* Artigo de Padre E. Ismael Piñón,
Missionário Comboniano
Em Israel, a terra de Jesus, há realidades que não saltam à vista, como a situação dos beduínos ou a tragédia dos imigrantes e refugiados africanos que chegam a este país depois de uma infernal odisseia no Sinai. A estas duas realidades entregam-se de corpo e alma duas missionárias combonianas : a espanhola Alicia Vacas e a eritréia Azezet Habtezghi.
‘As Missionárias Combonianas já
trabalham há muitos anos na Terra Santa. Vivem em Betânia, numa bonita casa
literalmente pegada ao muro de segurança que separa Jerusalém da zona palestina
e na qual têm um pequeno jardim-de-infância frequentado por meia centena de
crianças. Quando o Governo israelita levantou o muro, cortou-lhes praticamente
a possibilidade de estar em contacto com as pessoas. Desde então, duas delas,
as Irmãs Alicia Vacas e Azezet Habtezghi, vivem numa pequena casa arrendada do
outro lado do muro, apenas a cinquenta metros da casa de Betânia, mas à qual só
se pode chegar fazendo um desvio de 18 quilómetros. Não foi uma decisão fácil,
mas se queriam estar presentes no meio das pessoas, não lhes restava outra
alternativa.
Beduínos
Várias vezes por semana vão visitar os
acampamentos de beduínos, uma comunidade que vive completamente marginalizada e
cuja subsistência depende quase exclusivamente do que recebe das Nações Unidas.
Quando se criou o Estado de Israel, em 1948, muitos deles negaram-se a ir para
o Exército israelita para cumprir o serviço militar, o que teve como
consequência ser-lhes negado o passaporte e verem-se votados a um abandono
total por parte de Israel.
A Autoridade Nacional Palestiniana
(ANP) também não se preocupa com eles, o que faz com que seja um povo
abandonado à sua sorte. Vivem precariamente no deserto da Judeia, entre
Jerusalém e Jericó. Pelo menos, têm o estatuto de refugiados, o que os coloca sob
a protecção das Nações Unidas. Na actualidade, a ONU tem registados 24
acampamentos nestas condições, onde vivem cerca de 450 famílias no total, à
volta de quatro mil pessoas.
‘Quando
começaram os colonatos judaicos’, conta-me Alicia enquanto conduz o carro
por uma estrada empedrada a caminho do acampamento de Wadi Abi Hindi, ‘construíram-se justamente sobre as fontes de
água e criaram-se zonas de segurança ao seu redor, nas quais os beduínos não
podem entrar, pelo que já não têm acesso à água. Não têm, igualmente, a
possibilidade de apascentar, e sem esta forma de sustento animal, eles não
podem alimentar os rebanhos, ficando sem o seu principal recurso para
sobreviver. A pouca água que têm no acampamento chega-lhes através de uma
simples canalização à superfície a partir de um povoado palestino que se
encontra a 14 quilómetros.’ A dado momento do nosso trajecto, passámos
diante da lixeira de Jerusalém Este, onde o Governo israelita tinha planeado
abandoná-los. Por sorte, o plano chegou aos ouvidos das Nações Unidas e pôde
ser travado.
À medida que crescem os colonatos
judaicos, vai-se reduzindo o espaço vital dos beduínos. Vivem praticamente em
reservas ao ar livre. Ao não poder alimentar o gado, foram-no vendendo. Cada
família mantém apenas dez ou doze cabras, quando antes os seus rebanhos somavam
200 ou 300 animais. ‘Perderam a sua forma
de vida tradicional e tornaram-se dependentes das Nações Unidas, que a cada
três meses, desde há 65 anos, lhes dá uns sacos de farinha, lentilhas, umas
latas de azeite ou de açúcar’, queixa-se amargamente Alicia.
