segunda-feira, 7 de abril de 2014

Ciganos, um teste à nossa fé

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de P. Manuel Soares,
então Diretor da Obra Católica De Migrações

‘Em certos momentos e circunstâncias compreendemos melhor a força das palavras de Jesus. Dirigida aos judeus do seu tempo, a Parábola do Samaritano não teria sido nada fácil de «engolir» para o judeu formalmente religioso, defensor, modelo, legislador da correcta e oficial religião judaica naquela época.

Com efeito, o único que, na história contada por Jesus, se tinha comportado decentemente era o desprezado, rejeitado, esquecido samaritano, que o judeu não suportava e excluía da sua convivência, sem qualquer escrúpulo de consciência.

Nós, que estamos fora da história do samaritano, achamos que as palavras de Jesus vieram a propósito e foram uma boa lição para aqueles judeus orgulhosos, legalistas, pseudo-religiosos, incapazes de compreenderem e viver a «verdadeira religião». Às vezes, achamos até que nós, enquanto cristãos, éramos incapazes, seria mesmo inconcebível ter um comportamento semelhante ao dos representantes do judaísmo oficial, que eram o sacerdote e o levita. É verdade tudo isto. O cristianismo deverá elevar-se acima do judaísmo, o Evangelho é guia claro para o nosso modo de agir. De resto, a situação narrada é de outro tempo, a história apresentada por Jesus é da sua época.

O nosso grande drama é justamente olharmos para o Evangelho pelo lado de fora, fora e acima dele, considerando-o bem aplicado a um tempo, a uma história, a circunstâncias determinadas, a pessoas concretas difíceis de se emendar. Nós não estamos lá dentro, não somos actores, nem ouvintes a quem as palavras ferem e doem, não sentimos o olhar do Senhor voltar-se para nós. E, contudo, é bem fácil introduzirmo-nos nesta parábola e reagirmos às cortantes palavras de Cristo, com uma pequena modificação do texto: «Casualmente descia por esse caminho um sacerdote...; igualmente um levita...; porém, um cigano que ia em viagem chegou junto dele, viu e moveu-se de compaixão.»


Aos nossos olhos perguntamo-nos seriamente: será possível que um cigano alguma vez faça isso por um não cigano? Tal como os judeus em relação aos samaritanos, dizemos não. É aqui que ficamos cegos e surdos às palavras de Jesus: esta parábola não é possível ser real, não tem sentido.


Na Igreja que nós somos não queremos ouvir dos ciganos, não toleramos as palavras de apoio, de respeito e de solidariedade que alguns idealistas e contestatários habituais, brandindo o Evangelho, proferem contra o sentir comum e geral do povo, sejam eles leigos, padres ou mesmo bispos. Dentro da Igreja, em largos sectores e a muitos níveis, reina a intolerância para com o povo cigano e, se alguns não ousam a palavra «intolerância», preferem, contudo, fazer «tabu» do assunto ou mostrar toda a sua compreensão, aceitação e apoio explícito às atitudes de rejeição e de agressividade de algumas comunidades e autoridades que «não querem poluir as suas aldeias». Jesus certamente sabia que os samaritanos do seu tempo não eram «impolutos» nem impecáveis.

Pela nossa experiência humana e social sabemos todos, mesmo os que ousam defender a convivência entre todos os seres humanos, que dentro da etnia cigana há crime, violência, exploração, miséria moral. Mas quem nos dá autoridade para condenarmos de uma só vez todo um sector da população, atribuindo-lhe a origem dos males da sociedade, deixando o resto dos homens e das mulheres «intocáveis» ou «desculpáveis»? Quem nos diz que entre os ciganos não se encontra gente séria, honesta, boa e santa? A Igreja acaba de reconhecer um deles como «quase santo» e outros certamente estarão escondidos. Será pela rejeição, pela «guetização» que nós, gente civilizada e educada, podemos transformá-los, instruí-los, educá-los, integrá-los na nossa sociedade, respeitando, contudo, a sua cultura e os seus valores (que os têm)?

O Evangelho toca-nos verdadeiramente. Estamos dentro dele. Por isso, a vida e os próprios ciganos são um desafio para a Igreja do nosso tempo.’


Fonte :
*Artigo na íntegra http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EEuupVVFAZcKnoZLGN

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