* Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa,
OFM,
pregador
oficial da Casa Pontifícia (Vaticano),
reflete
sobre a quarta pregação da quaresma de 2014
‘1. Oriente e ocidente unânimes sobre Cristo
Existem
vários caminhos, ou métodos, para aproximar-se à pessoa de Jesus. Pode-se, por
exemplo, partir diretamente da Bíblia e, também neste caso, é possível seguir
várias vias : a via tipológica, seguida na mais antiga catequese da Igreja, que
explica Jesus à luz das profecias e das figuras do Antigo Testamento; a via
histórica, que reconstrói o desenvolvimento da fé em Cristo a partir das várias
tradições, autores e títulos cristológicos, ou dos diversos ambientes culturais
do Novo Testamento. Pode-se, pelo contrário, partir das perguntas e dos
problemas do homem de hoje, ou até mesmo da própria experiência de Cristo, e,
de tudo isso, chegar à Bíblia. Todos esses são caminhos amplamente explorados.
A
Tradição da Igreja elaborou, bem rápido, uma via de acesso ao mistério de
Cristo, um modo seu de recolher e organizar os dados bíblicos relativos a ele,
e esta via se chama o dogma cristológico, a via dogmática. Por dogma
cristológico compreendo as verdades fundamentais sobre Cristo, definidos nos
primeiros concílios ecumênicos, especialmente o de Calcedônia, que, em
substância, se resumem nesses três pilares : Jesus Cristo é verdadeiro homem, é
verdadeiro Deus, é uma só pessoa.
São
Leão Magno é o Padre que eu escolhi para introduzir-nos nas profundidades deste
mistério. Por um motivo bem específico. Na teologia latina estava pronta por
dois séculos e meio a fórmula da fé em Cristo que se tornara o dogma de
Calcedônia. Tertuliano tinha escrito : ‘Vemos
duas naturezas, não confusas, mas unidas em uma pessoa, Jesus Cristo, Deus e
homem (1)’. Depois de muita
pesquisa, os autores gregos chegam, por conta própria, a uma formulação
idêntica em substância; mas não porque eles tenham se atrasado ou perdido
tempo, e sim porque só agora era possível dar àquela fórmula o seu verdadeiro
significado, tendo eles evidenciado, enquanto isso, todas as implicações e
resolvido as dificuldades.
O Papa
São Leão Magno é aquele que gerenciou o momento em que as duas correntes do rio
– aquela latina e aquela grega – se uniram e com a sua autoridade de bispo de
Roma favoreceu o acolhimento universal. Ele não se contenta em simplesmente
transmitir a fórmula herdada por Tertuliano e retomada por Agostinho, mas a
adapta aos problemas que apareceram nesse ínterim, entre o concílio de Éfeso do
431 e aquele de Calcedônia do 451. Eis, em grandes linhas, o seu pensamento
cristológico, como foi exposto no famoso Tomus ad Flavianum (2).
Primeiro
ponto : a pessoa do Deus-homem é idêntica à do Verbo eterno : ‘Aquele que se fez homem, sob a forma de
servo, é o mesmo que na forma de Deus criou o homem’. Segundo ponto : a
natureza divina e a humana coexistem nesta única pessoa que é Cristo, sem
mistura ou confusão, mas cada uma mantendo suas propriedades naturais (salva proprietate utriusque naturae).
Ele começa a ser o que não era, sem cessar de ser o que era (3). A obra da redenção exigia que ‘o único e mesmo mediador entre Deus e os
homens, o homem Jesus Cristo, tivesse que ser capaz de morrer em relação à
natureza humana e não morrer com respeito à natureza divina’. Terceiro
ponto : A unidade da pessoa justifica o uso da comunicação dos idiomas, pela
qual podemos afirmar que o Filho de Deus foi crucificado e enterrado, e também
que o Filho do homem veio do céu.
Foi
uma tentativa, em grande parte bem sucedida, de finalmente encontrar um acordo
entre as duas grandes ‘escolas’ de
teologia grega, a de Alexandria e a de Antioquia, evitando os respectivos erros
que eram o monofisismo e o nestorianismo. Os antioquenos tinham o
reconhecimento, para eles vitais, das duas naturezas de Cristo, e portanto, da
plena humanidade de Cristo; os alexandrinos, apesar de algumas reservas e resistências,
podiam encontrar na formulação de Leão o reconhecimento da identidade da pessoa
do Verbo encarnado e aquela do Verbo eterno, que estava nos seus corações por
acima de tudo.
