*César Thiago do Carmo Alves pertence
à Congregação Religiosa dos Filhos de Maria Imaculada (Pavonianos)
‘O Concílio
Vaticano II (1962-1965) constituiu uma guinada para a vida eclesial. Entre
essas guinadas está a reforma da liturgia. A constituição conciliar que trata
dela é a Sacrosanctum Concilium. Foi
aprovada pelos Padres Conciliares no dia 04 de dezembro de 1963. Estavam
presentes 2.178 votantes. 2.158 votaram favoráveis para sua aprovação, 19 foram
contrários e 1 aprovou desde que se fizesse alguma modificação. Portanto,
nota-se um número expressivo de votos favoráveis para aprovação da Constitutio De sacra Liturgia. Esses
dados podem ser encontrados nas atas do Concílio Vaticano II (Acta Synodalia Sacrosancti Concilii Oecumenici
Vaticani II).
Fruto de todo um
trabalho que a precedeu como o movimento litúrgico; a nouvelle théologie que buscou um retorno às fontes escriturísticas,
patrísticas e litúrgicas; o trabalho das comissões pré-preparatória e
preparatória que cuidou de apresentar inicialmente um esquema para a Constitutio De sacra Liturgia, no
intuito de ser examinada pelos Padres Conciliares, a Sacrosanctum Concilium, com os seus 130 números, surge como uma
resposta para a pessoa contemporânea de fé que procura celebrar o seu crer em
Deus por meio da vida litúrgica (proêmio). Tendo presente isso, uma pergunta
emerge : se o Concílio Vaticano II julgou importante uma reforma litúrgica para
que se pudesse fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptando-a às
necessidades contemporâneas, qual é o conceito teológico de liturgia que se
pode extrair da Sacrosanctum Concilium?
Para responder essa pergunta o primeiro elemento que se faz necessário afirmar
é que a liturgia constitui um lugar teológico. Embora o teólogo Melchior Cano
(1509-1560) não a tenha citado em seu tratado De locis theologicis, sabe-se, pela Tradição, que a partir dela o
conhecimento teológico pode elaborar o seu saber, então cabe a afirmação de que
a liturgia constitui um lugar teológico.
São os primeiros
números que ajudam a responder a questão proposta. A liturgia é o lugar no qual
se celebra a obra da redenção do ser humano (n.2). Essa obra teve o seu
prelúdio já no Antigo Testamento, quando Deus operava maravilhas na vida do
povo. Percorrendo a literatura veterotestamentária poder-se-á constatar isso.
Como exemplo das maravilhas de Deus está a libertação dos israelitas da
escravidão no Egito (cf. Ex 13,17-15,21). Tal obra se completou em Jesus Cristo
por meio de sua paixão, morte e ressurreição. No mistério pascal toda a Trindade
está envolvida. O Filho se entrega na obediência filial ao Pai ao seu projeto
salvífico por meio da força do Espírito Santo. Além disso, foi do seu lado
aberto na cruz que nasceu o sacramento de toda a Igreja (n.5). É esse
sacramento que é celebrado. O mistério pascal é para a liturgia o seu fulcro.
Numa perspectiva cristológica e eclesiológica, para a Sacrosanctum Concilium a liturgia é fruto de um mandato do Senhor.
Da mesma forma que Cristo foi enviado pelo Pai, de igual modo ele enviou os
apóstolos não somente para pregar o Evangelho e anunciar o mistério pascal, mas
para também levarem a efeito o que anunciavam, isto é, a obra de salvação
através do Sacrifício, que é a eucaristia, e dos demais sacramentos. Por conta
disso a Igreja nunca deixou de se reunir para a celebração do mistério pascal
(n.6). O caráter comunitário está implícito no modo de se pensar a vida
litúrgica. Não se celebra isolado da comunidade. Em outras palavras, a dimensão cristológica da liturgia está na celebração do mistério
pascal. Já a dimensão eclesiológica
aponta que esse mistério celebrado é feito em comunidade. Mais ainda, ele
cria comunidade. De tal modo que se faz valer o antigo e sempre atual axioma de
Próspero de Aquitânia (†465) lex
orandi-lex credendi, ou seja, aquilo que a Igreja ora é
aquilo que ela crê. A Igreja se reúne para celebrar a páscoa do Senhor justamente
pelo fato de querer evidenciar no que ela professa a sua fé. Isso faz a
comunidade e vice-versa. Dito de outra forma, a
liturgia faz a Igreja e a Igreja faz a liturgia.
A perspectiva
cristológica na Constituição leva a radicalização positiva de algum ponto. Esse
ponto diz respeito à presença de Cristo na liturgia. Era pacífica para a teologia católica dos
sacramentos a afirmação da presença do Senhor no pão e no vinho eucaristizados.
Sobretudo com o Concílio de Trento (1545-1563) que buscou reforçar essa ideia
por conta dos Reformadores, não se pairava nenhuma sombra de dúvida a respeito
disso. No entanto, se focou tão somente nesse aspecto não dando espaço
significativo para se pensar a presença de Cristo em toda a ação litúrgica.
Desse modo, a Sacrosanctum Concilium
vem como que dar uma maior visibilidade para esse ponto que foi um tanto quanto
negligenciado no decorrer dos séculos. A Constituição sobre a liturgia do
Vaticano II reconhece que Cristo está presente na celebração eucarística tanto
na pessoa do ministro quanto nas espécies eucarísticas. Está presente nos
sacramentos, na Palavra e na Igreja que se reúne para orar (n.7). Essa guinada
revela a posição global em que Cristo ocupa na ação litúrgica. Não se restringe
a tão somente um aspecto, como o das espécies do pão e do vinho. A atenção da
assembleia orante é convidada a se voltar para o todo e perceber que cada parte
da liturgia tem sua importância e dignidade que lhe é própria. Essa
hermenêutica proposta pela Constituição corrobora com a tese de que a liturgia
é a celebração do mistério pascal pelo fato de que o Senhor está presente
realmente em toda ela. Portanto, ao se falar de presença real de Cristo não se
pode cair no risco do reducionismo. Com esse número 7 a Sacrosanctum Concilium deixa, de certa forma, um alerta para se
perceber uma dinâmica holística da presença.
Celebrar o
mistério pascal é fonte de vida das comunidades eclesiais. Fazer memória do seu
Senhor é algo vital e favorece um itinerário mistagógico. A Sacrosanctum Concilium vem ao encontro
dessas comunidades. Nesse sentido, sua recepção por parte da Igreja se torna
elemento indispensável para que se possa nutrir a vida de fé dos fiéis. A
riqueza teológica que a Constituição traz a respeito da liturgia não pode ser
engavetada. Se assumida e traduzida no cotidiano da vida das comunidades,
mediante a criatividade própria do Espírito, tende a fortalecer nos fiéis a
experiência de Deus, o caminho da solidariedade com os sofredores e a comunhão
com os irmãos, haja vista que a páscoa de Jesus revela esses três aspectos. Em
tempos em que a liturgia está sendo vista por certos grupos eclesiais como algo
mecânico e/ou voltado tão somente para o cumprimento das rubricas, urge a
necessidade de revistar a Sacrosanctum
Concilium e (re)descobrir a beleza apresentada pela Constituição no que diz
respeito à vida litúrgica. Tal (re)descoberta, indubitavelmente, colaborará
para uma maior vivência daquilo que é o núcleo da fé cristã : o mistério pascal do
Senhor. ‘Fazei isto em memória
de mim’ (Lc 22,19).’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.domtotal.com/noticia/1070506/2016/09/teologia-da-liturgia-na-sacrosanctum-concilium/
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