* Artigo de Francisco Machado,
Missionário Comboniano
‘Finalmente chegou o dia
do baptismo e primeira comunhão de 60 adolescentes que terminavam uma caminhada
de três anos de iniciação cristã e se comprometiam num novo estilo de vida.
Este dia tinha sido preparado com uns cuidados muito especiais, porque a vida
em Dzogborve definhava de dia para dia. Dzogborve é uma pequena aldeia meio
abandonada devido à sua pouca importância económica e ao grande fluxo migratório,
especialmente em direcção à capital, Acra.
Esta aldeia fica situada
no Volta Region, região bem conhecida do Gana pela enorme barragem que aí foi
construída e que deu origem a um enorme lago artificial, talvez um dos maiores
do mundo.
A importância dada ao
ensino é muito pobre e seria mesmo sem qualquer relevância se não fosse o
grande contributo oferecido pelos missionários combonianos. Estes construíram a
escola e apelam constantemente para a necessidade de novos professores. Uma das
consequências do baixo nível cultural é a dificuldade que o povo de Dzogborve
sente em abandonar muitas das suas nefastas práticas tradicionais, baseadas no
medo e na vingança.
Assim, no dia 20, eu
acordei por volta das 4.30 da manhã e preparei-me como habitualmente para o meu
“safari”. Já com o saco de trabalho missionário às costas e quando retirava a
moto da garagem, uma visita atrasou a minha partida. Uma jovem dos seus 19 anos
de idade e com um rosto muito triste e pesado apresentou-se e disse: «Sr.
padre, não sou cristã, mas porque tenho muita estima por vós e pela vossa
Igreja, gostaria que escutasse a minha mágoa.”
Ser útil ao povo
Deixando o saco e
esquecendo completamente a minha tão esperada celebração em Dzogborve, escutei
esta menina. Com o rosto um pouco escondido, ela disse: “Desde criança que
trabalho para poder frequentar a escola e acredito que o meu esforço um dia
será útil ao meu povo. No fim de tão longa caminhada, consegui a admissão na
universidade para estudar enfermagem.” E continuou: “Dirigi-me a quem me
poderia ajudar. O meu pai disse-me que os seus recursos não chegavam para
prover às necessidades das suas três esposas. O meu tio disse-me que me
ajudaria se me entregasse a ele. Eu, por mim, prefiro não estudar e ser eu
mesma, que ser um dia enfermeira mas sem a minha dignidade de mulher e de
africana. Confesso-lhe que ainda não perdi a coragem.” Sentindo todo o seu
sofrimento, assegurei-a de que a missão a ajudaria nos seus propósitos.
Agruras da vida
Feita a despedida, pus-me
a caminho para Dzogborve. Nesse dia a estrada de terra batida estava mais
estragada do que habitualmente, porque tínhamos já entrado na estação das
chuvas. Parecia-me também mais longa, muito embora o coração me palpitasse de
expectativa e os lábios balbuciassem canções de alegria. Subitamente, um
relâmpago iluminou os céus e um forte trovão atroou aos meus ouvidos. Aí estava
a chuva tropical tipicamente africana que, num instante, deixou a minha estrada
quase impraticável. Como se estes imprevistos não fossem suficientes para me
indicarem a dificuldade de realizar a tal viagem, dei-me conta de que a roda da
frente da moto estava quase vazia. “Não faz mal”, disse em voz baixa e um pouco
ansioso; “cheguei até aqui, não voltarei para trás, para frente é que é o
caminho”.
Embora com hora e meia de
atraso, por fim cheguei à minha comunidade. Estava molhado da cabeça à ponta
dos pés, mas o meu entusiasmo renovou-se quando vi o rosto paciente e
surpreendido dos cristãos e catecúmenos que cantavam um pouco para esquecerem o
seu desencanto. Já ninguém esperava que o missionário chegasse, nem mesmo o
catequista, que, no entanto, tinha iniciado uma pequena celebração.
Ao entrar, notei que ao
fundo da sala, onde chovia quase tanto como lá fora, se encontrava a senhora
Mawusi - nome que significa nas mãos de Deus. Esta senhora, embora sendo a mãe
do catequista e gostasse muito de Jesus, não conseguia libertar-se das práticas
religiosas tradicionais.
Ainda antes do início da
Eucaristia dirigi-me a ela e disse-lhe: “Então, senhora Mawusi, é hoje que vai
receber Jesus?” Com uma certa tristeza, respondeu-me: “Sabes que eu gosto muito
de Jesus, mas não posso abandonar aqueles a quem sirvo há já tanto tempo
(referia-se aos ídolos que herdara dos seus antepassados), caso contrário
levar-me-ão à morte e castigarão a minha família”. Sim, mais uma vez, senti e
experimentei quanto custa deixar tudo e confiar n’Aquele que morreu e
ressuscitou para trazer uma nova vida aos homens.
Terror dos espíritos
A celebração ultrapassou
em muito todas as minhas expectativas, não só porque participei na alegria de
muitos jovens que se viram definitivamente livres das fortes cadeias do medo,
mas também porque a celebração não terminou com a Eucaristia. Enquanto muitos
cantavam e dançavam à chuva, alguns apressaram-se a reparar o furo da moto;
eram só seis buracos!
Uma senhora bastante
idosa aproximou-se e disse-me em voz submissa mas confidente: “Uma vez que já
sou filha de Deus e que tenho Jesus como amigo e protector, já não necessito
dos ídolos que me mantiveram sob o terrível e poderoso peso do medo durante
toda a minha vida. Quero que hoje mesmo venha a minha casa, os retire e leve
consigo. Desejo mostrar ao meu povo e à senhora Mawusi que, com Jesus, nada
temos a temer.”
Não hesitei e acompanhei
a velhinha, que agora apresentava um ar mais alegre, mas um pouco temeroso.
Depois de uma breve oração, retirámos todas a estátuas, mesas, bancos e
bonecos, tudo em miniatura, juntamente com algumas moedas e facas. Quando
regressávamos para junto da comunidade que cada vez se animava mais na sua
festa, ouviu-se a voz já bem mais firme e confiante da nossa simpática
velhinha: “Pai do Céu, obrigado porque me permitiste conhecer e confiar no Teu
Filho”.
Nada mais belo para o missionário
do que sentir a realização do seu sonho da vida, ao ajudar as pessoas a
experimentarem e partilharem a alegria da libertação conseguida através de
Jesus Cristo. Era a realização do desejo de Jesus: “Eu vim para que tenhais a
vida e a tenhais em abundância.”’
Fonte :
*Artigo na íntegra http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EEuuEFAApZkbXyorPZ
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