A fé se mostra como uma corda de slackline entre duas montanhas
sobre a qual se anda (Loic Leray/ Unsplash)
sobre a qual se anda (Loic Leray/ Unsplash)
*Artigo
de Fabrício Veliq,
teólogo protestante
Para
essas pessoas, duvidar é sinal de fraqueza e falta de fé. Tratam a relação com
Deus como um caminho marcado pela certeza de que todo passo dado é passo certo,
de maneira que toda e qualquer dúvida deva ser combatida e vencida para que
Deus possa se agradar de suas vidas.
Isso,
no entanto, traz um fardo muito grande. Nunca é possível ter certeza de todas
as coisas, principalmente a respeito daquelas que perpassam o transcendente, o
espiritual e o hermenêutico. Colocar as certezas como critério de fé somente
revela uma baixa compreensão do que ela realmente seja. Na maioria das vezes
que se fala a respeito da definição de fé, recorre-se a Hebreus 11,1 que
afirma, nas traduções mais difundidas, ‘ora, a fé é a certeza...’.
Essa
tradução, talvez, seja a grande responsável por uma má compreensão do que seria
essa fé. Contudo, olhando atentamente para o texto grego, este afirma que a fé
é a ελπιζομενων ὑποστασις, ou seja, a substância (uma das traduções possíveis de ὑποστασις - hypostasis) das coisas esperadas (ελπιζομενων), que a TEB traduziu como ‘o modo
de possuir desde agora o que se espera’. Essa tradução, em consonância com
a tradução brasileira que segue na mesma linha, claramente, liga a fé à
esperança cristã, esperança tal que se ancora no prometente que, ao longo da
história dos heróis da fé, mostrou-se como aquele que cumpre suas promessas
(Moltmann).
Com
isso em mente, pensar a fé como certeza no modo que comumente se difundiu no
cristianismo se mostra como não compreensão da profundidade do termo. Ao mesmo
tempo, mostra que a dúvida não é algo contrário à fé, antes, algo que, humano,
anda juntamente com ela. Isso é perceptível em todos os relatos que o próprio
texto de Hebreus 11 mostra a respeito dos heróis da fé. Todos eles, em algum
momento de sua caminhada se mostraram com dúvidas a respeito do chamado de Deus
e, curiosamente, em nenhum momento há condenação de sua parte a respeito disso.
A
fé, assim, mostra-se como uma corda de slackline entre duas
montanhas sobre a qual se anda. Sob a ação das forças da natureza, somente a
confiança naquele que prendeu a corda nas duas extremidades que nos faz entrar
na aventura de atravessar o grande vão entre elas. Ratzinger, em seu livro Introdução
ao cristianismo, traz uma imagem de mesma monta para exemplificar o que é a
fé : ele pede para que imaginemos um barco destruído por uma enorme tempestade
no mar, em que há pedaços de madeira por todo lado. Ao sermos jogado no mar,
nessa tempestade, agarramo-nos a uma dessas tábuas e confiamos que ela é a que
nos manterá seguros frente a tudo que acontece em nossa volta. A tábua fina, no
mar da existência, é a fé cristã num mundo conturbado.
Seja
na imagem da corda entre as montanhas, ou na imagem da tábua fina sobre o mar,
o aspecto central é a de que não há garantia ou certeza nenhuma, somente a
confiança naquilo sobre o qual se apoia, na esperança de que aquilo que se
mostra tão frágil é capaz de sustentar nossa existência, de maneira que decidimos
confiar a nossa vida a isso.
Desesperador?
Sem dúvida. Exige confiança? Absoluta. Tem alguma certeza garantida? Nenhuma.
Há somente a esperança de que Aquele em que cremos é poderoso para manter a sua
palavra.
Com
isso em mente, não devemos ter medo das dúvidas. Antes, devemos reconhecê-las
como algo que é próprio do humano e, por isso mesmo, próprio da fé. Assim, não
é difícil perceber que as pessoas que se dizem mais convictas, mais certas, com
mais certezas sobre as verdades imutáveis, na verdade, são aquelas que diante
de qualquer vento contrário às suas certezas caem e não se levantam mais.
Aquelas,
porém, que compreendem que a fé está ancorada na esperança, sendo, portanto,
uma aposta (Pascal) que é feita, reconhecem que as intempéries da vida e os
momentos difíceis e de angústia não devem ser encarados como ausência de fé,
mas somente como um dos momentos em que o vento balançou um pouco mais a corda,
ou veio uma onda mais feroz do que as que vinham até então.
Em
tudo isso, porém, a fé faz com que não soltemos nem a corda e nem o toco de
madeira.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1409803/2019/12/a-duvida-que-nos-faz-mais-cristaos/
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