e mil outros conselhos semelhantes; quando percebemos que sem esses cuidados, costumamos tropeçar e até cair, e então sujeitar-nos a ser levantados por outras pessoas, também prestativas e gentis, mas não sem ficarmos com nosso orgulho ferido; quando vamos atravessar a rua, e algum gaiato escarnece de dentro do carro : ‘cuidado vovô!’, deixando-nos com uma vontade danada de retrucar indagando: ‘e a senhorita sua mãe, continua trabalhando muito nas madrugadas?’; quando algum conhecido nos vê tomando aquele vinho espanhol que adoramos, ou quem sabe um excelente escocês 12 anos, de puro malte, e nos aconselha : ‘cuidado com o fígado, vovô!’; enfim, quando chegamos em casa e olhando-nos no espelho, somos surpreendidos com tantas rugas que ali nunca estiveram, ficamos então a matutar : ‘É, o tempo passou, e o fez depressa demais!’ 

Em seguida vem aquele desconforto de estarmos passando por tantas vicissitudes, sem poder, ou querer confidenciá-las aos nossos familiares, pois ou não nos darão a devida atenção e apoio, ou dirão que reclamamos à toa e demais, pois estamos muito bem. Pior ainda quando nos repreendem dizendo que não estamos nos cuidando adequadamente. Mal sabem eles e elas que as aparências enganam, que as dores existem sim, apesar de não serem vistas, que os desconfortos nos acabrunham, e que essas verdades, um dia eles mesmos irão vivenciá-las. E compreenderão que não queríamos piedade nem complacência, apenas paciência e solidariedade no final de jornada.

E para nós, os idosos, o que importa agora, independentemente desses julgamentos? Com certeza será olharmos, não para a nossa imagem refletida no espelho, mas, com os olhos fechados, mirarmos profundamente a nós mesmos, bem lá dentro, penetrando em nossa história. Muitas pessoas reclamam da excessiva voracidade do tempo porque, quando fortuitamente fazem essa experiência de autocontemplação, descobrem quantas coisas poderiam e deveriam ter feito, mas não o fizeram. Quantas omissões por descuido ou preguiça. Quantas declarações de amor poderiam ter expressado para quem ama, mas acharam desnecessárias, quem sabe, até inoportunas. 

Olhar para dentro de si mesmo, é desvelar um enorme universo que muitos, tão pouco conhecem.  E por isso, torna-se ameaçador, levando essas pessoas a abandonar imediatamente tais descobertas. Contudo, olhar com certa frequência, para dentro de si mesmo, é uma das coisas mais importantes para se fazer em nossa vida. Não para nos recriminar, lamentando as coisas feitas, ou cobrando com severidade o que deixamos de fazer, ou como o fizemos. 

Olhar para dentro de si mesmo, é buscar as arestas que precisam e ainda podem ser aparadas, é descobrir tantos dons maravilhosos que recebemos, mas alguns ainda adormecidos dentro de nós. É reconhecer que somos pessoas boas, e por não demonstrarmos isso, duvidamos que o somos. É descobrir que frequentemente nos deixamos levar pelas críticas alheias, pelas censuras que nos fazem, sem que sejamos capazes de ver, em cada uma delas, uma razão e um impulso para nos corrigirmos no que precisarmos, ou nos fortalecer em tudo o que sabemos ser bom, e certo dentro de nós. Mas, é importante que se diga : é preciso cuidado para não se valorizar, além da realidade, e saber reconhecer, com critério, os próprios limites. 

Ser idoso, não é ser velho, mas também não é ser eternamente jovem. Ser idoso é, na verdade, ser prudente e sábio, aproveitando tudo o que a vida nos ensinou. Há alguns anos escrevi :  ‘o bom artista é aquele que sai do palco enquanto a plateia lhe aplaude, e nunca quando começam a lhe apupar, atirando ovos e tomates podres’. Essa, é a hora boa e certa do adeus.’


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