‘Por
definição, os beduínos estão todos no deserto’, comenta Alicia. ‘Não têm autorização de construção, não podem
ampliar a casa, por exemplo, quando se casa um filho. Vivem em barracas de
chapa de zinco ou de madeira. Se construírem uma barraca para os animais,
inclusive, é imediatamente demolida. Em quase todos os lugares onde trabalhamos
há ordens de demolição pendentes. Daí nasceu a ideia de construir uma escola
com rodas de carro. Não tem alicerces, nem estrutura metálica, nem cimento. Mas
até essa, antes de estar terminada, já tinha a ordem de demolição. A nós,
confiscaram até os baloiços de um centro de educação infantil.’
Prioridade para a
educação
A presença das Combonianas nesta
realidade data de 2007. Primeiro de maneira muito simples, visitando as
famílias para conhecer a sua realidade e saber quais eram as suas necessidades
mais urgentes. ‘Com outra Irmã e um
membro da ONG Rabinos pelos Direitos Humanos, comecei a ir de acampamento em
acampamento’, afirma a Irmã Alicia, que acrescenta : ‘Aí dei-me conta de que para eles a primeira prioridade era a educação.
São conscientes de que os seus filhos não vão ser beduínos, que a sua forma de
vida tradicional está a acabar e que não têm outras alternativas, e vêem na
educação a única saída. Por isso, vamos onde formos, pedem-nos sempre escolas.
Dão muitíssima importância à educação. Começámos então a colaborar com outros
organismos para a construção das escolas e a formar raparigas dos acampamentos
para que possam ser professoras.’
À parte a educação, o tema sanitário
ocupa o segundo lugar nas prioridades. Graças à ajuda de outros organismos,
conseguiram formar como agentes de saúde 18 jovens beduínas, três das quais
foram contratadas pelo Ministério da Saúde palestino e são já funcionárias
públicas.
Uma tragédia no
Sinai
Tanto a Irmã Alicia como a Irmã Azezet
colaboram também com a ONG Médicos pelos Direitos Humanos (MPDH), uma
organização internacional cuja delegação israelita se ocupa especialmente
daquelas pessoas que em Israel não têm acesso à assistência sanitária. Além de
uma clínica móvel, que se desloca todos os sábados a território palestino para
oferecer um serviço especializado, a MPDH tem uma clínica aberta em Jaffa, na
periferia de Telavive, onde atende nomeadamente as pessoas que não têm médico
seguro nem gozam de qualquer tipo de seguro de saúde; entre eles, os refugiados
e imigrantes sem papéis, a maioria dos quais são africanos.
Enquanto vamos a caminho da visita a
este centro, a Irmã Alicia dá-me pormenores de uma realidade trágica que brada
aos céus. ‘Em 2007, começaram a chegar
mais de cem sudaneses por dia, quase todos do Sul, devido à violência que se
vivia naquele então Sudão Meridional. A clínica entrou em colapso e a ONG
Médicos pelos Direitos Humanos começou a questionar-se a que se devia essa
enorme afluência de sudaneses.’
A comboniana prossegue o seu relato : ‘A nossa surpresa aconteceu sobretudo quando
vimos que vinham com feridas de bala. Logo de seguida, começaram a chegar
pacientes com sinais evidentes de tortura; chagas infectadas, golpes,
ferimentos provocados pela corrente eléctrica, queimaduras de plástico... Ao
princípio, aquilo ultrapassava-nos, porque não tínhamos nem o tempo nem a
capacidade de compreender o que se estava a passar. Os pacientes falam pouco,
estão traumatizados, não querem contar muito, não sabem a língua.’
Nesse contexto, entre 2008 e 2009,
fez-se um estudo sobre o número de mulheres que tinham chegado à clínica a
pedir para abortar, porque diziam que as tinham violado no Sinai. ‘Em pouco tempo’, prossegue a Irmã Alicia
Vacas, ‘o número tinha duplicado, e quase
todas aduziam a mesma razão : que as tinham violado no Sinai. Aquilo
cheirava-nos mal por todos os lados. Começámos a investigar e a fazer um
questionário a todos os que chegavam. O que nos acontecia do ponto de vista
médico, sucedia também a outras organizações de apoio social.’
Foi nessa época que chegou a Irmã
Azezet. Para Alicia e os demais médicos, foi como um presente de Deus, porque
ao ser eritréia e ao ter trabalhado no Sudão conhecia a língua e podia
comunicar-se sem problemas com os refugiados que chegavam. Antes de entrar no
processo médico, Azezet tinha uma entrevista com eles para tentar saber o que
se estava a passar no Sinai.
