*Artigo
do Padre Adroaldo Palaoro, SJ
‘Começamos
um novo ano litúrgico. É um tempo especial que a Igreja nos oferece como escola
de oração e oficina de discipulado : ela nos convida à contemplação e invocação
dos mistérios de Jesus ‘hoje’ e à aprendizagem do autêntico discipulado
neste nosso tempo.
O
ano litúrgico nos diz que o tempo não é movimento circular, repetição do mesmo
(chrónos), mas renovação permanente, acontecimento surpreendente (kairós).
Acolhamos este novo ano litúrgico como tempo de graça e salvação.
No
advento, somos movidos a ‘sentir o tempo’ de um modo novo, a fazer-nos
amigo dele, a nomear e acompanhar o tempo que nos cabe viver, a habitar com
intensidade as diferentes etapas de nossa vida. Cada momento
esconde sua pérola, e é muito excitante quando chegamos a descobri-la.
Falar
do ‘tempo’ não é tão simples e óbvio; é frequente encontrar-nos numa
situação na qual vivemos o tempo como um túnel, contínuo, repetitivo...
Trata-se
de um tempo que absorve, devora, desgasta, esgota...; túnel onde só há presente
e sua prolongação homogênea. É cenário de uma frenética e acelerada corrida por
rentabilizar ao máximo os minutos e as horas. O tempo torna-se cada vez mais
veloz, fugaz, estressante... Kronos continua a devorar com
maior intensidade o que cria. Diante disso, não há futuro auspicioso, nem
esperança que sustenta...
Com
isso, corremos o risco de viver em um ‘tempo sem tempo’! Um tempo para ‘ter’!
Um tempo para preencher! Um tempo de excesso de informação circulante e de
atividades insensatas (sem sentido)! Um tempo sem eternidade.
Um
tempo assim só é habitado pelo ‘ego’; não há lugar para o outro, muito
menos para o Outro.
Podemos
dizer que um tempo assim cheira a mofo, não está arejado...; é monstro que nos
devora.
Trata-se
de um ‘tempo sem advento’ : não vem ninguém, não esperamos ninguém...
Também Deus não consegue entrar em nossos ‘tempos
apertados’.
Marcados
pelo ‘tempo vazio’ a ser preenchido a todo custo, acabamos por perder a
consciência da riqueza do ‘tempo do advento’. Tempo forte carregado de
sentido, que nos humaniza e nos faz caminhar em direção Àquele que vem vindo...
ao nosso encontro. Tempo que nos faz ter acesso àquilo que é mais humano em nós
: o sentido da esperança, a travessia, o encontro com o novo...; tempo que nos
arranca de nossas rotinas e modos fechados de viver.
Viver
o tempo intensamente, vivificá-lo, cuidá-lo e artisticamente orientá-lo para
aquilo que desejamos. Este ‘tempo presente’ é oportuno, precioso e não
volta mais. Vivê-lo para além dele, na espera do que deve vir, carregá-lo de
intenção e de presença.
Mais
uma vez, é preciso parar e descer a esse nível do tempo para ir descobrindo uma
presença que completa nosso ser, que plenifica nossa existência, que responde à
nossa interrogação existencial...; está aí, vindo em direção à nossa vida, mais
uma vez e de maneira surpreendente, como sempre esteve.
‘Eis
que estou à porta e bato : se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei
em sua casa e cearei com ele, e ele comigo’ (Apc. 3,20).
Advento,
portanto, nos revela a presença da eternidade no coração do tempo. O Eterno
irrompe na história, iluminando a dura rotina e a seqüência do cotidiano. E, no
nosso interior, o eterno tem seu templo.
Quando
o advento aponta para a eternidade, bem que poderíamos olhar para dentro de nós
mesmos. Aí, no nosso interior, há tanto de eterno. A eternidade dialoga com a
gente, fala por dentro.
Passamos
a viver, então, o tempo da espera e da esperança, das buscas e dos silêncios...
Sem
a eternidade do coração que pulsa em nós, que nos unifica e plenifica, a vida
se empobrece.
Por
outro lado, o advento nos desperta para ‘olhar’ ao nosso redor e
descobrir que Deus continua vindo. Sempre e por caminhos surpreendentes.
Advento nos convida a ‘contaminar-nos’ da realidade; e isso nos
humaniza. Toda a nossa vida torna-se advento.
Deus
está no coração do tempo. Deus está ali como força explosiva que dá à nossa
vida nova dimensão e à nossa existência, infinito valor. De agora em diante,
cada um de nossos momentos está cheio de Sua presença, pois a eternidade está
no coração do tempo. Deus transforma o kronos em Kairós.
A
invasão da eternidade no tempo confere a este mesmo tempo uma plenitude de ser,
um peso de realidade e existência, uma densidade de sentido que ele é incapaz
de ter por si só. De agora em diante, nada em nossas vidas é insignificante,
nem rotineiro. A ação mais simples é transfigurada e assume uma dimensão eterna
e divina. Nada é banal, nada é comum para alguém cuja vida mergulha no eterno.
No
Evangelho deste domingo, tanto a referência à história de Noé, como as duas
breves parábolas que seguem, se apresentam com um matiz de ‘urgência’,
que se traduz em um chamado à ‘vigilância’ : ‘ficai atentos..., ficai
preparados’. Sem dúvida, é um convite a permanecer despertos, porque o ‘Filho
do Homem’, está vindo, e só a atenção nos permite percebê-lo.
Numa
leitura literal, esta ‘vinda’ pode ser mal-entendida como algo que deve
acontecer em um futuro mais ou menos próximo, e que comporta um juízo com o
correspondente ‘prêmio’ ou ‘castigo’.
No
entanto, o texto mateano nos oferece uma perspectiva mais ampla e atual.
Deus
está vindo a todo instante, mas só quem está verdadeiramente desperto entrará
em sintonia com essa presença e deixar-se-á inspirar por ela. Se não
descobrirmos essa presença, nossa vida poderá transcorrer sem tomarmos consciência
da maior riqueza que está ao nosso alcança. Deus não tem que vir em nenhum
momento especial, nem vem de parte alguma, porque é a base e fundamento de
nosso ser; e se Ele se separasse de nós um só instante, nosso ser voltaria ao
nada. O que chamamos Deus está em nós como fundamento, mesmo que não
descubramos sua presença. Mas, como ser humano, nossa mais alta possibilidade
de plenitude consiste precisamente em descobrir e viver conscientemente essa
realidade. Deus está presente em tudo, habita em todos os seres, mas só o ser
humano pode ser consciente dessa presença.
É
preciso recuperar a força do ‘hoje’ de Deus para conosco, reconhecer o ‘tempo’
de sua Vinda, em tempos de deslocamentos. Vislumbramos ‘algo’ no
horizonte e percebemos seus passos enquanto chega; e a história é o rumor
desses passos. Caminhamos para Ele quanto mais nos adentramos no profundo de
nós mesmos e da realidade.
Contemplando
o ‘hoje’ de Deus, o coração se alarga até o assombro, os braços se abrem
para a acolhida, os pés se movem para o encontro, os olhos se aquecem para o
reconhecimento.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1406109/2019/11/novo-ano-liturgico-o-senhor-vem-na-sua-direcao/
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