*Artigo
de Padre Rodrigo Ferreira da Costa,
Missionário Sacramentino de Nossa Senhora
‘Deus é
comunicação. ‘Ele nos falou muitas vezes
e de muitos modos, e nesses dias que são os últimos, falou-nos por meio de seu
Filho’ (cf. Hb 1, 1-2), ‘Palavra
eterna do Pai que se fez carne e morou
entre nós’ (cf. Jo 1,14). Em Jesus de Nazaré, a Palavra de Deus se fez
palavra humana. Por Ele, Deus nos fala usando linguagem humana, ou melhor, Deus
mesmo fala de si na linguagem humana, ou ainda, a linguagem humana nos fala de
Deus. Na Palavra de Deus humanada, abre-se uma nova perspectiva para ouvir a
Palavra de Deus (Escritura), para falar com Deus (oração) e para falar sobre
Deus (teologia). Agora podemos ir a Deus, porque Deus mesmo veio a nós, ou
seja, a porta que entramos (ir) para Deus é a mesma que ele usou para vir a
nós, a saber, a humanidade.
Santo Agostinho
dizia que Deus escreveu dois livros. O primeiro livro não é a Bíblia, mas, sim,
a criação, a natureza, a vida. É pelo Livro da Vida que Deus quer falar
conosco. Tudo o que existe é expressão do Dizer de Deus. Cada ser humano é uma
palavra ambulante de Deus. Porém, devido à nossa tentação de querer dominar
tudo, as letras desse livro se atrapalham e acabamos por não ouvir Deus na
vida. Então, para nos ajudar a ler a vida, Deus escreveu mais um livro que é a
Bíblia. Esse segundo livro não foi escrito para substituir o Livro da Vida.
Pelo contrário. A Bíblia foi escrita para nos ajudar a entender melhor o Livro
da Vida, a descobrir Deus na vida.
A leitura diária
da Bíblia, dizia Agostinho, é como um colírio que colocamos no olho, que
melhora a nossa visão e, com esse novo olhar de contemplação, somos capazes de
decifrar o mundo e perceber nele os sinais da presença amorosa de Deus, de modo
que o universo se torne novamente lugar da revelação de Deus, e volte a ser o
que é : ‘o Primeiro Livro de Deus’
para nós.
Ajudar-nos a
descobrir Deus na vida, a escutar Deus no rosto do outro. Esse é o grande
objetivo das Escrituras Sagradas. Pois ouvir/obedecer a voz do rosto que grita
por justiça e que me implora : ‘não
matarás!’ é a única via que conduz à compreensão da palavra Deus. Neste
sentido, ‘o clamor dos pobres, verdadeiro
sinal de nosso tempo, constitui um lugar teológico especial e privilegiado, não
como fonte de revelação, mas como lugar adequado onde a Palavra se faz história
e o Espírito a recria’ (CODINA, Victor . Não extingais o Espírito. p. 252).
A Bíblia antes de
ser escrita ‘caminhou’ com o povo de
Israel pelo deserto. A experiência da libertação de Israel da escravidão do
Egito narrada no livro do Êxodo é o evento fundante de todo o Antigo Testamento
(AT). Entretanto, foi no período do Exílio na Babilônia (597/586 -538 a.c.) que
se constituiu a maior parte dos escritos do AT. Diante da crise pela perda da
terra, a destruição do Templo e do perigo de diluir a identidade de povo, em
meio aos estranhos, na Babilônia, Israel relê a sua história à luz da fé,
reconhece o seu desvio da Aliança que havia feito com o Senhor e procura
reerguer o ‘edifício’ que havia
desmoronado com a crise do Exílio. Desta forma, ‘relendo e compreendendo sua história, o povo bíblico não viu apenas
como num espelho o seu próprio rosto, mas enxergou o rosto de Deus e percebeu o
Mistério que o conduziu em suas andanças e migrações, sucessos e malogros.’
(KONINGS, Johan. A palavra se fez livro.
p. 84).
A origem do Novo
Testamento (NT) não foi muito diferente.
O ‘evento’ Jesus de Nazaré
marcou a memória dos seus primeiros seguidores. Jesus foi um homem do povo,
realizou obras grandiosas, chamou discípulos, proclamou o Reinado de Deus,
assumiu-se como o Filho de Deus... Porém com a sua morte veio a frustração.
Toda esperança parecia estar acabada. A fé na ressurreição, entretanto, reaviva
a memória da comunidade cristã, desperta os seus seguidores a reler as
Escrituras e a perceber nelas o anúncio de um Messias que será aplicado a
Jesus, o Cristo. ‘E, começando por Moisés e percorrendo todos os Profetas,
explicou-lhes, em todas as Escrituras, as passagens que se referiam a ele’ (Lc
24,27).