Basta
recordar o cerne da definição de Calcedônia para dar-se conta do quanto esteja
presente nela o pensamento do Papa Leão :
‘Ensinamos por unanimidade que deve-se
reconhecer o único e mesmo Filho Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na
divindade e sempre o mesmo perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro
homem (...), gerado antes dos séculos pelo Pai segundo a divindade e nos
últimos tempos, por nós homens e para a nossa salvação, gerado por Maria Virgem
segundo a humanidade; subsistente nas duas naturezas de modo inconfuso,
imutável, indivisível, inseparável, não sendo de forma alguma suprimida a
diferença das naturezas por causa da união, pelo contrário, permanecendo
preservada a propriedade tanto de uma quanto da outra natureza, elas combinam
para formar uma só pessoa e hipóstase (4)’.
Poderia
parecer uma fórmula tecnicamente perfeita, mas árida e abstrata, porém, nela se
baseia toda a doutrina cristã da salvação. Só se Cristo é homem como nós, o que
ele faz, nos representa e nos pertence, e somente se ele também é Deus, aquilo
que faz tem um valor infinito e universal, a tal ponto que, como se canta no
Adoro te devote, ‘uma única gota de
sangue derramado salva o mundo todo do pecado’ (‘Cuius una stilla salvum facere totum mundum qui ab omni scelere’)
Sobre
este ponto, oriente e ocidente, são unânimes. Esta era a situação da humanidade
antes de Cristo, escrevem, com poucas diferenças entre eles, santo Anselmo
entre os latinos e o Cabasilas entre os ortodoxos. De um lado estava o homem
que tinha contraído a dívida pecando e que tinha que lutar contra satanás para livrar-se,
mas não podia fazê-lo, sendo a dívida infinita e sendo ele escravo daquele que
deveria ter vencido; por outro lado está Deus que podia expiar o pecado e
vencer o demônio, mas não deveria fazê-lo, não sendo ele o devedor. Era preciso
que se encontrassem unidos na mesma pessoa aquele que devia lutar e aquele que
podia vencer, e é aquilo que aconteceu com Jesus, ‘verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma pessoa (5)’.
2. Jesus da história e o Cristo do dogma novamente unidos
Estas
tranquilas certezas sobre Cristo, nos últimos dois séculos, foram atingidas por
um ciclone crítico que tendia a tirar-lhes toda a consistência e a
qualificá-las como puras invenções dos teólogos. A partir de Strauss, tornou-se
uma espécie de grito de guerra entre os estudiosos do Novo Testamento :
libertar a figura de Cristo dos grilhões do dogma, para reencontrar o Jesus
histórico, o único real. ‘A ilusão de que
Jesus possa ter sido homem no sentido pleno e que como única pessoa seja
superior à toda a humanidade é a cadeia que ainda fecha a porta da teologia
cristã ao mar aberto da ciência racional (6)’. E eis a conclusão à qual o estudioso chega : ‘A ideia do Cristo do dogma por um lado e o
Jesus de Nazaré da história por outro estão separados para sempre’.
Declara-se
sem hesitação o pressuposto racionalista desta tese. O Cristo do dogma não
satisfaz as exigências da ciência racional. O ataque continuou, com soluções
alternativas, quase até os nossos dias. Tornou-se ele mesmo, a seu modo, um
dogma : para conhecer o verdadeiro Jesus da história é preciso prescindir da fé
nele posterior à Páscoa. Neste clima proliferaram reconstruções fantasiosas da
figura de Jesus a benefício do espetáculo, algumas com pretensões de
historicidade, mas que na verdade se baseavam em hipóteses de hipóteses, todas
respondendo a gostos ou reivindicações do momento.
Mas
agora, eu acho, chegamos ao fim da parábola. É hora de tomar nota da mudança
que aconteceu neste setor, a fim de sair de uma certa atitude defensiva e de
vergonha que tem caracterizado os estudiosos crentes nos últimos anos, e ainda
mais para fazer chegar uma mensagem a todos aqueles que nestes anos divulgaram
profusamente imagens de Jesus ditadas por aquele anti-dogma. E a mensagem é que
não é possível mais escrever na boa-fé ‘Investigações
sobre Jesus’ que fingem ser ‘históricas’,
mas prescindem, ou melhor, excluem desde o início, a fé nele.
