quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

A dúvida que nos faz mais cristãos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 A fé se mostra como uma corda de slackline entre duas montanhas sobre a qual se anda
A fé se mostra como uma corda de slackline entre duas montanhas
sobre a qual se anda (Loic Leray/ Unsplash)

*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante

 ‘Durante muito tempo o cristianismo teve a dúvida como algo a ser evitado ou até mesmo rejeitado. Tinha-se que ela poderia, de alguma forma, fazer com que as pessoas se desviassem da fé ou deixassem de ser cristãs. Isso, infelizmente, não ficou apenas nos tempos de outrora, mas permanece na mentalidade de diversos cristãos de hoje.

Para essas pessoas, duvidar é sinal de fraqueza e falta de fé. Tratam a relação com Deus como um caminho marcado pela certeza de que todo passo dado é passo certo, de maneira que toda e qualquer dúvida deva ser combatida e vencida para que Deus possa se agradar de suas vidas.

Isso, no entanto, traz um fardo muito grande. Nunca é possível ter certeza de todas as coisas, principalmente a respeito daquelas que perpassam o transcendente, o espiritual e o hermenêutico. Colocar as certezas como critério de fé somente revela uma baixa compreensão do que ela realmente seja. Na maioria das vezes que se fala a respeito da definição de fé, recorre-se a Hebreus 11,1 que afirma, nas traduções mais difundidas, ‘ora, a fé é a certeza...’. 

Essa tradução, talvez, seja a grande responsável por uma má compreensão do que seria essa fé. Contudo, olhando atentamente para o texto grego, este afirma que a fé é a ελπιζομενων ὑποστασις, ou seja, a substância (uma das traduções possíveis de ὑποστασις - hypostasis) das coisas esperadas (ελπιζομενων), que a TEB traduziu como ‘o modo de possuir desde agora o que se espera’. Essa tradução, em consonância com a tradução brasileira que segue na mesma linha, claramente, liga a fé à esperança cristã, esperança tal que se ancora no prometente que, ao longo da história dos heróis da fé, mostrou-se como aquele que cumpre suas promessas (Moltmann).

Com isso em mente, pensar a fé como certeza no modo que comumente se difundiu no cristianismo se mostra como não compreensão da profundidade do termo. Ao mesmo tempo, mostra que a dúvida não é algo contrário à fé, antes, algo que, humano, anda juntamente com ela. Isso é perceptível em todos os relatos que o próprio texto de Hebreus 11 mostra a respeito dos heróis da fé. Todos eles, em algum momento de sua caminhada se mostraram com dúvidas a respeito do chamado de Deus e, curiosamente, em nenhum momento há condenação de sua parte a respeito disso.

A fé, assim, mostra-se como uma corda de slackline entre duas montanhas sobre a qual se anda. Sob a ação das forças da natureza, somente a confiança naquele que prendeu a corda nas duas extremidades que nos faz entrar na aventura de atravessar o grande vão entre elas. Ratzinger, em seu livro Introdução ao cristianismo, traz uma imagem de mesma monta para exemplificar o que é a fé : ele pede para que imaginemos um barco destruído por uma enorme tempestade no mar, em que há pedaços de madeira por todo lado. Ao sermos jogado no mar, nessa tempestade, agarramo-nos a uma dessas tábuas e confiamos que ela é a que nos manterá seguros frente a tudo que acontece em nossa volta. A tábua fina, no mar da existência, é a fé cristã num mundo conturbado.

Seja na imagem da corda entre as montanhas, ou na imagem da tábua fina sobre o mar, o aspecto central é a de que não há garantia ou certeza nenhuma, somente a confiança naquilo sobre o qual se apoia, na esperança de que aquilo que se mostra tão frágil é capaz de sustentar nossa existência, de maneira que decidimos confiar a nossa vida a isso.

Desesperador? Sem dúvida. Exige confiança? Absoluta. Tem alguma certeza garantida? Nenhuma. Há somente a esperança de que Aquele em que cremos é poderoso para manter a sua palavra.

Com isso em mente, não devemos ter medo das dúvidas. Antes, devemos reconhecê-las como algo que é próprio do humano e, por isso mesmo, próprio da fé. Assim, não é difícil perceber que as pessoas que se dizem mais convictas, mais certas, com mais certezas sobre as verdades imutáveis, na verdade, são aquelas que diante de qualquer vento contrário às suas certezas caem e não se levantam mais.

Aquelas, porém, que compreendem que a fé está ancorada na esperança, sendo, portanto, uma aposta (Pascal) que é feita, reconhecem que as intempéries da vida e os momentos difíceis e de angústia não devem ser encarados como ausência de fé, mas somente como um dos momentos em que o vento balançou um pouco mais a corda, ou veio uma onda mais feroz do que as que vinham até então.

Em tudo isso, porém, a fé faz com que não soltemos nem a corda e nem o toco de madeira.’


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