* Artigo de P. Manuel Soares,
então Diretor da Obra Católica De Migrações
‘Em certos momentos e
circunstâncias compreendemos melhor a força das palavras de Jesus. Dirigida aos
judeus do seu tempo, a Parábola do Samaritano não teria sido nada fácil de
«engolir» para o judeu formalmente religioso, defensor, modelo, legislador da
correcta e oficial religião judaica naquela época.
Com efeito, o único que,
na história contada por Jesus, se tinha comportado decentemente era o
desprezado, rejeitado, esquecido samaritano, que o judeu não suportava e excluía
da sua convivência, sem qualquer escrúpulo de consciência.
Nós, que estamos fora da
história do samaritano, achamos que as palavras de Jesus vieram a propósito e
foram uma boa lição para aqueles judeus orgulhosos, legalistas,
pseudo-religiosos, incapazes de compreenderem e viver a «verdadeira religião».
Às vezes, achamos até que nós, enquanto cristãos, éramos incapazes, seria mesmo
inconcebível ter um comportamento semelhante ao dos representantes do judaísmo
oficial, que eram o sacerdote e o levita. É verdade tudo isto. O cristianismo
deverá elevar-se acima do judaísmo, o Evangelho é guia claro para o nosso modo
de agir. De resto, a situação narrada é de outro tempo, a história apresentada
por Jesus é da sua época.
O nosso grande drama é
justamente olharmos para o Evangelho pelo lado de fora, fora e acima dele,
considerando-o bem aplicado a um tempo, a uma história, a circunstâncias
determinadas, a pessoas concretas difíceis de se emendar. Nós não estamos lá
dentro, não somos actores, nem ouvintes a quem as palavras ferem e doem, não
sentimos o olhar do Senhor voltar-se para nós. E, contudo, é bem fácil
introduzirmo-nos nesta parábola e reagirmos às cortantes palavras de Cristo,
com uma pequena modificação do texto: «Casualmente descia por esse caminho um
sacerdote...; igualmente um levita...; porém, um cigano que ia em viagem chegou
junto dele, viu e moveu-se de compaixão.»
Aos nossos olhos
perguntamo-nos seriamente: será possível que um cigano alguma vez faça isso por
um não cigano? Tal como os judeus em relação aos samaritanos, dizemos não. É
aqui que ficamos cegos e surdos às palavras de Jesus: esta parábola não é
possível ser real, não tem sentido.
Na Igreja que nós somos
não queremos ouvir dos ciganos, não toleramos as palavras de apoio, de respeito
e de solidariedade que alguns idealistas e contestatários habituais, brandindo
o Evangelho, proferem contra o sentir comum e geral do povo, sejam eles leigos,
padres ou mesmo bispos. Dentro da Igreja, em largos sectores e a muitos níveis,
reina a intolerância para com o povo cigano e, se alguns não ousam a palavra
«intolerância», preferem, contudo, fazer «tabu» do assunto ou mostrar toda a
sua compreensão, aceitação e apoio explícito às atitudes de rejeição e de
agressividade de algumas comunidades e autoridades que «não querem poluir as
suas aldeias». Jesus certamente sabia que os samaritanos do seu tempo não eram
«impolutos» nem impecáveis.
Pela nossa experiência
humana e social sabemos todos, mesmo os que ousam defender a convivência entre
todos os seres humanos, que dentro da etnia cigana há crime, violência,
exploração, miséria moral. Mas quem nos dá autoridade para condenarmos de uma
só vez todo um sector da população, atribuindo-lhe a origem dos males da
sociedade, deixando o resto dos homens e das mulheres «intocáveis» ou
«desculpáveis»? Quem nos diz que entre os ciganos não se encontra gente séria,
honesta, boa e santa? A Igreja acaba de reconhecer um deles como «quase santo»
e outros certamente estarão escondidos. Será pela rejeição, pela «guetização»
que nós, gente civilizada e educada, podemos transformá-los, instruí-los,
educá-los, integrá-los na nossa sociedade, respeitando, contudo, a sua cultura
e os seus valores (que os têm)?
O Evangelho toca-nos
verdadeiramente. Estamos dentro dele. Por isso, a vida e os próprios ciganos
são um desafio para a Igreja do nosso tempo.’
Fonte :
*Artigo na íntegra http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EEuupVVFAZcKnoZLGN
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