Quem
personaliza de modo mais claro a mudança em ato é um dos maiores estudiosos
vivos do NT, o inglês James D.G. Dunn. Ele resumiu em um pequeno livro,
intitulado ‘Mudar perspectivas sobre
Jesus’, os resultados da sua monumental pesquisa sobre as origens do
cristianismo (7). O autor pôs a
descoberto as raízes dos dois pressupostos em que se baseiam a contraposição
entre Jesus histórico e o Cristo da fé : primeiro, que para conhecer o Jesus da
história é necessário prescindir da fé pós-pascal; segundo, que para conhecer o
que realmente disse e fez o Jesus histórico, é preciso libertar a tradição das
camadas e das adições posteriores e voltar para a camada original, ou à
primeira ‘redação’, de uma
determinada perícope evangélica.
Contra
o primeiro pressuposto, Dunn demonstra que a fé começou antes da Páscoa; se
alguns o seguiram e se tornaram seus discípulos é porque tinham acreditado
nele. Trata-se de uma fé ainda imperfeita, mas de fé. Nesta fé, o evento pascal
marcará certamente um salto de qualidade, mas saltos de qualidade, embora menos
importantes, já tinham acontecido antes da Páscoa, em momentos particulares,
como a transfiguração, certos milagres sensacionais, o diálogo de Cesaréia de
Filipe. A Páscoa não é um início absoluto.
Contra
o outro assunto, Dunn demonstra como, embora admitindo que as tradições
evangélicas circularam por um certo tempo de forma oral, os estudiosos
aplicavam sempre a tal tradição o modelo literário, como se faz hoje quando se
quer voltar, de edição em edição, ao texto original de uma obra. Se levarmos em
conta as leis que regularizam - até no presente, em certas culturas -, a
transmissão oral das tradições de uma comunidade, veremos que não há
necessidade de enxugar um dito evangélico, em busca de um hipotético núcleo
originário, uma operação que abriu as portas a todo tipo de manipulação dos
textos evangélicos, acabando por repetir aquilo que acontece quando se descasca
uma cebola em busca do seu núcleo sólido que não existe. Algumas destas
conclusões são aquelas que os estudiosos católicos desde sempre sustentaram (8), mas Dunn tem o mérito de tê-las
defendido com argumentos dificilmente refutáveis a partir da mesma pesquisa
histórico-crítica e com as suas próprias armas.
O
rabino americano J. Neusner, com o qual Bento XVI estabelece um diálogo em seu
primeiro livro sobre Jesus de Nazaré, dá por suposto este resultado. Partindo
de um ponto de vista autônomo e por assim dizer neutro, ele faz notar como é vã
a tentativa de separar o Jesus histórico do Cristo da fé pós-pascal. O Jesus
histórico, o dos Evangelhos, por exemplo do discurso da montanha, é já um Jesus
que exige a fé na sua pessoa como alguém que pode corrigir Moisés, que é senhor
do sábado, pelo qual também pode-se fazer uma exceção ao quarto mandamento; em
suma como alguém que se coloca em pé de igualdade com Deus. É próprio por isso,
diz o rabino, que embora fascinado pela figura de Jesus, ele não poderá mais ser
um dos seus discípulos.
O
estudo sobre o NT termina aqui; chega a provar a continuidade entre o Jesus da
história e o Cristo do querigma, não vai mais longe. Resta provar a
continuidade entre o Cristo do querigma e o do dogma da Igreja. A fórmula de
Leão Magno e de Calcedônia marca um desenvolvimento coerente da fé do Novo
Testamento, ou representa, pelo contrário, uma ruptura com relação a ela? Este
foi o meu principal interesse nos anos em que eu me ocupava de História das
origens do cristianismo e a conclusão a que cheguei não difere daquela do
Cardeal Newman, em seu famoso ensaio ‘Sobre
o desenvolvimento da doutrina cristã (9)’.
Houve certamente a mudança de uma cristologia funcional (o que Cristo ‘faz’) a uma cristologia ontológica (o
que Cristo ‘é’), mas não se trata de
uma ruptura porque o mesmo processo se dá já no interior do querigma, por
exemplo, na passagem da cristologia de Paulo àquela de João, e em Paulo mesmo,
na passagem das suas primeiras cartas àquelas da prisão, Filipenses e
Colossenses.
