*Artigo
de Padre Márcio Pimentel,
presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte,
especialista em música ritual pela FACCAMP, em Liturgia pela PUC-SP,
licenciando em Educação Musical pela UEMG
‘Certa feita,
conversando com uma monja beneditina sobre a relação entre música e liturgia,
ela confessava : ‘para mim é a mesma
coisa, não há como separar!’. De fato, na tradição monástica, o canto e a
liturgia se confundem. Da mesma forma, o binômio Verbo-Liturgia. Temos, na
verdade, em certo sentido, uma redundância. Não apenas porque a Palavra de Deus
seja o fundamento primeiro e último das celebrações, como que configurando seu
arrazoado, mas sobretudo porque a Liturgia – na compreensão mais exata legitimada
pela tradição antiga da Igreja – é próprio o Verbo feito carne. Tanto Ambrósio
quanto Leão Magno dão testemunho disso quando afirmam que o nosso Salvador,
Jesus Cristo (Verbo de Deus) pode ser encontrado quando a Igreja celebra.
A Constituição
Dogmática sobre a Revelação Divina do Concílio Vaticano II, Dei Verbum, tem seu proêmio fixado na
constatação do anúncio de que a Igreja faz da Palavra de Deus como algo que se
pode ver e tocar : ‘anunciamos-vos a vida
eterna, que estava junto do Pai e nos apareceu : anunciamos-vos o que vimos e
ouvimos, para que também vós vivais em comunhão conosco, e a nossa comunhão
seja com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo’ (1 Jo 1, 2-3). É a ritualidade, como componente
antropológico constitutivo e por isso essencial das ações litúrgicas, que
proporciona a continuidade entre o tempo do Verbo e o tempo da Igreja, sem
rupturas. A encarnação, neste sentido, faz-se leitmotiv dos gestos e palavras
da Igreja em oração. Por ela, a Liturgia, nós continuamos a oferecer nossa humanidade
para que Deus conosco se comunique e por esta comunicação Deus, em seu Verbo,
venha habitar entre nós : Verbum caro
factum est (o Verbo se fez carne). Nos ritos com os quais a comunidade dos
fiéis celebra o Mistério Pascal de Jesus, resplandece a Palavra de Deus e essa,
por sua vez, faz-se inteligível como fato estético não só para a assembleia
reunida, mas nela mesma, mediante sua corporeidade, pessoal e comunitária.
Seguindo esse
raciocínio, concluímos que a Liturgia, por definição, aborda a Palavra de Deus
como um acontecimento sacramental. O sacrammentum
é exatamente a Palavra visível, se tomarmos como referência as noções
teológicas de Orígenes e Agostinho : ‘tira a Palavra e o que sobra? Água, Óleo,
Pão’. Cláudio Pastro oferece um conceito sintético de Liturgia que
vai nesta mesma direção : ‘a encarnação
do Mistério Pascal em nosso corpo’ [1]
Por trás desta perspectiva ressoa um antigo ensino patrístico: caro salutis
cardo, ou seja, a carne é instrumento da salvação. Escreve Tertuliano, em seu De Ressurrectione Mortuorum :
Quando entre a
alma e Deus se estabelece um elo de salvação, é a carne que faz com que ele
exista. Assim, a carne é lavada para que a alma seja purificada; a carne é
ungida, para que a alma seja consagrada; a carne é marcada com o sinal da cruz,
para que a alma seja fortalecida; a carne é coberta com a sombra da imposição
das mãos, para que a alma seja iluminada pelo Espírito; a carne é alimentada
com o Corpo e Sangue de Cristo, para que a própria alma seja saciada. [2]
A Constituição
Conciliar sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum
Concilium, ensina que ‘a Liturgia
(...) edifica os que estão na Igreja em templo santo no Senhor, em morada de
Deus no Espírito’ [3]. Essa
afirmação, que tem seu fundamento na Sagrada Escritura [4], ecoa em toda ação litúrgica cristã. O culto dos cristãos como
empreendimento religioso somente se explica e sustenta se assumido nessa
direção. E é exatamente nesse item que se diferencia das outras tradições e
caminhos espirituais. No cerne de toda Liturgia está a nossa humanidade como
lugar e condição para que se efetue a salvação. Humanidade assumida por Deus na
encarnação de seu Filho e que, segundo a mesma Sacrosanctum Concilium, tornou-se ‘instrumento da nossa salvação.’ [5]
Tudo isso nos leva
a considerar a assembleia litúrgica como sendo o contexto por excelência para a
leitura e interpretação da Sagrada Escritura. ‘É na Liturgia que Deus fala ao Seu povo, e Cristo continua a anunciar o
Evangelho’. [6] A Bíblia, testemunho mais eloquente da Revelação, unida à
Tradição da Igreja, tem na Liturgia seu lugar de cumprimento. Ao celebrar, o
Povo de Deus professa a fé, narrando-a, experimentando-a e a exprimindo
mediante os ritos e preces. Assimilam o Verbo da Vida que hospedam em seu
corpo, de maneira a transformar-se nEle próprio, conforme rezamos no 27º
Domingo do Tempo Comum após a comunhão : ‘sejamos
transformados naquele que agora recebemos’. Por esse motivo, os padres
conciliares solicitaram maior abundância de textos escriturísticos nas
celebrações da Igreja, bem como se tornasse clara a conexão entre Palavra de
Deus e Rito. [7]
Enfim, porque a
Liturgia é a própria vida do Filho em nós [8],
Palavra feio carne nele e – como prolongamento – também em nós, deve-se
concluir que somente através do rito nos é possível a experiência do Mistério
de Deus. [9] Esse ‘somente’ não é exclusivo, porque a
Liturgia ‘não esgota toda a ação da Igreja’ [10]. Entretanto, porquanto ela (a Liturgia) seja ‘simultaneamente a meta para a qual se
encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força’ [11] a ritualidade é condição inclusiva
de todas as demais atividades da Igreja como ocasião para que a Revelação
continue a reverberar no seio da humanidade. Em suma, não há fé cristã sem
ritos, porque não há mundo sem Palavra e não há – na ordem da criação e da
encarnação, sacramentalmente falando – Palavra sem Liturgia. A Liturgia é a
própria carne do Verbo, pois Cristo se fez lugar no qual Deus mesmo se faz
Servo, arma a tenda, põe a mesa e, dando-se, convive conosco, de modo que é na
carne humana do Filho que se dá que o culto divino se faz pleno. [12]’
[1] PASTRO, Cláudio. O Deus da beleza. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 32.[2] Tertuliano. De ressurrectione mortuorum, 8,3. In. Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 220, n. 741.
[3] Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 2. In.http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html
[4] Cf. 1Pd 2,4-10.
[5] Sacrosanctum Concilium, 5.
[6] Sacrosanctum Concilium, 33.
[7] Cf. Sacrosanctum Concilium, 35.
[8] Cf. MARINI, Piero. Primum Celebrare. In. GRILLO, Andrea, RONCONI, M. La reforma della Liturgia. Milano: Periodici San Paolo, 2009, p. 4.
[9] Cf. MARINI, Piero. Prospettive per una pedagogia della fede celebrata. In. Il Misale expressione della Traditio Ecclesiae. Rivista Liturgica, n.97. Padova: Edizioni Messagero, 2010, p.438.
[10] Sacrosanctum Concilium, 9.
[11] Sacrosanctum Concilium, 10.
[12] Cf. Sacrosanctum Concilium, 5.
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