* Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa,
OFM,
pregador
oficial da Casa Pontifícia (Vaticano),
reflete
sobre a quinta pregação da quaresma de 2014
‘Em um
esforço por colocar-nos na escola dos Padres para dar um novo impulso e
profundidade à nossa fé, não pode faltar uma reflexão sobre o modo em que eles
liam a Palavra de Deus. Será o Papa São Gregório Magno a guiar-nos à ‘inteligência espiritual’ e a um renovado
amor pelas Escrituras.
Aconteceu
no mundo moderno, em relação à Escritura, a mesma coisa que aconteceu com a
pessoa de Jesus. A busca do exclusivo sentido histórico e literal da Bíblia que
dominou nos últimos dois séculos partia dos mesmos pressupostos e levou aos
mesmos resultados da pesquisa sobre o Jesus histórico diferente do Cristo da
fé. Jesus era reduzido a um homem extraordinário, um grande reformador
religioso, mas nada mais; a Escritura era reduzida a um livro excelente, até
mesmo o mais interessante do mundo, mas um livro como os outros, que devia ser
estudado com os meios com os quais se estudam todas as grandes obras da
antiguidade. Hoje se está indo inclusive além. Um certo ateísmo militante
maximalista, anti-judaico e anti-cristão, tem a Bíblia, especialmente o Antigo
Testamento, como um livro ‘cheio de
abominações’, que deve ser retirado das mãos dos homens de hoje.
Nesse
assalto às Escrituras, a Igreja opõe a sua doutrina e a sua experiência. Na Dei
Verbum, o Vaticano II reafirmou a perene validade das Escrituras, como palavra
de Deus à humanidade; a liturgia da Igreja a coloca em um lugar de honra em
cada celebração sua; tantos estudiosos, na crítica mais atual, unem também a fé
mais convicta no valor transcendente da palavra inspirada. A prova talvez mais
convincente é, no entanto, a da experiência. O argumento que, como vimos, levou
à afirmação da divindade de Cristo em Nicéia, em 325 e pelo Espírito Santo em
Constantinopla no ano 381, se aplica plenamente também à Escritura : nela
experimentamos a presença do Espírito Santo, Cristo ainda nos fala, o seu
efeito em nós é diferente do de qualquer outra palavra; portanto não pode ser
simples palavra humana.
1. O velho se torna novo
O
propósito da nossa reflexão é ver como os Padres nos podem ajudar a reencontrar
aquela virgindade de escuta, aquele frescor e liberdade ao aproximar-se da
Bíblia que permitem experimentar a força divina que emana dela. O Padre e
Doutor da Igreja que escolhemos como guia, eu disse, é São Gregório Magno, mas
para poder compreender a sua importância neste campo temos que voltar para as
fontes do rio do qual ele próprio faz parte e traçar, pelo menos no geral, o
seu percurso antes de chegar até ele.
Na
leitura da Bíblia, os Padres só fazem continuar na mesma linha começada por
Jesus e pelos apóstolos, e só esse dado nos deveria fazer mais cautelosos ao
julgá-los. Uma rejeição radical da exegese dos Padres significaria uma rejeição
da exegese do próprio Jesus e dos apóstolos. Jesus, aos discípulos de Emaús,
explica tudo aquilo que se referia a ele nas Escrituras; afirma que as
Escrituras falam dele, que Abraão viu o seu dia; muitos gestos e palavras de
Jesus se dão ‘para que sejam cumpridas as
Escrituras’; os primeiros dois apóstolos dizem dele : ‘Achamos aquele de quem Moisés e os profetas escreveram’ (Jo 1 ,
45).
Mas
todos estes eram resultados parciais. Ainda não aconteceu o transfert total.
Isso se realiza na cruz e está contido na palavra de Jesus moribundo : ‘Tudo está consumado’. Também no Antigo
Testamento, houve novidades, retomadas, transposições; por exemplo, o retorno
da Babilônia era visto como uma renovação do milagre do Êxodo. Eram saltos
quantitativos. Agora acontece um salto qualitativo, uma mudança de sinal :
personagens, eventos, instituições, leis, templo, sacrifícios, sacerdócio, tudo
de repente aparece em uma outra luz. Como quando em uma sala iluminada pela luz
fraca de uma vela, se acende de repente uma forte luz de néon. Cristo que é ‘luz do mundo’ é também luz das
Escrituras. Quando se lê que Jesus ressuscitado ‘abre a mente dos discípulos para compreender as Escrituras’ (Lc 24,
45), refere-se a esta nova inteligência, trabalhada pelo Espírito Santo.