3. Além da fórmula
Desta
vez o próprio argumento exigia fixar-se um pouco mais na parte doutrinal do
tema. A pessoa de Cristo é o fundamento de todo o cristianismo. ‘Se a trombeta emite um som incerto, quem se
preparará para a batalha?’, dizia São Paulo (1 Cor 14, 8) : se não tem ideia
clara sobre quem é Jesus Cristo, que força terá a nossa evangelização? Nos
resta, no entanto, fazer agora uma aplicação prática para a vida pessoal e a fé
atual da Igreja, que é o objetivo constante da nossa revisão dos Padres.
Quatro
séculos e meio de formidável trabalho teológico deram à Igreja a fórmula : ‘Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro
homem; Jesus Cristo é uma só pessoa’. Mais sinteticamente ainda : ele é ‘uma pessoa em duas naturezas’. A esta
fórmula se aplica perfeitamente o dito de Kiekegaard : ‘A terminologia
dogmática da Igreja primitiva é como um castelo encantado, onde descansam em um
sono profundo os mais graciosos príncipes e princesas. Basta somente
acordá-los, para que se coloquem de pé em toda a sua glória (10)’. A nossa tarefa é, portanto, a de
despertar e de dar sempre nova vida aos dogmas.
A
investigação sobre os Evangelhos – mesmo aquela que lembramos agora de Dunn –
nos mostra que a história não nos pode levar ao ‘Jesus em si’, ao Cristo como é na realidade. O que alcançamos nos
evangelhos é sempre, em todas as fases, um Jesus ‘lembrado’, mediado pela memória que dele conservaram os discípulos,
embora se uma memória crente. É como a ressurreição. ‘Alguns dos nossos - dizem os dois discípulos de Emaús - foram ao túmulo
e encontraram as coisas tais como as mulheres haviam dito; mas não o viram’
(Lc 24, 24). A história pode constatar que as coisas, com relação a Jesus de
Nazaré, estão como disseram os discípulos nos evangelhos, mas ele não o vê.
O
mesmo acontece com o dogma. Ele pode levar-nos a um Jesus ‘definitivo’, ‘formulado’,
mas Tomás de Aquino nos ensina que ‘a fé
não termina com os enunciados (enuntiabile), mas na realidade (res)’. Entre
a fórmula de Calcedônia e o Jesus real existe a mesma diferença que há entre a
fórmula química H2O e a água que bebemos ou na qual nadamos. Ninguém pode dizer
que a fórmula H2O é inútil ou que não descreve perfeitamente a realidade;
somente não é a realidade! Quem nos poderá levar ao Jesus ‘real’ que está além da história e por trás da definição?
E eis
que nos deparamos com a grande notícia reconfortante. Existe a possibilidade de
um conhecimento ‘imediato’ de Cristo
: é aquele que nos dá o Espírito Santo enviado por ele mesmo. Ele é a única ‘mediação não-mediata’ entre nós e Jesus,
no sentido que não age como um véu, não constitui um diafragma ou um trâmite,
sendo ele o Espírito de Jesus, o seu ‘alter
ego’, da sua mesma natureza. Santo Irineu chega a dizer que ‘o Espírito Santo é a nossa mesma comunhão
com Cristo (11)’. E nisso,
aquela do Espírito é diferente de qualquer outra mediação entre nós e o
Ressuscitado, seja eclesial que sacramental.
Mas é
a Escritura mesma que nos fala deste papel do Espírito Santo com o propósito do
conhecimento do verdadeiro Jesus. A vinda do Espírito Santo em Pentecostes se
traduz em uma repentina iluminação de todo o trabalho e a pessoa de Cristo.
Pedro conclui o seu discurso com aquela espécie de definição ‘urbi et orbi’ do senhorio de Cristo : ‘Saiba, portanto, com certeza toda a casa de
Israel que Deus constituiu Senhor e Cristo aquele Jesus que vós crucificastes’
(At 2, 36).
São
Paulo afirma que Jesus Cristo é revelado ‘Filho
de Deus com poder pelo Espírito de santidade’ (Rm 1, 4), isto é, por obra
do Espírito Santo. Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não ser por uma
iluminação interior do Espírito Santo (cf. 1 Cor 12, 3). O Apóstolo atribui ao
Espírito Santo ‘a compreensão do mistério
de Cristo’, que foi dada a ele, como a todos os santos apóstolos e profetas
(cf. Ef 3, 4-5). Só se forem ‘fortalecidos
pelo Espírito’, - continua o Apóstolo – os crentes poderão ‘compreender a largura e o comprimento, a
altura e a profundidade e conhecer o amor de Cristo que excede todo
conhecimento’ (Ef 3, 16-19).
