*Márcio Pimentel,
presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte,
especialista em música ritual pela FACCAMP, em Liturgia pela PUC-SP,
licenciando em Educação Musical pela UEMG
‘A reforma
litúrgica só pode ser compreendida com justeza no marco da pungente renovação
eclesial querida e proporcionada pelo Concílio Vaticano II. Ela é,
simultaneamente, expressão desta renovação e também sua promotora mais
autorizada. Na abertura do segundo período do Sagrado Sínodo, que trouxe como
um de seus frutos mais ricos a Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, Paulo VI afirmou
que ‘a renovação, tal como a entendemos,
decorre da consciência de que a Igreja tem de estar unida a Cristo. Vê-se como
um espelho, reflexo da imagem de Cristo’.[1] Esta percepção predominou na justificativa teológico-pastoral
para a reforma : ‘O objetivo do Concílio
é intensificar a vida cristã, atualizando as instituições que podem ser
mudadas, favorecendo o que contribui para a união dos fiéis em Cristo e
incentivando tudo que os leva a viver na Igreja.’[2]
Já em 1909, o
beneditino Lambert Beaudim chamava atenção para o fato de a Liturgia não se
configurar fonte da vida cristã. Uma das grandes dificuldades, certamente, era
a ininteligibilidade tanto da língua (latim) como também dos ritos, dada a sua
sugestão de traduzir o Missal e colocá-lo nas mãos dos fiéis, bem como de
promover a participação pelo exercício da música ritual. Durante o século XX,
inúmeras iniciativas ensaiaram a retomada da fecundidade celebrativa. Teólogos
se aventuraram em pesquisas e ensaios vislumbrando a refontalização da prática
litúrgica da Igreja, de modo que, de fato, todo homem e mulher batizados
encontrassem, pela mediação dos ritos, a Cristo Mestre e Senhor. Os padres
conciliares reconheceram o quanto era importante restaurar elementos litúrgicos
tradicionais que se perderam com o passar dos anos ou, no mínimo, se tornaram
secundários. O Salmo Responsorial, a Homilia, a Oração dos Fiéis, a Comunhão
são alguns exemplos. Já uma década antes do Concílio, Pio XII retomara a
riqueza do Tríduo Pascal e com a Carta Encíclica Mediator Dei compilou as contribuições do Movimento Litúrgico
oficialmente, para uma urgente redescoberta da Liturgia.
A preocupação
maior evidenciada na Sacrosanctum
Concilium diz respeito à participação efetiva de todo o povo batizado na
vida de Jesus, celebrada pela Igreja em sua Liturgia. Compreendida como cumen et fons da vida cristã, a
celebração necessitava redescobrir aquela nobre simplicidade obscurecida pelos
acréscimos e repetições nos diversos rituais. A ampliação do repertório
escriturístico se fez uma exigência. A celebração comunitária deveria retornar
ao seu posto primaz. A reforma litúrgica precisaria ‘tornar claro o nexo entre palavra e rito’. O caminho mais eficiente
para isto seria o tratamento a ser dado à língua litúrgica. Os padres
conciliares recomendaram corajosamente aquilo que, em Trento, já se havia
discutido, mas não fora conseguido realizar, a introdução do vernáculo. E com ele, se abrem as portas para a
inculturação.
Para que este
propósito chegasse a seu termo, era necessário, ainda, oferecer um adequado
processo de formação. Neste sentido, o Concílio reclama que a catequese sobre a
reforma seja oferecida ‘em continuidade
com a liturgia’[3] de modo que a
assembleia seja preparada devidamente para participar de maneira ativa, pia,
consciente e frutuosa das celebrações. Atrelada a esta recomendação, esteve
também a Pastoral Litúrgica em todos os níveis (paroquial, diocesano e
nacional).
Essa ‘reforma geral da Liturgia’ aconteceu e
foi exemplarmente bem-sucedida. Ainda que hajam críticas a se fazer tanto em
relação à reforma em si mesma e quanto à sua recepção, pois a vida litúrgica é
realização da Igreja e esta é semper
reformanda, os empenhos foram indiscutivelmente ricos e fecundos.