O
Cordeiro quebra os selos e o livro da história sagrada pode finalmente ser
aberto e lido (cf. Ap 5). Tudo permanece, mas nada é como antes. É um instante
que unifica – e ao mesmo tempo distingue – os dois Testamentos e as duas
alianças : ‘Clara e brilhante, aqui está
a grande página que separa os dois Testamentos! Todas as portas são abertas ao
mesmo tempo, toda a oposição se dissipa, todas as contradições são resolvidas’
(1). O exemplo mais claro para
compreender o que acontece neste momento é a consagração na Missa, e, de fato,
esta só é o memorial da outra. Aparentemente nada mudou no pão e no vinho sobre
o altar, no entanto, sabemos que, após a consagração, eles já são algo
completamente diferente e nós os tratamos de maneira muito diferente de antes.
Os
apóstolos continuam esta leitura, aplicando-a à Igreja, assim como à vida de
Jesus. Tudo o que estava escrito no Êxodo era escrito para a Igreja (1 Cor 10,
11); a rocha que se seguia e tirava a sede dos judeus no deserto anunciava
Cristo e o maná, o pão descido do céu; os profetas falaram dele (1 Pd 1, 10
ss), o que se diz do Servo Sofredor de Isaías foi cumprido em Cristo, e assim
por diante.
Passando
do Novo Testamento ao tempo da Igreja, notamos dois usos diferentes dessa nova
compreensão das Escrituras : um de tipo apologético e outro de tipo teológico e
espiritual; o primeiro, usado no diálogo com os de fora, o segundo para a
edificação da comunidade. Contra os judeus e os hereges que compartilham a
Escritura compõem-se os assim chamados ‘testemunhos’,
ou seja, coleções de frases ou passagens bíblicas a serem usadas para provar a
fé em Cristo. Sobre isso se baseia, por exemplo, o Diálogo com Trifon judeu de
São Justino, e tantos outros escritos.
O uso
teológico e eclesial da leitura espiritual começa com Orígenes, tido justamente
como o fundador da exegese cristã. A riqueza e beleza das suas intuições sobre
o sentido espiritual das Escrituras e das suas aplicações práticas é
inesgotável. Elas farão escola seja no oriente que no ocidente, onde começa a
ser conhecido ao mesmo tempo que Ambrósio. Junto com a sua riqueza e
genialidade, a exegese de Orígenes introduz, porém, na tradição exegética da
Igreja também um elemento negativo devido ao seu entusiasmo pelo espiritualismo
de caráter platônico. Tomemos a sua seguinte afirmação de método :
‘Não se deve acreditar que os fatos
históricos sejam figuras de outros fatos históricos e as coisas corpóreas de
outras coisas corpóreas, mas, pelo contrário, que as coisas corpóreas são
figuras de coisas espirituais e os fatos históricos de realidades inteligíveis (2)’.
Desta
forma, à correspondência horizontal e histórica, própria do Novo Testamento,
pela qual um personagem, um fato, ou uma palavra do Antigo Testamento é visto
como profecia e figura (typos) do que acontece em Cristo ou na Igreja, se
substitui a perspectiva vertical, platônica, pela qual um fato histórico e
visível, seja do Antigo como do Novo Testamento, se torna símbolo de uma ideia
universal e eterna. A relação entre profecia e realização tende a se
transformar na relação entre a história e o espírito (3).
2. As Escrituras, pedras quadrangulares
Por
meio de Ambrósio e outros que traduziram as suas obras para o latim, o método e
os conteúdos de Orígenes, entram plenamente nas veias da cristandade latina e
continuarão a fluir por toda a idade média. Qual foi, então, na explicação da
Escritura, a contribuição dos latinos? Podemos resumir a resposta em uma só
palavra que é a que melhor expressa o seu gênio próprio : organização!