No
Evangelho de João, o próprio Jesus anuncia esta obra do Paráclito com relação a
ele. Ele tomará do que é seu e o anunciará aos discípulos; recordar-lhes-á tudo
o que ele disse; os conduzirá à toda verdade sobre a sua relação com o Pai;
lhes dará testemunho. Exatamente isso será, de agora em diante, o critério para
reconhecer se se trata do verdadeiro Espírito de Deus e não de um outro
espírito : se leva a reconhecer Jesus vindo na carne (cf. 1 Jo 4, 2-3).
4. Jesus de Nazaré, uma ‘pessoa’
Com a
ajuda do Espírito Santo, façamos então uma pequena tentativa de ‘acordar’ o dogma. Do triângulo dogmático
de Leão Magno e de Calcedônia – ‘verdadeiro
Deus’, ‘verdadeiro homem’, ‘uma pessoa’ – nos limitamos a tomar em
consideração somente o último elemento : Cristo ‘uma pessoa’. As definições dogmáticas são ‘estruturas abertas’,
capazes de acomodar novos significados, o que é possível graças ao progresso do
pensamento humano. Na sua etapa mais antiga, pessoa (do latim personare,
ressoar) indicava a máscara que o ator precisava para fazer ressoar a sua voz
no teatro; disso passou a indicar rosto, portanto, indivíduo, até chegar ao seu
significado mais elevado de ‘ser
individual de natureza racional’ (Boécio).
No uso
moderno, o conceito se enriqueceu de um significado mais subjetivo e
relacional, favorecido sem dúvida pelo uso trinitário de pessoa como ‘relação subsistente’. Indica, portanto,
o ser humano em quanto capaz de relação, de estar como um eu diante de um tu.
Nisso a fórmula latina ‘uma pessoa’
revelou-se mais fecunda do que aquela respectiva grega de ‘uma hispóstase’. Hipóstase se pode dizer de cada objeto particular
existente; pessoa, somente do ser humano e, por analogia, do ser divino. Nós
falamos hoje (e também os gregos falam) de ‘dignidade
da pessoa’, não de dignidade da hipóstase.
Aplicamos
tudo isso ao nosso relacionamento com Cristo. Dizer que Jesus é ‘uma pessoa’ significa também dizer que
ressuscitou, que vive, que está diante de mim, que posso tratar-lhe por tu como
ele me trata por tu. É necessário passar constantemente, no nosso coração e na
nossa mente, do Jesus personagem ao Jesus pessoa. A personagem é alguém de quem
se pode falar e escrever o que quiser, mas a quem e com quem, no geral, não se
pode falar. Jesus, infelizmente, para a maioria dos crentes é ainda um
personagem, alguém de quem se discute, se escreve muito, uma memória do
passado, um conjunto de doutrinas, de dogmas ou de heresias. É um ente, mais do
que um existente.
O
filósofo Sartre, em uma página famosa, descreveu a emoção metafísica que produz
a súbita descoberta da existência das coisas e pelo menos nisto podemos dar-lhe
crédito :
‘Eu estava no Jardim Público. A raiz da
castanheira entrava na terra, exatamente sob o meu banco. Eu não me lembrava
que era uma raiz. As palavras se desvaneceram e, com elas, a significação das
coisas, a maneira de empregá-las, as frágeis referências que os homens tinham
traçado na sua superfície. ( ...)E depois tive aquela iluminação. Fiquei sem
respiração. (...)geralmente a existência esconde-se. Está presente à nossa
volta; não se podem dizer duas palavras sem falar dela, e afinal não lhe
tocamos (...)E depois sucedeu aquilo : de repente, ali estava, ali estava, era
claro como a água : a existência dera-se subitamente a conhecer ( 12)’.
Para
ir além das ideias e palavras de Jesus e entrar em contato com ele, pessoa que
vive, é necessário passar por uma experiência desse tipo. Alguns exegetas
interpretam o nome divino ‘Aquele que é’,
no sentido de ‘aquele que está’, que
é presente, disponível, agora, aqui (13).
Esta definição aplica-se perfeitamente também ao Jesus ressuscitado.
