Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Não podemos projetar nossas relações pai e filho
à paternidade divina porque Deus vai além de nossa imaginação
*Artigo
de Fabrício Veliq,
teólogo protestante
‘A
história de Jesus no Getsêmani – pouco antes de sua prisão e processo que
culminou na crucificação – relata-nos os momentos difíceis e de grande angústia
encarados por ele sem o auxílio dos que lhe eram próximos. Como exemplo, basta
lembrarmos que os discípulos dormiram enquanto ele orava; Pedro o negou
enquanto era julgado; o povo que o seguiu durante algum tempo foi voz
decisiva ao gritar com clareza ‘crucifica-o!’.
Nossa
condição humana – tantas vezes em extrema solidão, sem socorro e perspectiva –
encontra no que Jesus enfrentou, em período tão curto e derradeiro, o paradigma
para ser pensada. Ele, como todo homem, sentiu em sua pele a experiência do
abandono e a sofreu como quem ‘chora gotas de sangue’. Em horas como
essa, a maioria das pessoas acaba por se voltar a uma visão infantil, romântica
ou mesmo cristalizada de Deus.
Claro
que não há nada de errado em clamar o Senhor e ver nele o auxílio para os
momentos de angústia, solidão e abandono. Isso é algo que o próprio Jesus fez e
é exemplificado por sua oração no Getsêmani : ‘Passe de mim este cálice’,
pediu. Mas, ao invés do alívio, veio apenas o silêncio de Deus, algo que muita
gente não consegue entender. Acostumados à visão romântica que o coloca como um
pai sempre presente, seu silêncio é incômodo e o simples fato de se pensar uma
possível ausência divina atemoriza os mais infantilizados.
Se
Deus aparece apenas como projeção da figura paterna, realmente ele não passa de
uma ilusão que deve ser abandonada com o desenvolvimento do homem. Freud chega
a esta conclusão ao tratar da questão religiosa. Para ele era muito fácil
considerar a religião como grande ilusão, uma vez que o crente se coloca como
criança diante de um pai que tudo pode, recusando encarar a realidade do mundo
de forma adulta. É como se precisasse que o pai estivesse sempre presente pois
não consegue andar sozinho. O crente infantil estabelece sempre uma relação
ambivalente em relação a Deus. Ama-o pois este lhe protege, guarda etc. como um
pai. Contudo, ao mesmo tempo, odeia-o e o teme porque lhe pune e vigia
constantemente. Deus aparece, dessa maneira, como esse ser que não passa de uma
das mais infantis projeções humanas em relação ao pai.
Jesus
nos mostra uma outra relação com o Pai. Para além do drama edípico e de toda
ambivalência em relação à figura paterna, Jesus encara a Deus como um Outro que
não precisa ser temido, pensado dentro de uma estrutura punitiva, nem visto
como alguém que sempre está ali. O Deus de Jesus é amor. Entretanto, por ser
amor, é capaz de silenciar diante da dor para que o homem possa experimentar a
realidade do mundo por si só. O Deus de Jesus não é sempre presente, mas um
Deus que aparece como grande ausência para além de toda projeção. Apenas um
Deus que ama é capaz de permitir a vivência do outro sem interferência, que o
homem se responsabilize por suas decisões sem se portar como ‘muleta
psicológica’ (para usarmos aqui uma expressão de Bonhoeffer).
O silêncio talvez seja o grande paradigma desse
Deus que é presença de uma ausência. Um Deus que não responde, mas permite
a dor, o sofrimento, ao passo que também permite a alegria e o riso sem
interferências de nenhum tipo, milagres ou metafísica. Um Deus que se faz ‘sentido
para a existência’ e, por isso mesmo, amor para além de toda ambivalência.
O Deus de Jesus se mostra, talvez, como um grande vazio, mas que por isso mesmo
é sempre buscado assim como ‘a corça anseia por água’.
Diante
do silêncio de Deus, Jesus poderia simplesmente negar seu martírio,
poderia voltar atrás sem precisar sofrer tudo o que sofreu. Contudo, resolveu
seguir pois cria a ponto de morrer por aquilo. Acreditava tanto, que mesmo
diante da morte, na hora mais sofrida de sua vida, foi capaz de dar o
salto de fé e dizer ‘em tua mão entrego o meu espírito’. Mesmo nada ouvindo, mesmo sem
nenhuma intervenção, mesmo sem nenhum milagre, mesmo no abandono, Jesus é capaz
de se render àquele Deus em quem acreditava, que não via dentro de uma
estrutura ambivalente de amor e ódio, a quem podia chamar Aba Pai. Este não era
simplesmente projeção paterna, mas transcendia a estrutura edípica e culminava
em amor que não se manifesta como representação, mas como ação para com o
outro.
Jesus
nos mostra que a relação com Deus deve ser adulta e não infantil. Mostra que
nossa relação com Deus deve ser capaz de compreender que, mesmo no seu
abandono, somos capazes de dar o salto de fé e nos lançarmos em direção a ele
que, por ser amor, nos acolherá. Mesmo nada garantindo esse acolhimento, Jesus
nos ensina que vale a pena entregar nosso espírito nas mãos de Deus.
É
exatamente neste sentido que vemos o perigo, sempre presente, de romancear as
figuras de Deus e de Jesus. Transformar este em um tipo de santo, para quem
nada nesse mundo era objeto de sofrimento, é ignorar sua humanidade. Da mesma
forma, romancear a figura de Deus como quem sempre reponde, está presente e
traz solução é transformá-lo em uma espécie de super-herói, algo longe do Deus
bíblico. Ao procedermos assim com essas figuras, perdemos o cerne da questão
bíblica, que consiste na tentativa de um povo falar do seu Deus e de sua
relação com ele, evidenciando todas as ambivalências e angústias dessa relação
e a característica maior da religião cristã que é o amor.
Cristalizar
a imagem de Deus é não se abrir para a experiência traumática de amar e ser
amado, amar e deixar-se ser amado pelo outro. Consiste também em não entender
que ‘o
vento sopra onde quer’, em tentar ser maior que o criador ou transformá-lo em ser imóvel –
quando, na realidade, se ele é amor, nada pode ser mais plástico e mais
multifacetado.
Jesus
nos aponta outra forma de lidar com Deus, uma forma não romanceada, não
cristalizada, e se pensarmos bem, aí está o cerne do cristianismo. Um Deus que
não se deixa cristalizar, mas sempre se revela em amor que se revela de
diversas formas.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1410390/2019/12/getsemani-amor-e-angustia-ou-sobre-o-perigo-de-se-cristalizar-a-figura-de-deus/
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