Àquele
de Orígenes se acrescenta, é verdade, a contribuição não menos criativa e audaz
de um outro gênio, aquela de Agostinho que enriquecerá de intuições e
aplicações novas e ousadas a leitura da Bíblia. Mas não é nesta linha que se
coloca a contribuição mais significativa dos Padres latinos, ou seja, na
descoberta de significados novos e escondidos na Palavra de Deus, mas na
sistematização do imenso material exegético que tinha se acumulado na Igreja,
no traçar uma espécie de mapa para orientar-se na sua utilização.
Esse
esforço organizativo – começado com Agostinho – foi levado à sua forma
definitiva por Gregório Magno e consiste na doutrina do quádruplo sentido da
Escritura. Neste campo, ele é considerado ‘um
dos principais iniciadores e um dos maiores patronos da doutrina medieval dos
quatro sentidos’, a ponto de se poder falar da Idade Média como da ‘época gregoriana (4)’.
A
doutrina dos quatro sentidos da Escritura é uma grade, uma forma de organizar
as explicações de um texto bíblico ou de uma realidade da história da salvação,
distinguindo nelas quatro campos ou níveis diferentes de aplicação : 1. O nível
literal e histórico; 2. O nível alegórico (hoje prefere-se chamar tipológico)
relacionado à fé em Cristo; 3. O nível moral, ou seja, em relação ao atuar do
cristão; 4. O nível escatológico, que se refere ao cumprimento final no céu.
Gregório escreve :
‘As palavras da Sagrada Escritura são pedras
quadrangulares (...). Em todo acontecimento do passado que narram (sentido
literal), em cada coisa futura que anunciam (sentido anagógico), em cada dever
moral que pregam (sentido moral), em cada realidade espiritual que proclamam (sentido
alegórico ou cristológico), de cada lado se mantém de pé e são irrepreensíveis
(5)’.
Na
Idade Média foi composto um famoso dístico que resumiu esta doutrina : Littera
gesta docet / Moralis, quid agas; quo tendas anagogia. ‘A letra te ensina o que aconteceu; o que se deve acreditar a alegoria.
/ A moral, o que fazer; onde tender, a anagogia’. A aplicação talvez mais
clara deste esquema se tem com relação à Páscoa. De acordo com a letra ou a
história, a Páscoa é o rito que os judeus cumpriram no Egito; de acordo com a
alegoria, referindo-se à fé, ela indica a imolação de Cristo verdadeiro
cordeiro pascal; de acordo com a moral, indica a transição dos vícios para a
virtude, do pecado à santidade; de acordo com a anagogia ou a escatologia,
indica a transição das coisas terrenas às coisas celestiais, ou também a Páscoa
eterna que se celebrará no céu.
Não se
trata de um esquema rígido e mecânico, mas flexível e passível de infinitas
variações, começando com a ordem em que são listados os vários sentidos. Eis um
texto de Gregório no qual se vê a liberdade com que ele mesmo usa o esquema do
quádruplo sentido e como sabe, com ele, tirar várias harmonias da Escritura.
Comentando a imagem de Ezequiel 2, 10, sobre o rolo ‘escrito dentro e fora’ (‘intus
et foris’, de acordo com a Vulgata) diz :
‘O rolo da Palavra de Deus está escrito
dentro, por meio da alegoria; fora, por meio da história. Dentro por meio da
inteligência espiritual; fora por meio do simples sentido literal, adequado aos
espíritos ainda fracos. Dentro porque promete os bens invisíveis; fora, porque
estabelece a ordem das coisas visíveis com a retidão dos seus preceitos. Dentro,
porque dá a segurança dos bens celestiais; fora, porque ensina como usar os
bens terrenos, ou como escapar das suas atrações (6)’.
3. Por que ainda precisamos dos Padres para ler a Bíblia
O que
podemos tirar deste modo assim tão livre e corajoso de colocar-se diante da
Palavra de Deus? Mesmo um admirador da exegese patrística e medieval como o
padre de Lubac admite que não podemos nem retornar a ele, nem imitá-lo
mecanicamente no nosso tempo (7). Seria
uma operação artificial, fadada ao fracasso porque não temos os pressupostos
dos quais eles partiram, o universo espiritual no qual eles se moviam.