É
possível ter Jesus como amigo, porque, depois de ter ressuscitado, ele está
vivo, está ao meu lado, posso tratá-lo como um ser vivo a um ser vivo, um
presente a um presente. Não com o corpo e nem sequer somente com a fantasia,
mas ‘no Espírito’ que é infinitamente
mais íntimo e real de ambos. São Paulo nos assegura que é possível fazer tudo ‘com Jesus’ : quer comamos, quer bebamos,
quer façamos qualquer outra coisa (cf. 1 Cor 10, 31; Col 3,17).
Infelizmente,
raramente pensamos em Jesus como um amigo e um confidente. No subconsciente
domina a imagem dele ressuscitado, ascendido ao céu, distante em sua
transcendência divina, que retornará um dia, no fim dos tempos. Esquecemos que
sendo, como diz o dogma, ‘verdadeiro
homem’, melhor, a mesma perfeição humana, ele possui no mais alto grau o
sentimento da amizade que é uma das qualidades mais nobres do ser humano. É
Jesus que deseja um tal relacionamento conosco. No seu discurso de despedida,
dando plena vazão a seus sentimentos , ele diz : ‘Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor
faz; mas vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer todas as coisas que ouvi
do meu Pai’ (Jo 15 ,15).
Já vi
esse tipo de relacionamento com Jesus, não tanto nos santos, onde prevalece o
relacionamento com o Mestre, com o Pastor, com o Salvador, o Esposo..., mas com
os hebreus que, de modo semelhante a Saulo, chegam hoje a aceitar o Messias. O
nome de Jesus, de repente, muda de uma obscura ameaça, ao mais doce e amado dos
nomes. Um amigo. É como se a ausência de dois mil anos de discussões sobre
Cristo jogasse a favor deles. O deles não é nunca um Jesus ‘ideológico’, mas uma pessoa de carne e
sangue. Do sangue deles! Emociona ler os testemunhos de alguns deles. Todas as
contradições se resolvem em um instante, todas as escuridões se iluminam. É
como ver a leitura espiritual do Antigo Testamento se realizar totalmente e rapidamente
sob os próprios olhos. São Paulo o compara à queda de um véu dos olhos (cf. 2
Cor 3,16).
Durante
sua vida terrena, embora amando a todos sem distinção, somente com alguns – com
Lázaro e as irmãs e mais ainda com João, o ‘discípulo
que ele amava’ – Jesus tem um relacionamento de verdadeira amizade. Agora,
porém, que ressuscitou e não está mais sujeito aos limites da carne, ele
oferece a todo homem e a toda mulher a possibilidade de tê-lo como amigo, no
sentido mais pleno da palavra. Que o Espírito Santo, o amigo do esposo, nos
ajude a aceitar com alegria e maravilha esta possibilidade que preenche a vida.’
Fonte :
*Artigo na íntegra
http
://www.zenit.org/pt/articles/texto-completo-da-quarta-pregacao-de-advento-do-pe-raniero-cantalamessa-ofmcap
------------------------
(1) Tertuliano, Adversus Praxean, 27, 11 (CC 2, p.1199)
(2) Leão Magno, Carta 28 (PL 54, 755 s.).
(3) Leão Magno, Sermo 27 (26),1 (PL 54, 749).
(4) Denzinger, Enchiridion Symbolorum, 301-302.
(5) N. Cabasilas, Vita in Cristo, I, 5 (PG 150, 313); Cf
Anselmo, Cur Deus homo?, II, 18.20; Tomas de Aquino, Summa theologiae, III, q.
46, art. 1, ad 3.
(6) D.F.
Strauss, Der Christus des Glaubens und der Jesus der Geschichte, 1865.
(7) J.D.G.
Dunn, A New Perspective on Jesus. What
the Quest for the Historical Jesus Missed, Grands Rapids, Michigan 2005 (Trad.
ital. Cambiare prospettiva
su Gesù, Paideia, Brescia 2011).
(8) Dunn considera muito o estudo do exegeta católico alemão H.
Schürmann sobre a origem pré-pascal de certos ditos de Jesus. ob.cit. p.28
(9) Cf. o meu estudo, Dal
kerygma al dogma. Studi sulla cristologia dei Padri, Vita e Pensiero, Milano
2006, pp. 11-51.
(10) S. Kierkegaard, Diario, II,A 110 (ed. a cura di C. Fabro,
Brescia 1962, nr. 196).
(11) S. Ireneo, Contra as heresias, III, 24, 1
(12) J.-P. Sartre, La Nausea, Milano 1984, p. 193 s.
(13) Cf. G. Von Rad,
Teologia dell’Antico Testamento, I, Paideia, Brescia 1972, p. 212.
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