‘«Aos
ouvidos da gaivota tinha chegado a história daquela velha árvore africana, o
embondeiro. Segundo diziam, ela albergava no seu interior a água da Vida. Quem
dela bebia, tinha a sua felicidade assegurada.
Diante de tal expectativa, a pequena gaivota pôs-se rapidamente a
caminho. Quase sempre com o vento a favor, ela atravessou planícies e florestas
e sulcou o céu sobre o vasto mar até chegar a uma terra desconhecida. O seu
destino já não devia estar muito longe.
De repente, ela viu-o, altivo, desafiador, traiçoeiro. O seu destino
tinha de ser aquele. Mas o que lhe estava a acontecer? Ela não conseguia voar!
Precisamente agora que estava tão perto de alcançar o seu sonho! Por mais que
batesse as asas com toda a força, as suas perninhas mal conseguiam elevar-se um
palmo do chão. A gaivota nunca se tinha sentido tão sozinha e desamparada.
Tinha medo, muito medo. De repente, ela viu no céu um pássaro enorme. Ficou
admirada ao ver o seu voo tão elegante e, com grande entusiasmo, disse-lhe :
– Tens asas e podes voar, és dos meus. Poderias levar-me até ao velho embondeiro?
O abutre soltou uma gargalhada :
– Ah, ah, ah! Quem pensas que és, passarinho?
E, muito zangado, gritou :
– Por aqui estamos fartos de mentirosos como tu, que vêm em bandos para a
nossa terra, apenas para nos tirar a comida.
– Não é verdade! – respondeu a gaivota. – Eu só quero alcançar a árvore
dos meus sonhos.
– Pois então sonha, que eu ficarei à espera, ah, ah, ah!
E o abutre levantou voo rindo.
Sem compreender muito bem aquelas últimas palavras, a pequena gaivota
prosseguiu o seu caminho com determinação.»
Mariama
cerra os punhos com força e, com a parte de trás do pulso, seca as lágrimas
que, de repente, correram ao recordar essa lenda que tantas vezes lhe tinha
contado a sua mãe. A sua mãe... Como desejaria ela que os seus braços longos e
delgados a envolvessem de novo, como quando era pequena e algum pesadelo não a
deixava dormir! Agora, ela sentia-se como aquela pequena gaivota. Longe de casa
e sozinha.
Poucas
meninas ao seu redor se atreveram a tanto, mas ela não estava disposta a que
aqueles homens que apareciam de vez em quando voltassem a tocar apenas porque
era mulher, ou pobre, ou ambas as coisas. Nem ver a sua mãe sofrer, porque,
mais um dia, a comida não fora suficiente para toda a prole. E ela não
permitiria que nenhum dos seus irmãos acabasse a mendigar naquelas ruas
incertas. De modo que, sem dar muitas explicações, seguiu os passos dos seus
amigos Omar e Modou. Via-se a regressar à sua terra natal, dentro de poucos
anos, como enfermeira, como Teresa, a missionária que trabalhava no
dispensário. Compraria uma casa na cidade, com eletricidade e água, onde
viveria toda a família. Ela tiraria a sua mãe dos campos de algodão e vê-la-ia,
finalmente, a trabalhar no ateliê de costura com que tanto sonhava.
Com
todas estas esperanças, Mariama, com apenas 15 anos, tinha deixado o Senegal e
havia-se posto a caminho. Todavia, aquele caminho estava cheio de pedras e nele
havia perdido depressa os seus amigos. Alguém lhe contou que vira Omar nuns
becos de uma pequena cidade no Níger. Arrastava uma perna e perdera uma vista.
De Modou, desde que aqueles homens os assaltaram no deserto, nada mais voltou a
saber. Ela conseguiu escapar às máfias e, assim, alcançar a costa de onde podia
ver a terra prometida. Depois veio a travessia naquela balsa, patera ou como
queiram chamar-lhe ao meio de transporte em que atravessou as frias águas do
mar. As lembranças acumulam-se na sua cabeça como um turbilhão : as noites
vagando pelas ruas daquela cidade desconhecida, o medo e a fome, o primeiro
centro para menores, as radiografias nas suas mãos porque ninguém acreditava na
sua idade, uma e outra noite na esquadra...
As
lágrimas voltam a embaciar os seus olhos, mas ela sente-se mais calma. Enquanto
bebe o chá quentinho, pensa em Abbou, que está prestes a completar 18 anos e,
então, terá de deixar o centro; em Elaid, a quem a sorte – à qual ele se
abandonara – não lhe sorriu; ou em Faid, que finalmente começou a trabalhar e
até já pensa em casar com Samira e constituir família.
«A
gaivota, depois de um extenuante caminho, alcançou o embondeiro. Apesar das
suas poucas forças, entrou com passo firme, todavia comprovou, desolada, que
ali não havia nem uma gota de água. E, então, chorou, chorou e chorou. Primeiro
de pena, por não encontrar o tesouro pelo qual se havia posto a caminho;
todavia, em seguida correram também as lágrimas da emoção, porque foi capaz de
chegar lá; e irrompeu o choro da alegria, simplesmente porque se sentia bem.
Ela saiu do tronco da árvore e, sem olhar para trás, retomou o voo disposta a
encontrar a verdadeira felicidade. Enquanto isso, as suas lágrimas nutriram as
velhas raízes do embondeiro, que se viu surpreendido por umas preciosas flores
brancas suspensas nos seus ramos apenas umas horas, as suficientes para demonstrar,
com a beleza do seu aroma e da sua cor, que todo o esforço tem a sua
recompensa.»
Ouve-se
música de Natal. O céu noturno está limpo e, do pátio do centro, distinguem-se
bem as estrelas. Mariama está convencida de que são as flores brancas que se
soltam dos seus saudosos embondeiros. Teresa, a missionária, contou-lhe certa
vez que foi precisamente uma estrela que guiou os Magos até ao local onde
nasceu o Menino Jesus. Agora ela está convencida de que também encontrará o seu
caminho.’
Fonte
:
Nenhum comentário:
Postar um comentário