Rede de tráfico
Esta comboniana eritréia fez mais de
1800 entrevistas e o que descobriu foi aterrador : havia toda uma rede de
tráfico de seres humanos desde os seus países de origem ou desde os países
limítrofes, campos de refugiados da Etiópia, do Sudão ou Egipto até Israel,
através do Sinai. ‘Cada vez se via com
maior clareza como funciona a coisa’, explica-me a Irmã Alicia. ‘Nos seus próprios países ou nos campos de
refugiados, alguém se aproxima deles e oferece-se para os passar para Israel
por um preço entre os 2000 e os 2500 dólares. Mas quando chegam ao Sinai são
retidos e submetidos a tortura e extorsão. Os 2500 dólares vão subindo e
multiplicando-se. Põem-nos ao telefone com as famílias para que mandem mais
dinheiro. Quanto mais tarda em chegar o dinheiro, mais se incrementam as torturas
ou são vendidos a outros grupos. Temos pacientes que estiveram nove meses no
Sinai. Alguns a trabalhar como escravos a cuidar dos camelos, outros a sofrer
castigos corporais, as mulheres, na sua maioria, como escravas sexuais. O que
seja até que consigam pagar. Agora ainda estão a pagar até 40 mil dólares por
sair do Sinai.’
O enorme esforço de escuta das vítimas
e o seu grande trabalho para dar a conhecer e denunciar esta situação valeu à
Irmã Azezet ser galardoada com vários prémios internacionais, entre os quais
sobressai o Prémio Heróis contra o Tráfico de Pessoas, do Departamento de
Estado dos Estados Unidos, que recebeu em Julho de 2012.
Mulheres
desesperadas
Na parte sul de Telavive há também uma
casa de acolhimento para mulheres que permaneceram vários meses no deserto do
Sinai. Enquanto vamos visitá-la, Alicia e Azezet põem-me ao corrente da
situação destas mulheres, a maioria das quais foram violadas e chegam a Israel
grávidas de seis ou sete meses e com o desejo de abortar. A Irmã Azezet é para
elas uma tábua de salvação, porque podem falar e desabafar com ela. Em Julho, a
casa foi atacada pelos vizinhos. ‘Uma
casa que recolhe somente mulheres grávidas e bebés’, protesta a Irmã
Alicia. Neste momento há 17 mulheres grávidas ou com bebés nessa casa, que
necessitam de protecção.
A Irmã Azezet vai a Telavive todas as
terças-feiras e fica a dormir lá. De manhã, faz um trabalho de seguimento e
acompanhamento, visitando especialmente as mulheres. À tarde, ajuda na clínica.
É ela que suporta toda a carga emocional, já que ao conhecer a língua e a
cultura dos imigrantes é quem escuta os seus testemunhos, as torturas e os
vexames que sofrem. Está constantemente a receber chamadas telefónicas de todas
as partes, gente desesperada que procura nela uma palavra de consolo ou
simplesmente um coração aberto que escute as suas penas e lhe dê um pouco de
paz. Não é fácil, porque as sequelas humanas que a tortura ou a violação deixam
são enormes. ‘Em poucos meses, tivemos
três casos de suicídio, casos de violência doméstica ou alcoolismo. Várias
organizações humanitárias, juntamente com a União Europeia, iniciaram um
programa de reabilitação e ajuda a esta gente e deram-lhe o nome ‘Projecto
Azezet’’, explica a comboniana espanhola.
Tudo e para sempre
Já em casa, converso amigavelmente com
estas duas missionárias que são como duas flores no meio do deserto israelita.
Chama-me enormemente a atenção a sua vitalidade e, sobretudo, a sua alegria. A
resposta, dão-ma elas mesmas : o segredo está na sua fé em Deus e na convicção
de que a sua vocação está enraizada em Cristo.