Entretanto, nas últimas três décadas, assistimos a um desmonte da perspectiva
conciliar em vários níveis, e dentre eles também da Liturgia. Começando pela Liturgia Autenticam e culminando com a Summorum Pontificum, vimos enfraquecer
paulatinamente as intuições e conquistas advindas do Concílio. Uma tendência
restaurocionista de matiz curial e – consequentemente – centralizadora,
diagnosticou uma crise eclesial derivada da perda da noção de sagrado, cuja
responsabilidade encontrou-se no edifício da reforma litúrgica. Este discurso
popularizou-se e se tornou o ‘carro-chefe’
de personalidades e movimentos ultraconservadores que passaram a defender e
mesmo, promover o ‘teorema’[4] da reforma da reforma. Recentemente
esta perspectiva foi oficialmente corrigida e educadamente reprovada na
resposta vaticana às sugestões do Cardeal Prefeito da Congregação para o Culto
Divino de se retomar a orientação versus
Orientem.
Um dos problemas a
se considerar é que este fenômeno levou alguns setores eclesiais aderentes à ‘reforma da reforma’ à negação da legitimidade
teológica assumida no Concílio e nos trabalhos que confluíram na reforma
litúrgica. Para estes grupos a descontinuidade com a tradição imediatamente
precedente naquilo que esta já não tinha condições de responder, veio a
conspurcar a pureza das celebrações cristãs. Tampouco esta ala consegue
reconhecer a radical fidelidade à tradição litúrgica que os peritos da reforma
propugnaram, ao vincular suas intervenções nos ritos na riqueza
teológico-litúrgica e também pastoral do primeiro milênio. Não para copiar o
passado, mas para fidelizar sua criatividade : um retorno ao coração da
Tradição no intuito de ‘voltar à
autenticidade das celebrações antigas, segundo ‘a antiga norma dos padres (da
Igreja)’’.[5] Afinal, esta foi
uma época de grande desenvolvimento orgânico da Liturgia e da teologia, marcada
pela contribuição patrística do Oriente e do Ocidente. Período em que o grande
cisma não havia ainda sido perpetrado.
Haja vista a lenta
recepção do Concílio, como um todo, e de modo particular da própria reforma
litúrgica, urge recuperarmos sua importância ímpar para a espiritualidade, para
a pastoral e também para a teologia. Muitos passos foram dados e se chegou
muito além do que, talvez, os padres conciliares esperassem quando recomendaram
a reforma. Não se pode ler esta constatação de maneira negativa, no entanto. A
Liturgia é um organismo vivo e seu contato com a diversidade de culturas,
contextos e mentalidades exige uma perspectiva contínua de enriquecimento,
mediante revisões e experiências. Já se verifica, por exemplo, como a questão
ecológica amplamente tratada por Francisco na Laudato si urge traduzir-se também em perspectiva litúrgica.[6] De todos os modos, vale reconhecer,
contemplando nossas celebrações e lembrando algumas palavras de Annibale Bugnini,
grande homem por trás da reforma da Liturgia, o sucesso da empreitada :
‘Era o escopo da reforma rejuvenescer, por ao
dia a expressão orante da Igreja, gestos, ritos, palavras, formas mediante uma
restauração delicada e atenta, com uma ordem racional e humana,
simultaneamente, às vezes criando ex novo, partindo das formas existentes, para
suturar e não para criar fraturas, pondo as bases de uma adaptação inteligente,
que realizasse as exigências da sensibilidade dos vários povos.’[7]’
[1] Paulo VI. Discurso na
abertura do segundo período do Concílio. In.
Vaticano II. Mensagens, Discursos, Documentos. São Paulo: Paulinas, 2013,
p. 52.
[2] Constituiçao sobre a
Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium.
Vaticano II. Mensagens, Discursos, Documentos. São Paulo: Paulinas, 2013,
n.1, p. 141.
[3] SC 59.
[4] Opinião do teólogo Andrea
Grillo. In.
http://www.ihu.unisinos.br/557763-o-fim-da-qreforma-da-reformaq-uma-pequena-historia-de-um-delirio-autorreferencial-artigo-de-andrea-grillo.
[5] Cf.
BÉGUERIE, Philippe. BEZANÇON, Jean-Noël. A Missa de Paulo
VI. Retorno ao coração da Tradição. São Paulo: Paulus, 206, p. 20.
[6] Cf. artigo de James Hug,
intitulado ‘Laudato si’ e o trabalho litúrgico daqui em diante. Disponível em
http://www.ihu.unisinos.br/558307-laudato-si-e-o-trabalho-liturgico-daqui-em-diante.
[7] BUGNINI, Annibale. La reforma litúrgica. Roma: C.L.V.
Edizioni Liturgiche, 1997, p.12.
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.domtotal.com/noticia/1070518/2016/09/entre-a-legitima-tradicao-e-o-necessario-progresso/
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