sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Teologia da liturgia na 'Sacrosanctum Concilium'

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Cristo está presente na celebração eucarística tanto no ministro quanto nas espécies eucarísticas.
*César Thiago do Carmo Alves pertence 
à Congregação Religiosa dos Filhos de Maria Imaculada (Pavonianos)


‘O Concílio Vaticano II (1962-1965) constituiu uma guinada para a vida eclesial. Entre essas guinadas está a reforma da liturgia. A constituição conciliar que trata dela é a Sacrosanctum Concilium. Foi aprovada pelos Padres Conciliares no dia 04 de dezembro de 1963. Estavam presentes 2.178 votantes. 2.158 votaram favoráveis para sua aprovação, 19 foram contrários e 1 aprovou desde que se fizesse alguma modificação. Portanto, nota-se um número expressivo de votos favoráveis para aprovação da Constitutio De sacra Liturgia. Esses dados podem ser encontrados nas atas do Concílio Vaticano II (Acta Synodalia Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani II).

Fruto de todo um trabalho que a precedeu como o movimento litúrgico; a nouvelle théologie que buscou um retorno às fontes escriturísticas, patrísticas e litúrgicas; o trabalho das comissões pré-preparatória e preparatória que cuidou de apresentar inicialmente um esquema para a Constitutio De sacra Liturgia, no intuito de ser examinada pelos Padres Conciliares, a Sacrosanctum Concilium, com os seus 130 números, surge como uma resposta para a pessoa contemporânea de fé que procura celebrar o seu crer em Deus por meio da vida litúrgica (proêmio). Tendo presente isso, uma pergunta emerge : se o Concílio Vaticano II julgou importante uma reforma litúrgica para que se pudesse fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptando-a às necessidades contemporâneas, qual é o conceito teológico de liturgia que se pode extrair da Sacrosanctum Concilium? Para responder essa pergunta o primeiro elemento que se faz necessário afirmar é que a liturgia constitui um lugar teológico. Embora o teólogo Melchior Cano (1509-1560) não a tenha citado em seu tratado De locis theologicis, sabe-se, pela Tradição, que a partir dela o conhecimento teológico pode elaborar o seu saber, então cabe a afirmação de que a liturgia constitui um lugar teológico.

São os primeiros números que ajudam a responder a questão proposta. A liturgia é o lugar no qual se celebra a obra da redenção do ser humano (n.2). Essa obra teve o seu prelúdio já no Antigo Testamento, quando Deus operava maravilhas na vida do povo. Percorrendo a literatura veterotestamentária poder-se-á constatar isso. Como exemplo das maravilhas de Deus está a libertação dos israelitas da escravidão no Egito (cf. Ex 13,17-15,21). Tal obra se completou em Jesus Cristo por meio de sua paixão, morte e ressurreição. No mistério pascal toda a Trindade está envolvida. O Filho se entrega na obediência filial ao Pai ao seu projeto salvífico por meio da força do Espírito Santo. Além disso, foi do seu lado aberto na cruz que nasceu o sacramento de toda a Igreja (n.5). É esse sacramento que é celebrado. O mistério pascal é para a liturgia o seu fulcro. Numa perspectiva cristológica e eclesiológica, para a Sacrosanctum Concilium a liturgia é fruto de um mandato do Senhor. Da mesma forma que Cristo foi enviado pelo Pai, de igual modo ele enviou os apóstolos não somente para pregar o Evangelho e anunciar o mistério pascal, mas para também levarem a efeito o que anunciavam, isto é, a obra de salvação através do Sacrifício, que é a eucaristia, e dos demais sacramentos. Por conta disso a Igreja nunca deixou de se reunir para a celebração do mistério pascal (n.6). O caráter comunitário está implícito no modo de se pensar a vida litúrgica. Não se celebra isolado da comunidade. Em outras palavras, a dimensão cristológica da liturgia está na celebração do mistério pascal. Já a dimensão eclesiológica aponta que esse mistério celebrado é feito em comunidade. Mais ainda, ele cria comunidade. De tal modo que se faz valer o antigo e sempre atual axioma de Próspero de Aquitânia (†465) lex orandi-lex credendi, ou seja, aquilo que a Igreja ora é aquilo que ela crê. A Igreja se reúne para celebrar a páscoa do Senhor justamente pelo fato de querer evidenciar no que ela professa a sua fé. Isso faz a comunidade e vice-versa. Dito de outra forma, a liturgia faz a Igreja e a Igreja faz a liturgia.

A perspectiva cristológica na Constituição leva a radicalização positiva de algum ponto. Esse ponto diz respeito à presença de Cristo na liturgia.  Era pacífica para a teologia católica dos sacramentos a afirmação da presença do Senhor no pão e no vinho eucaristizados. Sobretudo com o Concílio de Trento (1545-1563) que buscou reforçar essa ideia por conta dos Reformadores, não se pairava nenhuma sombra de dúvida a respeito disso. No entanto, se focou tão somente nesse aspecto não dando espaço significativo para se pensar a presença de Cristo em toda a ação litúrgica. Desse modo, a Sacrosanctum Concilium vem como que dar uma maior visibilidade para esse ponto que foi um tanto quanto negligenciado no decorrer dos séculos. A Constituição sobre a liturgia do Vaticano II reconhece que Cristo está presente na celebração eucarística tanto na pessoa do ministro quanto nas espécies eucarísticas. Está presente nos sacramentos, na Palavra e na Igreja que se reúne para orar (n.7). Essa guinada revela a posição global em que Cristo ocupa na ação litúrgica. Não se restringe a tão somente um aspecto, como o das espécies do pão e do vinho. A atenção da assembleia orante é convidada a se voltar para o todo e perceber que cada parte da liturgia tem sua importância e dignidade que lhe é própria. Essa hermenêutica proposta pela Constituição corrobora com a tese de que a liturgia é a celebração do mistério pascal pelo fato de que o Senhor está presente realmente em toda ela. Portanto, ao se falar de presença real de Cristo não se pode cair no risco do reducionismo. Com esse número 7 a Sacrosanctum Concilium deixa, de certa forma, um alerta para se perceber uma dinâmica holística da presença.

Celebrar o mistério pascal é fonte de vida das comunidades eclesiais. Fazer memória do seu Senhor é algo vital e favorece um itinerário mistagógico. A Sacrosanctum Concilium vem ao encontro dessas comunidades. Nesse sentido, sua recepção por parte da Igreja se torna elemento indispensável para que se possa nutrir a vida de fé dos fiéis. A riqueza teológica que a Constituição traz a respeito da liturgia não pode ser engavetada. Se assumida e traduzida no cotidiano da vida das comunidades, mediante a criatividade própria do Espírito, tende a fortalecer nos fiéis a experiência de Deus, o caminho da solidariedade com os sofredores e a comunhão com os irmãos, haja vista que a páscoa de Jesus revela esses três aspectos. Em tempos em que a liturgia está sendo vista por certos grupos eclesiais como algo mecânico e/ou voltado tão somente para o cumprimento das rubricas, urge a necessidade de revistar a Sacrosanctum Concilium e (re)descobrir a beleza apresentada pela Constituição no que diz respeito à vida litúrgica. Tal (re)descoberta, indubitavelmente, colaborará para uma maior vivência daquilo que é o núcleo da fé cristã : o mistério pascal do Senhor. ‘Fazei isto em memória de mim’ (Lc 22,19).’


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