sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Falências e reações

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Dom. Walmor em peregrinação dos moradores de rua ao Santuário Nossa Senhora da Piedade
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG


A passagem de 2015 para 2016, com a contagem dos dias do novo ano civil, incide diretamente nos propósitos pessoais e nas possíveis reações que buscam novos funcionamentos, transformações nas relações, nos hábitos e na governança, em diferentes segmentos da sociedade. Considerando o legado desolador deixado pelo ano que passou, é hora de efetivar mudanças. Particularmente neste terceiro milênio, os horizontes da democracia e dos admiráveis avanços científicos e tecnológicos contracenam com os rios de lama da corrupção, dos desvarios no mundo da política, da submissão de poderes a interesses partidários e cartoriais, dos abomináveis desastres ambientais e humanitários. Para transformar esses cenários desoladores, não bastam as mudanças em propósitos e hábitos pessoais. A renovação das consciências é minimamente presumível para que seja superado o descaso com que se costuma tratar a vida e as coisas na sociedade brasileira.

Se não houver mudança de conduta, haverá o comprometimento do bem e da justiça. Os mais pobres e indefesos sempre pagam o preço mais alto. Bem no início desta contagem do ano novo de 2016, em meio ao tratamento dos problemas que continuam gerando suas consequências e preços a pagar, é urgente considerar que a crise das crises - a crise motora de todas essas outras em curso - é a de caráter antropológico. Não diz respeito apenas a funcionamentos comuns e nem mesmo se resolverá com mudanças de nomes ou substituição de legendas partidárias. A crise, quando de caráter antropológico, é algo mais sério e profundo. Exige novos entendimentos e grande investimento na configuração mais consistente do tecido cultural.

Assim, não basta resolver o caos perpetuado na sede dos poderes. Lá estão urgências que precisam de novas e velozes reconfigurações. Mas é necessária uma revolução cultural na sociedade brasileira, a partir de análises, assessorias especializadas, engajamentos mais efetivos dos centros de pesquisa, formação e educação, como universidades e escolas, com a participação decisiva e insubstituível dos formadores de opinião, diversos meios de comunicação, não podendo ficar de fora os produtores, instâncias e segmentos culturais. A revolução cultural almejada não é um movimento político partidário e nem se reduz a formas e dinâmicas de governo. Trata-se de investir e conquistar entendimentos novos sobre a própria realidade histórico-cultural, promovendo clarividências.  Todos precisam compreender melhor a sua missão e vocação para efetivar, a partir de riquezas próprias, por vezes desprezadas, desconhecidas e maltratadas, novo conjunto de hábitos. 

São urgentes novas posturas políticas, ousadia em empreendimentos e no tratamento das prioridades dos segmentos do povo para constituir um substrato cultural com consistência e força para poder debelar descompassos.  Desse modo, poderão ser consolidadas dinâmicas saudáveis do viver cotidiano, que promovem o desenvolvimento sustentável, equilíbrio na gestão e governanças inteligentes. O processo de enfrentamento da grande crise antropológica parece não poder ser tratado senão a partir de ações nos muitos contextos regionais do Brasil. No horizonte do país com dimensões continentais, precisam ser feitas análises e verificações no tecido cultural de cada região. A gigante realidade cultural brasileira precisa de resgates pontuais e incidentes nos seus substratos. No conjunto da crise antropológico-cultural estão os rasgões na diversidade que configura a unidade do povo.

A cultura é que sustenta a sociedade na conquista de progressos, na consolidação da inteligência indispensável para tratar os anseios do povo, particularmente as prioridades de quem é mais pobre, com oferta de educação, saúde, lazer e meios para fortalecer valores indispensáveis na composição do que é a nação brasileira. Os líderes governamentais, educacionais, políticos, culturais e religiosos são desafiados a olhar o conjunto de sua realidade sociocultural e definir, com sabedoria, os investimentos prioritários, parcerias que façam aumentar os tradicionais patrimônios - culturais, religiosos e educacionais - que têm força para contribuir com as transformações capazes de dar ao país novo rumo.

As reformulações mais profundas não virão simplesmente das intenções de planos governamentais. É hora de tratar - de modo técnico, científico e educativamente - os substratos que alavancam ou esvaziam a cultura de cada região. Trata-se de, a partir da reconfiguração dos contextos locais, desencadear operação mais revolucionária no conjunto da cultura brasileira. Muitos são os itens que precisam ser elencados para análise e tratamento. Entre eles está a consciência de ‘pertença’ ao povo. Urge nesse caso, especialmente, quando uma região é enriquecida por muitos e diferentes traços culturais, a superação de um tipo de deboche - superficial e ridículo - que parece colocar de fora das próprias fronteiras o que é a riqueza do seu território.

Chama a atenção quando uma região se deixa tratar apenas como destino extrativista e desrespeita valiosos substratos da própria cultura. Uma visão distorcida, que considera importante e interessante apenas o que está e o que se edifica fora do próprio território. Isso acaba por sustentar dinâmicas que vão habituando o conjunto da população a não tratar adequadamente seu patrimônio e a não mais investir em empreendimentos com força para fazer avançar a sua história. Nesse caminho, despreza-se o potencial turístico local, desconsiderando seus valores culturais. Abre-se mão das riquezas regionais.

Líderes de diversas áreas devem investir e apoiar projetos capazes de valorizar equipamentos ambientais e culturais, legados da história e da natureza, com força de projeção internacional. Dos governantes e políticos locais, é esperado que busquem, inteligentemente, no cenário nacional, caminhos para melhorar a infraestrutura de sua região, a partir do diálogo e do respeito aos outros. Assim é possível fazer, por exemplo, da malha rodoviária de seu território um verdadeiro jardim, e não cenários de abomináveis desastres fatais. Dos educadores e produtores da cultura, são esperados mais diálogo e cooperação efetiva, para fortalecer redes educativas, mecanismos que valorizam as tradições, riqueza inigualável. Dos líderes religiosos, são demandadas mais inventividade e abnegação para preservar o patrimônio da fé. Do menos ao mais influente socialmente, pede-se o diálogo que leva à cooperação mútua, alimentada por valores já existentes nas práticas familiares e religiosas.

A ladainha do que é necessário reconfigurar no substrato cultural é grande, pode ser acrescida com novos itens por todos. Conta agora compreender a crise antropológica e reagir com ardor para aperfeiçoar recursos, dar velocidade a projetos, priorizar as necessidades dos pobres. É hora de uma revolução cultural, tratando sabiamente as incontestáveis falências para, assim, iniciar reações indispensáveis.’


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