Alicia decidiu-se a consagrar a sua
vida depois de uma Páscoa missionária em que participou quando tinha 17 anos. ‘Foi
fundamental para a orientação da minha vida’, confessa. ‘Desde então, começou uma reflexão sobre para onde estava a levar a
minha vida, que espaço tem a missão nela e o que tem que ver Jesus Cristo com
esta missão. Foi como um chamamento a passar de uma inquietude pelo social,
pelos pobres e a missão a ir mais além. Para mim, foi-se confirmando cada vez
mais a vocação de consagrada, que no princípio não entrava nos meus horizontes
nem no meu programa original, mas que encaixava como resposta a esse chamamento
que eu sentia dentro de mim. Quando queria encaixar a missão na minha vida de
fé, a resposta que me surgia sempre era “tudo e para sempre” e isso agradara-me
ou não implicasse uma consagração.’
Azezet começou a trabalhar com
leprosos. A sua primeira missão foi o Sul do antigo Sudão, onde passou treze
maravilhosos anos, segundo ela própria confessa. Para ela, a chave de tudo é a
sua convicção de que Deus é Pai de todos. ‘É
a primeira vez que venho a Israel e que tenho contacto com o povo judeu, as
suas sinagogas, as suas orações, a sua crença e a sua visão’, afirma. E
acrescenta : ‘São os nossos antepassados
na fé, Jesus era hebreu. Sou afortunada por ter crescido em Massawa, onde a
maioria é muçulmana, todos os meus amigos e colegas de escola eram muçulmanos.
Na Etiópia também há coptas e protestantes. Para mim, Deus é único, para as
três religiões é o Pai de todos, que ama a todos e nos criou à sua imagem e
semelhança. Todos – judeus, católicos, muçulmanos ou protestantes – somos
filhos de Deus, criados à Sua imagem. A diferença está em que nós partimos de
baixo, das nossas diferenças, em vez de partir de cima, da nossa crença de que
todos somos imagem de Deus.’
O nosso lugar
Israel é um país com uma situação muito
complexa, com realidades tão distintas como são os beduínos ou os refugiados.
Porém, ambas respondem a uma única pergunta, que é uma pergunta muito
comboniana : ‘Quem são os mais pobres e
abandonados aqui e agora?’ Esta é a pergunta que ressoava na comunidade das
Combonianas quando a Irmã Alicia chegou : ‘Projectávamos
como dar resposta a esta situação concreta como combonianas. O nosso ser
missionárias coloca-nos nas fronteiras, sejam geográficas, culturais ou
humanas. Estes dois grupos humanos com os quais escolhemos trabalhar são a
resposta à pergunta de onde devemos estar neste momento. Onde estejam essas
fronteiras, aí está o nosso lugar.’
O facto de viver em Jerusalém não é
alheio à vivência que estas duas missionárias têm da sua vocação. Aqui, na
Terra Santa, tudo se vê e se vive de maneira diferente. ‘Parte da serenidade,
da força, da alegria que recebemos vem da certeza de que nesta terra a paixão,
a morte e a ressurreição de Cristo ainda se vivem hoje’, confessa a Irmã
Alicia.
Por seu lado, a Irmã Azezet admite : ‘Com Jesus Cristo, sinto-me mais enraizada na
minha fé. Ao encontrar tanto sofrimento, sinto que Cristo vive a cruz comigo e
me ajuda a viver as cruzes e sofrimentos que encontro todos os dias nas
pessoas. Esse sofrimento faz-me entrar na vida de Jesus, na sua cruz, e isso
ajuda-me em todos os sentidos, faz-me ser mais radical, já que não posso passar
de maneira superficial pela vida que encontro em cada dia.’
Estes povos e esta terra são para elas
uma riqueza inegável : ‘Vejo como a minha
vida e o meu caminho espiritual se dilatam quanto mais conheço e quanto mais
participo na sua vida, nos grandes acontecimentos como o casamento, o
nascimento de um filho, a morte…’, reconhece Alicia, para acrescentar que ‘é algo específico que dá um sentido muito
pessoal à minha própria experiência da vida, da morte, da dor, do sofrimento,
do conflito, do perdão.’’
Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFAyVkkpuAONaCqaKw
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