Percebe-se que a
Bíblia nasceu ligada à vida. Ela foi escrita para animar a esperança e
fortalecer o povo na fé. A Bíblia anima e ilumina a vida e a vida concreta do
Povo de Deus atualiza a Bíblia. Na comunidade reunida, na Igreja que testemunha
e anuncia a Palavra de Deus, essa Palavra continua se fazendo carne. Pois toda
leitura da Bíblia é uma releitura. O texto sagrado jamais fica ultrapassado.
Ele mantém-se sempre vivo e atual devido às releituras da comunidade. Daí a
importância de ler a Bíblia com o olhar atento no texto, no contexto em que
este foi escrito e na realidade concreta da comunidade de hoje. Desligada da ‘boa terra’ da realidade viva do povo, a
Palavra semeada não produz, não gera conversão, esperança e fé.
Dessa forma,
abeirar-se das Escrituras não significa apreender decretos e verdades sobre
Deus. Trata-se de contemplar o próprio Deus que fala de si mesmo a nós seres
humanos, como um amigo fala com o amigo. ‘O
SENHOR falava com Moisés face a face, como um homem fala com seu amigo’ (Ex
33, 11). Por isso a Igreja sempre considerou as divinas Escrituras como regra
suprema da sua fé. Como afirma São Jerônimo : ‘Quando vamos receber o mistério eucarístico, se cair uma migalha
sentimo-nos perdidos. E, quando estamos a escutar a Palavra de Deus e nos é
derramada nos ouvidos a Palavra de Deus que é carne de Cristo e seu sangue, se nos
distrairmos com outra coisa, não incorremos em grande perigo? Realmente
presente nas espécies do pão e do vinho, Cristo está presente, de modo
semelhante, também na Palavra de Deus’ (cf. Verbum Domini, n. 56).
Uma experiência
bem sucedida desse modo de ler a Bíblia ligada à vida acontece nos Grupos de
Reflexão da Bíblia (círculos bíblicos) que procuram ler a Bíblia à luz da vida
concreta da comunidade. Tendo como eixo central o texto das Escrituras,
procura-se encontrar respostas para as crises e alimentar o profetismo do povo,
no sonho por um mundo diferente. Esse
modo de anunciar a Palavra de Deus em família, fazê-la circular de casa em
casa, de coração a coração, amplia o contato e o conhecimento da Bíblia, aproxima
as pessoas, abre os olhos para ver as realidades de injustiça e pecado
presentes na sociedade, desperta novas lideranças para os diversos ministérios
na comunidade, anima a vida de fé e fortalece o testemunho cristão do povo.
Esses grupos de estudo bíblico são como que pequenas células que animam, geram
vida e compromisso de fé nas comunidades.
Da igreja para as
casas e das casas para o engajamento na comunidade. Os grupos de reflexão da
Bíblia nos faz sair da inércia, do individualismo, para irmos ao encontro do
grito dos oprimidos e dos lamentos dos infelizes levando a esperança,
compartilhando a fé e a caridade. Desse modo, as pessoas não ficam isoladas em
seus grupos, mas no encontro mensal que reúne todos os grupos da comunidade é
escolhido um gesto concreto a ser realizado por toda comunidade. Isso faz com
que os grupos passem da reflexão para a ação missionária na comunidade e na
sociedade.
Os Grupos de
Reflexão, com uma linguagem simples e acessível a todas as pessoas, falam da
profundidade da Palavra de Deus, partindo do cotidiano das pessoas para
revelar-lhes algo mais essencial : o tesouro do reino. É a Palavra de Deus se
fazendo carne na vida do povo de Deus e, ao mesmo tempo, é luta concreta do dia
a dia do povo se fazendo palavra de Deus. Como afirma T. Radcliff, ‘se a Palavra se fez carne, foi também para
que a carne pudesse se fazer Palavra’.
Conclui-se,
portanto, que a Palavra de Deus é maior do que a Bíblia. Deus se autocomunica
através da história humana, dos acontecimentos, dos ‘sinais dos tempos’, da Tradição da Igreja... Porém nos fala de modo
muito particular nas Sagradas Escrituras, pois de forma análoga ao Verbo divino
que se fez carne assumindo a fragilidade humana, a Palavra de Deus assumiu a
fragilidade da linguagem humana, fez-se Livro (cf. Dei Verbum, n.13). Nesse sentido, o testemunho de fé descrito nas
páginas das Escrituras Sagradas é como gotejo de chuva, como chuvisco sobre as
plantas e aguaceiro sobre as pastagens (cf. Dt 32,2), que fecunda e faz brotar
a boa semente da fé, da esperança e da caridade em nossos corações.’
Fonte :
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