Gregório
Magno e os Padres no geral estavam certos sobre o ponto fundamental que é ler as Escrituras em referência a Cristo e
à Igreja. Antes deles já o faziam, o vimos, Jesus e os apóstolos. A parte já
superada das suas exegeses está no ter acreditado que podiam aplicar este
critério a cada palavra particular da Bíblia, de modo muitas vezes imaginativo,
levando ao simbolismo (por exemplo, aquele dos números) a excessos que hoje nos
fazem rir às vezes.
Podemos
ter certeza, observa de Lubac, que, se estivessem vivos hoje, eles seriam os
mais entusiastas na utilização dos recursos críticos colocados à disposição
pelo progresso dos estudos. Orígenes realizou um trabalho hercúleo no seu tempo
deste ponto de vista, obtendo e comparando um com o outro e com o texto
hebraico as várias traduções gregas existentes da Bíblia (a Exapla) e Agostinho
não hesitava em corrigir algumas de suas explicações à luz da nova versão da Bíblia
que Jerônimo estava fazendo (8).
O que
então permanece válido da herança dos Padres neste campo? Talvez aqui, mais do
que em qualquer outro lugar, eles têm uma palavra decisiva a dizer para a
Igreja de hoje que temos de tentar descobrir. O que caracteriza a leitura da
Bíblia dos Padres, além das suas elaboradas alegorias e ousadas aplicações,
além da mesma doutrina dos quatro sentidos da Escritura? De cima para baixo e
cada ponto seu é uma leitura de fé : partia da fé e levava à fé. Todas as suas
distinções entre leitura histórica, alegórica, moral e escatológica se resumem
hoje a uma só distinção : aquela entre uma leitura de fé da Escritura e uma
leitura privada de fé, ou ao menos privada de uma certa qualidade de fé.
Vamos
deixar de lado os estudiosos da Bíblia não crentes que lembrei no início, para
os quais ela é só um livro interessante, mas só humano. A diferença que eu
gostaria de evidenciar é mais sutil e passa entre os mesmos crentes. É a
distinção entre uma leitura pessoal e uma leitura impessoal da palavra de Deus.
E tento explicar o que entendo. Os Padres se aproximavam da palavra de Deus com
uma pergunta constante : o que ela diz, agora e aqui, à Igreja e a mim
pessoalmente? Estavam convencidos de que ela sempre traz novas luzes e novos
compromissos.
‘Toda a Escritura, está escrito, é inspirada
por Deus’ (2 Tm 3, 16). A expressão que se traduz como ‘inspirado por Deus’, ou ‘divinamente inspirada’, na língua
original, é uma palavra única, theopneustos, que contém os dois vocábulos de
Deus (Theos) e de Espírito (Pneuma). Tais palavras tem dois significados
fundamentais. O significado mais conhecido é aquele passivo, revelado em todas
as traduções modernas : a Escritura é ‘inspirada
por Deus’. Um outro passo do Novo Testamento explica assim este significado
: ‘Movidos pelo Espírito Santo falam
aqueles homens (os profetas) de parte de Deus’ (2 Pd 1, 21). É, em
definitiva, a doutrina clássica da inspiração divina da Escritura, aquela que
proclamamos como artigo de fé no Credo, quando dizemos que o Espírito Santo é
aquele ‘que falou pelos profetas’.
Da
inspiração bíblica se ilumina, normalmente, quase apenas um efeito : a
infalibilidade bíblica, ou seja, o fato de que a Bíblia não contém nenhum erro
(se entendemos ‘erro’, corretamente,
como ausência de uma verdade possível humanamente, em um determinado contexto
cultural e, portanto, exigível pelo escritor). Mas a inspiração bíblica
fundamenta muito mais do que a simples infalibilidade da Palavra de Deus (que é
uma coisa negativa); fundamenta, positivamente, a sua inexauribilidade, a sua
força e vitalidade divina. A Escritura, dizia Santo Ambrósio, é theopneustos
não só porque é ‘inspirada por Deus’,
mas também porque é ‘inspirante Deus’,
porque inspira a Deus (9)! Agora
inspira a Deus!
‘Com o que podemos comparar as palavras da
Sagrada Escritura - escreve São Gregório – se não com uma pederneira, na qual
se esconde o fogo? Ela é fria quando se segura com a mão, mas atingida pelo
ferro, solta faíscas e gera fogo (10)’.
