Por Eliana
Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor
em Teologia Sistemática
pela
Pontificia Università Antonianum, Roma.
‘No próximo dia 04
de setembro, o papa Francisco canonizará Teresa de Calcutá. Anos atrás, por
ocasião do 10º aniversário de sua morte, julgou-se oportuno publicar suas
cartas espirituais; fato que acabou provocando uma enorme celeuma. O livro Mother Teresa : Come Be My Light (Madre
Teresa : Vem, sê minha luz) – publicado pelo Pe. Brian Kolodiejchuk,
Missionário da Caridade e postulador da causa de canonização de Madre Teresa –
tornou públicas revelações inéditas que trouxe luz nova para se compreender em
profundidade Teresa de Calcutá. Estas cartas que, em diversos momentos de sua
vida, Madre Teresa escreveu a seus diretores espirituais fazem-nos, de fato,
pensar. Elas revelam sua paradoxal experiência de Deus e, portanto, confirmam a
singularidade de seu itinerário existencial e espiritual.
Contemporâneos de
Madre Teresa, nós seguimos de perto o itinerário da mulher audaciosa que,
movida por inspiração divina, deixou tudo para melhor cuidar dos mais pobres
entre os pobres. Empanturradas de tantas imagens, nossas cansadas retinas
registraram uma em especial : a daquela mulher – rosto marcado por rugas
profundas, sorriso largo e pés rachados – que caminha pelas sarjetas de Calcutá
cuidando de seus pobres queridos. Acompanhamos ainda de perto tudo o que foi se
constituindo em torno dela : a chegada das primeiras companheiras, a expansão
do movimento por ela iniciado e, sobretudo, o crescimento vertiginoso de suas
atividades de solidariedade e de cuidado para com os mais pobres. Apesar da
ampla cobertura que a mídia sempre lhe deu, não poderíamos sequer imaginar o
que se passava na intimidade do coração daquela mulher serena e incrivelmente
terna.
Somente agora,
após a publicação dessas suas cartas-diário, temos notícia da oprimente
escuridão que pesava com gravidade sobre ela, a partir de sua nova vida a
serviço dos pobres, tornando sobremaneira opaco seu horizonte : ‘Há tanta contradição em minha alma, um
profundo anelo de Deus, tão profundo a ponto de fazer mal, um sofrimento
contínuo – e com isso o sentimento de não ser querida por Deus, rejeitada,
vazia, sem fé, sem amor, sem zelo... o céu não significa nada para mim,
parece-me um lugar vazio’.
Essa longa
escuridão da alma parece, desde então, não ter mais deixado Madre Teresa senão
por breves intervalos de tempo. E como revelam suas cartas espirituais, com o
passar do tempo, colocando-se na trincheira aberta pelos grandes místicos da
tradição cristã, dentre os quais se destaca São João da Cruz, Madre Teresa não
apenas suportou com resignação estas pesadas trevas. Ela aprendeu a amá-las,
considerando-as uma graça especial que lhe fora concedida pelo Pai de se
solidarizar mais intimamente com o Cristo sofredor que, na cruz, fez a
experiência do mais radical abandono. ‘Comecei
a amar minha escuridão, porque creio agora que ela é uma parte, uma pequeníssima
parte, da escuridão e do sofrimento nos quais Jesus viveu sobre a terra’.
Todavia, o que
mais chama a atenção é o fato de Madre Teresa ter conseguido esconder esse seu
grande sofrimento interior mesmo daquelas pessoas que lhe eram próximas. Mais
que esconder, como ninguém, soube ela transfigurá-lo naquele seu terno e perene
sorriso. Esse silêncio de Madre Teresa se converte, portanto, na pérola mais
preciosa de sua interminável noite escura. Silêncio esse apenas rompido graças
a seus diretores espirituais e ao Cardeal Picachy, que descumpriram a exigência
da própria Madre Teresa de destruir todas as suas cartas. ‘Todo o tempo a sorrir, – escreve Madre Teresa – dizem de mim as irmãs e
as pessoas. Pensam que o meu íntimo seja repleto de fé, confiança e amor... se
somente soubessem como o meu ser alegre é apenas um manto com o qual cubro
vazio e miséria!’
Madre Teresa
parece ciente que a vaidade religiosa é a mais perniciosa de todas. Tornar
público esse seu tormento interior poderia se tornar uma maneira insidiosa de
chamar a atenção sobre si, sobre sua noite escura, julgando-se no rol das almas
seletas que vivenciaram, na tradição dos grandes místicos, essa peculiar
experiência religiosa. Talvez, Madre Teresa acolhesse este tormento interior
como o espinho na carne do qual nos fala São Paulo : ‘Para que eu não me ensoberbecesse pela grandeza das revelações, foi-me
dado um espinho na carne’ (2Cor 12,7). Esta longa noite da alma talvez a
tenha preservado de se deixar embevecer pela publicidade em torno dela e pelos
imensos holofotes que lhe foram projetados no curso de sua vida. Ao receber o
prêmio Nobel pela paz, ela escreve : ‘A
dor interior que sinto é tão grande que não experimento nada por toda a
publicidade e o falatório das pessoas’.
