terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Um copo de água ao cáfir

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Padre Feliz da Costa Martins,
Missionário Comboniano


No Sudão, os seguidores de Jesus são apenas cinco por cento da população. Nessas circunstâncias, um cristão facilmente pode vir a ser apelidado de cáfir (infiel).


Saí da paróquia de Nyala numa carrinha, o transporte público usado na cidade. Baixei a um quilômetro do campo de deslocados de Dreij onde cerca de 80 mil pessoas tentam sobreviver. Hoje deixei o cantil da água em casa, pois sei que a Organização das Nações Unidas tem feito um trabalho excelente, de modo que não se deva morrer à sede nos campos de deslocados. A missão mista da ONU e União Africana no Darfur (UNAMID, em sigla inglesa), tem cerca de 15 mil elementos espalhados por todo o Darfur, uma área cinco vezes maior do que Portugal.

Ao passar pela primeira loja que encontro, peço uma garrafa de água. «Só vendemos água a copo», responde, timidamente, o miúdo do outro lado do balcão.

«Cáfir [infiel]», ouço alguém murmurar. Embora não o visse, não estaria muito longe de mim. Um insulto, sem dúvida, mas fingi o contrário. Mantive-me calmo e levei a coisa a brincar, perguntando : «Cáfir… quem?»

Sem tardar, apareceu um homem que se levantava do angarebe, a cama típica sudanesa feita de cordas de sisal. Depois da saudação normal do assalam aleicum – paz convosco – manifestei, educadamente, que tinha uma correção a fazer. E ele ouviu, não sem surpresa, o que eu, calma e firmemente, pronunciei : «Eu não sou cáfir, eu creio em Alá, Deus, que nos quer bem a todos por igual. Rezo e peço também para que Alá o bendiga a si e a todos os desta casa.»

Apesar da situação em que me tinha metido, sentia-me feliz e sereno. No entanto, não deixei de respirar fundo, preparando-me para uma reação, grosseira e ofensiva que, porventura, viesse do outro lado.


Bom coração

O homem de trás do balcão fitou os meus olhos, enquanto a sua face barbuda adotou um tom grave e sisudo; não vi maldade no seu coração. Da sua boca ouvi palavras que registei com atenção e respeito : «Lembre-se, khauaja [estrangeiro], que se em vez da minha pessoa tivesse topado com outro muçulmano, você já teria, certamente, levado com a porta na cara. No entanto, da minha parte, pode estar tranquilo; mas deixe que lhe diga e confirme o que é essencial e sacrossanto para nós que seguimos a religião islâmica», disse, num tom sério.

«Sou todo ouvidos», respondi. Ele pronunciou com solenidade : «Alá, Deus, enviou Maomé (a bênção de Deus esteja com ele) a esta terra. Foi por meio deste distinto mensageiro árabe que o mundo conheceu ou virá, um dia, a conhecer a majestosa religião islâmica. Desde então ficou claro que todas as outras religiões, as que vieram antes e as que, porventura, viessem depois, estão fora do verdadeiro culto ao Altíssimo e Todo-Poderoso.»

Eis um ser humano profundamente convicto da sua religião cujas palavras contrastam com a minha fé cristã, pensei comigo mesmo. Apesar de tudo, não sinto neste meu irmão muçulmano a mancha do proselitismo ou extremismo, como acontecera noutras conversas com alguns dos seus correligionários. A minha inspiração é não só manifestar-lhe o meu respeito, como também dar graças a Deus pela paz e serenidade que experimento neste momento e neste lugar. Sem dúvida que estou diante de um homem de bom coração.

«Ah, já me estava a esquecer», disse, ao mesmo tempo que alcançava um grande copo de alumínio na extremidade do balcão : «Não temos água de garrafa; tenho um zir, uma bilha, que conserva a água fresca. Mas também tenho gelo, porque estes dias de Verão são extremamente quentes», completou, enquanto o vi desaparecer para depois de alguns segundos voltar com o copo de litro quase cheio de água em que deixou cair dois pedaços de gelo que, em seguida, me ofereceu.

«Chucran [obrigado]», agradeci, enquanto recebia o copo.

E retomou a conversa : «Na khalua [a escola alcorânica das crianças], aprendemos coisas que, mais tarde, pela vida fora, quando encontramos alguém que não é muçulmano, usamos e repetimos demasiado facilmente e mesmo sem refletir. Como aquela palavra que, há pouco, você ouviu da minha boca – cáfir», disse, como que a pedir desculpa. Ao que eu respondi que não se preocupasse, pois não tomei isso como ofensa.


Recordar é viver

«Já agora, desculpe! Ainda não lhe tinha dito o meu nome; chamo-me Abdallah. A minha terra é Bulbul, a uns sessenta quilômetros daqui. Lá não havia fome; bastava semear e trabalhar a terra durante o kharif [a estação das chuvas] e tínhamos comida para toda a família. Até que um dia, faz agora sete anos, chegaram os janjauides [militantes da milícia que opera no Darfur]. Destruíram, mataram, queimaram. Dois dos meus filhos desapareceram nesse maldito e diabólico ataque.»