A
Escritura não contêm só o pensamento de Deus fixado uma vez por todas; contém
também o coração de Deus e a sua vontade viva que lhe indica o que quer de você
em um certo momento, e talvez só de você. A constituição conciliar Dei Verbum
recolhe também esta linha da tradição quando diz que ‘as sagradas Escrituras inspiradas por Deus (inspiração passiva!) e
redigidas uma vez por todas, comunicam imutavelmente a palavra do mesmo Deus e
fazem ressoar nas palavras dos profetas e dos Apóstolos a voz do Espírito Santo
(inspiração ativa!) (11)’.
Portanto, não se trata só de ler a palavra de Deus, mas também de fazer-se ler
por esta; não somente de perscrutar as Escrituras, mas de deixar-se perscrutar
pelas Escrituras. Trata-se de não aproximar-se dela como os bombeiros entravam
uma vez entre as chamas, ou seja, com ternos de amianto que os faziam passar
incólumes entre o fogo.
Retomando
a imagem de São Tiago, muitos Padres, entre os quais o nosso Gregório Magno,
comparavam a Escritura a um espelho (12).
O que dizer de alguém que passasse todo o tempo examinando a forma e o material
de que é feito o espelho, a época em que remonta e tantos outros detalhes, mas
não se olhasse nunca no espelho? Assim faria aquele que passasse o tempo
resolvendo todos os problemas críticos que a Escritura coloca, as fontes, os
gêneros literários etc, mas não se olhasse nunca no espelho, ou melhor, nunca
permite que o espelho o olhe e o perscrute a fundo, até o ponto onde se dividem
as juntas das medulas. A coisa mais importante, sobre a Escritura, não é resolver
os seus pontos obscuros, mas colocar em prática os claros! Ela, diz ainda o
nosso Gregório, ‘se compreende fazendo-a
(13)’.
Uma
forte fé na palavra de Deus não é apenas essencial para a vida espiritual do
cristão, mas também para todas as formas de evangelização. Há duas maneiras de
preparar um sermão ou qualquer proclamação da fé, oral ou escrita. Eu posso,
antes de sentar-me à mesa e escolher eu mesmo a palavra a ser anunciada e o
tema a ser desenvolvido, baseando-me nos meus próprios conhecimentos, nas
minhas preferencias, etc., e depois, uma vez preparado o discurso, colocar-me
de joelhos para pedir apressadamente a Deus que abençoe o que escrevi e dê
eficácia às minhas palavras. É já uma coisa boa, mas não é o caminho profético.
Devemos seguir a ordem inversa : primeiro de joelhos, depois à mesa.
Temos
que começar da certeza da fé que, em todas as circunstâncias, o Senhor
Ressuscitado tem no coração uma palavra sua que deseja fazer chegar ao seu
povo. E ele não a deixa de revelar ao seu ministro, se humildemente e com
insistência ele a pede. No começo se trata de um movimento quase imperceptível
do coração : uma pequena luz que se acende na mente, uma palavra da Bíblia que
começa a atrair a atenção e que ilumina uma situação. Verdadeiramente, ‘a menor de todas as sementes’, mas
depois você percebe que dentro estava tudo; havia um trovão capaz de derrubar
os cedros do Líbano. Depois você se coloca à mesa, abre os seus livros,
consulta as suas anotações, consulta os Padres da Igreja, os mestres, os poetas...
Mas já é outra coisa. Não é mais a Palavra de Deus à serviço da sua cultura,
mas a sua cultura à serviço da Palavra de Deus.
Orígenes
descreve bem o processo que leva a esta descoberta. Antes de encontrar na
Escritura o alimento – dizia – era preciso suportar uma certa ‘pobreza’ dos sentidos; a alma é cercada
pela escuridão em todos os lados, só se encontra em ruas sem saída. Até que, de
repente, depois de trabalhosa pesquisa e oração, eis que ressoa a voz do Verbo
e imediatamente algo se ilumina; aquele que ela procurava lhe vai ao encontro ‘pulando sobre as montanhas e saltando pelas
colinas’ (cf. Ct 2 , 8), ou seja, abrindo-lhe a mente para receber uma
palavra sua forte e luminosa (14). Grande é a alegria que acompanha este
momento. Ela fazia dizer a Jeremias : ‘Quando
as tuas palavras vieram a mim, as devorei com avidez; a tua palavra foi a
alegria e o gozo do meu coração’ (Jer 15, 16).