No entanto, como
já tivemos ocasião de assinalar, Madre Teresa abraça esse seu longo tormento
interior como caminho privilegiado de solidariedade a Jesus, que assumiu a dor
e o sofrimento provocados pelo abandono como expressão de seu amor solidário
para conosco. Ela consuma, desse modo, seu discipulado, tornando-se discípula
fiel daquele que morreu crucificado, clamando : ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’ (Mc 15,34; Mt 27,46).
Compreende-se assim a peculiar mística vivida por Madre Teresa e suas
companheiras : compartilhar o grito ‘Tenho
sede’ de Jesus sobre a cruz. ‘Se a
pena e o sofrimento, minha escuridão e separação de ti te dá uma gota de
consolo, meu Jesus, faz de mim aquilo que queres... Imprime em minha alma e na
vida o sofrimento do teu coração... Quero saciar a tua sede com cada gota
individual de sangue que podes encontrar em mim. Não te preocupes em voltar
logo: estou pronta para esperar-te por toda a eternidade’.
Esse silêncio de
Madre Teresa faz pensar. Ninguém jamais duvidou da extrema solidariedade que
ela logrou para com os mais pobres entre os pobres. O que não imaginávamos é
que ela também tivesse vivido uma inusitada solidariedade com tantos que
experimentam de maneira angustiante e dolorosa o silêncio de Deus. São, de
fato, cada vez mais numerosos os que hoje em dia não fazem do próprio ateísmo
uma bandeira de reivindicação ou um motivo de alarde. Vivem na pele a angústia
existencial da perda do sentido e, a seu modo, atravessam a noite escura do
espírito.
Existe de fato o ateísmo de protesto que se caracteriza pela recusa
de Deus. Mas também existe o ateísmo de quem se sente – ao menos assim lhe
parece – recusado por Deus. Este é precisamente o ateísmo dos místicos que,
como Madre Teresa, atravessam longas noites do espírito, sentindo-se rejeitados
por Deus. Não seria também esta a experiência de Jesus que, na cruz,
sente-se a-teu, vale dizer, sem Deus? E que vive este extremo abandono como uma
experiência singularmente solidária e, portanto, redentora? Escreve Madre
Teresa : ‘Dizem que a pena eterna que
sofrem as almas no inferno é a perda de Deus... Em minha alma eu experimento
precisamente esta terrível pena da condenação, de Deus que não me quer, de Deus
que não é Deus, de Deus que na realidade não existe. Jesus, peço-te, perdoa a
minha blasfêmia’.
Mas, ao mesmo
tempo, Madre Teresa manifesta uma consciência ímpar : sua participação na obra
redentora de Cristo que assume o abandono da cruz como experiência de
solidariedade com todos os pecadores e distantes de Deus ‘Quero viver neste mundo tão distante de Deus e que virou as costas à
luz de Jesus, para ajudar as pessoas, tomando sobre mim algo do seu sofrimento’.
Toda mística verdadeira pressupõe esta dilacerante experiência do ateísmo,
vivido como distância de Deus. Não existe outra maneira de se cultivar a
presença de Deus do que se exercitar no desejo de tal proximidade por entre os
escombros angustiantes de sua distância e ausência.
Os místicos vivem,
portanto, numa proximidade inusitada com aqueles que sofrem na pele a angústia
do abandono de Deus. Ambos experimentam de maneira singular a vertigem de
lançar-se no fundo. É quanto exprime Madre Teresa, em uma de suas cartas a seu
pai espiritual : ‘Estive a ponto de dizer
Não... Sinto-me como se algo um dia ou outro devesse despedaçar-se em mim.
[...] Ora por mim, para que eu não recuse Deus nesta hora. Não o quero, mas
temo poder fazê-lo’.
A partir do
conteúdo de suas cartas espirituais, Madre Teresa se nos afigura como uma
mulher excepcional. Ela transfigurou sua sede de Deus numa incansável busca de
solidariedade com Seus filhos e filhas preferidos, os pobres mais pobres. Nela,
portanto, não se percebe nenhum ranço de separação, e muito menos de
contraposição, entre pobreza material e pobreza espiritual. Ela nos recorda que
somente um despojamento interior vivido na mais profunda radicalidade é capaz
de propiciar uma solidariedade efetiva para com os pobres e desvalidos deste
mundo. E nos ensina ainda que é no cuidado solidário para com os mais pobres
que se aguça a sede de Deus e que se intensifica o desejo Dele.
E assim fazendo,
ela se nos revela como uma mulher profundamente solidária com os homens e as
mulheres de seu tempo. Encontramo-nos, na verdade, divididos entres aqueles que
vivem a angústia da crise de sentido e aqueles que se sentem anestesiados pelo ‘excesso de crença’. Talvez o maior
legado de Madre Teresa consista no testemunho de uma intrínseca reciprocidade
entre desejo de Deus e solidariedade efetiva para com suas criaturas mais
frágeis. Diante deste testemunho de singular experiência humana e espiritual,
cabe-nos, afinal, a pergunta: por que insistir em reduzir os santos e santas a
meros dispensadores de benefícios e graças, ou a personagens que estão aí
apenas para nos dar bom exemplo?’
Fonte :