Abdallah fez uma breve pausa, procurando dominar a emoção, e reatou : «Imaginava-os fugitivos e, mais tarde, errantes, à procura de pão e segurança, na esperança da feliz ocasião de nos encontrarmos de novo. Depois de alguns meses, porém, tivemos de nos render à realidade de que este mundo já não é seu. E a dor é ainda maior quando nem sequer podemos dar sepultura aos nossos mortos. Nós, os sobreviventes de Bulbul, fomos avançando, aos poucos, por etapas, acampando aqui e ali, até chegarmos aos grandes campos de deslocados nos arredores da cidade de Nyala. Eu, originalmente, tinha-me estabelecido com a minha família em Salam, mas, um ano depois, mudei-me para este lugar, onde sabia que a maioria das pessoas do meu clã se encontrava. Aqui é mais fácil juntarmo-nos para recordar e reviver o que aconteceu.»

«Recordar coisas tristes?», ousei interromper. «Sim», repostou. «Recordar os nossos mortos, trazer à mente as destruições, os incêndios e o despojamento total dos nossos bens. Pensa que deveríamos esquecer? E as mulheres e adolescentes que os janjauides violentaram para logo a seguir dispararem sobre elas, abandonando-as num lago de sangue? Esquecer? Quem esquece significa que já não tem vida em si; é como se estivesse morto. Pelo contrário, recordar faz-nos viver e lutar pela vida», rematou com arrojo e decisão.

Abdallah era como um jornal aberto donde ia tirando histórias não só da sua aldeia natal, mas também de muitas outras terras darfurianas que sofreram destinos semelhantes, tal como ele tinha ouvido de testemunhas seus vizinhos.


Em direção à mesquita

O altifalante da mesquita próxima de nós trovejou. A proclamação do adan, o chamamento para a oração, majestosamente cantado pelo muezim atravessa os céus e penetra em todo o espaço em redor : «Allahu acbar, Deus é o maior.»

É sexta-feira. Desvio o olhar na direção da rua onde já se avistam alguns homens de jelaba branca que caminham na direção do templo. Dos aposentos internos da loja aparece uma mulher com o ibrique, o regador de plástico pequeno, na mão, que pousa no fundo da prateleira principal, começando, de seguida, a desocupar o balcão. Vem acompanhada de um menino a quem ajuda a vestir as cirual, as calças brancas que se usam por debaixo da jelaba. Demora-se a ensinar-lhe a fazer a laçada da tica, o cordão, em volta da cintura. O pequeno estabelecimento está a fechar. É dia santo semanal. Folgam as instituições e repartições governativas, se bem que o mercado em geral conserva-se aberto, livremente, segundo as conveniências e próprios interesses dos respectivos donos. Digno de menção, porém, é que ao começar a oração comunitária do dia santo muçulmano, antes das duas horas da tarde, não se vêem portas de estabelecimento comercial abertas.

Observo Abdallah, que, tendo arregaçado as típicas longas mangas da jelaba até ao ombro, está agora a acabar de fazer a sua ablução, isto é, o ritual da lavagem antes da oração. Uma mão segura o ibrique de cujo pequeno cano vai caindo a água na concha dos dedos curvados da outra mão que eleva cuidadosamente até um pouco mais acima do cotovelo. Sem interromper o ritual da ablução, o fiel muçulmano vai-me dizendo : «Khauaja [amigo], não estou a mandá-lo embora, mas o muezim já chamou para a oração.»

Eu nem o deixei terminar de falar, atalhando imediatamente : «La samaha Allah! [Deus me livre de tal]. Não seja por minha causa que vá chegar tarde ao apontamento da oração na mesquita.» E, com as moedas na mão, fui dizendo, apressadamente : «Mas não queria ir embora sem liquidar a minha conta.» Vi-o reagir delicada mas seriamente. «Não me queira ofender com essas suas palavras», disse, enquanto sacudia as últimas gotas de água das mãos. «E, quando passar de novo por aqui, espero poder oferecer-lhe não só água para beber mas também o almoço e mais tempo para estarmos juntos, in cha’Allah, se Deus quiser», concluiu.

«Chucran [obrigado]», respondi-lhe encarecidamente. Ele veio à frente do balcão para um forte e sentido aperto de mão. «Ah, antes de partir, aceite as minhas desculpas por tratá-lo por khauaja, estrangeiro, sem lhe ter perguntado sequer o seu próprio nome.» «Não há mal nisso; fica para a aproxima vez», respondi.

Atravessei a soleira e ouvi a porta ranger; pouco depois, distingui, claramente, o clique ao fechar do loquete. Dei os primeiros passos na areia mole da rua, voltei-me ainda para trás e disse : «Maa assalama [adeus]

Se, porventura, Abdallah não ouviu esta minha saudação de despedida, muitos outros, porém, a ouviram, admirando-se de ver um estrangeiro branco naquele lugar. Era uma multidão de jelabas que ondulavam no grande areeiro que se perdia lá ao longe, até entrar no grande bloco espesso e denso das tendas do acampamento onde homens, mulheres e crianças foram destinados mas não pelo acaso ou má sorte. Pelo contrário, o que os trouxe aqui foi o interesse dos homens que se transformou em ódio, violência e guerra.’


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