Normalmente,
a resposta de Deus vem na forma de uma palavra da Escritura que, no entanto,
naquele momento revela a sua importância extraordinária para a situação e para
o problema a ser tratado, como se tivesse sido escrita especificamente para
ele. Ao fazer isso, ele fala, de fato, ‘como
com palavras de Deus’ (cf. 1 Pd 4, 11). Este método vale sempre : para os
grandes documentos, como para a lição que o mestre deu aos seus noviços, para a
douta conferência como para a humilde homilia dominical.
Todos
nós tivemos a experiência do que pode fazer uma única palavra de Deus
profundamente acreditada e vivida primeiramente por aquele que a pronuncia e às
vezes até mesmo sem o seu conhecimento; muitas vezes deve-se constatar que,
entre tantas outras palavras, aquela foi a que tocou o coração e levou mais de
um ouvinte ao confessionário. A experiência humana, as imagens, as histórias
vividas, nada de tudo isso está excluído da pregação evangélica, mas deve ser
submetida à palavra de Deus que deve estar por acima de tudo. Foi o que nos
recordou o Santo Padre nas páginas dedicadas à homilia da ‘Evangelii gaudium’ e é quase presunçoso de minha parte pensar que
eu poderia acrescentar algo.
Gostaria
de terminar esta meditação com um pensamento de gratidão para com os irmãos
judeus, até mesmo como uma felicitação pela próxima visita do Santo Padre a
Israel. Se nos divide deles a interpretação que lhe damos, nos une o comum amor
pelas Escrituras. No museu de Tel Aviv tem uma pintura de Reuben Rubin onde se
veem dois rabinos que apertam, um no peito e outro na bochecha, os rolos da
palavra de Deus, e os beijam como se beija a própria esposa. Com os irmãos
hebreus é possível algo de análogo àquilo que é o ecumenismo espiritual entre
cristãos, ou seja, um colocar juntos, em um clima de diálogo e de estima
recíproca, aquilo que nos une, sem ignorar ou esconder o que nos separa. Não
podemos nos esquecer que recebemos deles as duas coisas mais preciosas que
temos na vida : Jesus e as Escrituras.
Também
neste ano, a Páscoa hebraica cai na mesma semana que a cristã. Desejamos a nós
mesmos e a eles, Feliz Páscoa, Santo e Feliz Pesach.’
Fonte :
*Artigo na íntegra
http://www.zenit.org/pt/articles/texto-completo-da-quinta-pregacao-da-quaresma-do-pe-raniero-cantalamessa-ofmcap
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(1) Paul Claudel, L’épée
et le miroir : Les sept douleurs de la Sainte Vierge , Paris :
Gallimard, 1939), 74-75.
(2) Orígenes, Comentário
a João, 10, 110 (GCS, Origenes vol. 4, p. 189)
(3) Cf. H. de Lubac, Histoire
et Esprit. L’intelligence de l’Ecriture d’après Origène, Aubier, Paris
1950.
(4) H. de Lubac, Exegèse
Mèdiévale. Les quatre sens de l’Ecriture, Aubier, Paris 1959, vol. I,1, p.
189 ; vol. I,2, p. 537).
(5) Gregorio Magno,
Homilias sobre Ezequiel, II, IX, 8.
(6) Gregorio Magno,Homilias
sobre Ez. I, IX, 30.
(7) H. de Lubac, História
e Espírito, cit. , pp. 629 ss.
(8) O faz por exemplo a
propósito do significado da palavra ‘páscoa’, em Enarrationes in
Psalmos 120,6 (CC 40, p. 1791).
(9) Ambrosio, De
Spiritu Sancto, III, 112.
(10) Gregorio Magno, Homilias
sobre Ezequiel, II,10,1.
(11) Dei Verbum, n.
21.
(12) Gregorio Magno, Moralia,
I, 2, 1 (PL 75, 553D).
(13) Ib. I, 10,31.
(14) Cf Origene, In
Mt Ser., 38 (GCS, 1933, p. 7); In Cant.,3 (GCS, 1925, p. 202).
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