* Artigo
de Bento XVI, Papa Emérito
‘Hoje
gostaria de falar de Santo
Isidoro de Sevilha : era o irmão mais jovem de Leandro, Bispo
de Sevilha, e grande amigo do Papa Gregório Magno. O relevo é importante,
porque permite ter presente uma aproximação cultural e espiritual indispensável
para a compreensão da personalidade de Isidoro. Com efeito, ele deve muito a
Leandro, pessoa muito exigente, estudiosa e austera, que tinha criado à volta
do irmão mais jovem um contexto familiar caracterizado pelas exigências
ascéticas próprias de um monge e pelos ritmos de trabalho exigidos por uma
séria dedicação ao estudo. Além disso, Leandro preocupou-se em predispor o
necessário para fazer face à situação político-social do momento : de facto,
nestas décadas os Visigodos, bárbaros e arianos, tinham invadido a península
ibérica e dominado os territórios que pertenciam ao império romano. Era
necessário conquistá-los para a romanidade e para o catolicismo. A casa de
Leandro e de Isidoro dispunha de uma biblioteca muito rica de obras clássicas,
pagãs e cristãs. Isidoro, que se sentia atraído simultaneamente por umas e
outras, foi por isso educado a desenvolver, sob a responsabilidade do irmão
maior, uma disciplina mais forte dedicando-se ao seu estudo com discrição e
discernimento.
Por
isso, no paço episcopal de Sevilha vivia-se num clima sereno e aberto. Podemos
deduzi-lo dos interesses culturais e espirituais de Isidoro, assim como
sobressaem das suas próprias obras, que incluem um conhecimento enciclopédico
da cultura clássica pagã e um aprofundado conhecimento da cultura cristã.
Explica-se assim o eclectismo que caracteriza a produção literária de Isidoro,
que passa com extrema facilidade de Marcial a Agostinho, de Cícero a Gregório
Magno. A luta interior que teve de empreender o jovem Isidoro, tornando-se
sucessor do irmão Leandro na cátedra episcopal de Sevilha em 599, não foi de
modo algum ligeira. Talvez se deva precisamente a esta luta constante consigo
mesmo a impressão de um excesso de voluntarismo que se sente ao ler as obras
deste grande autor, considerado o último dos Padres cristãos da antiguidade.
Poucos anos depois da sua morte, em 636, o Concílio de Toledo de 653 definiu-o
: ‘Ilustre mestre da nossa época e glória
da Igreja católica’.
Sem
dúvida, Isidoro foi um homem de acentuadas oposições dialécticas. E, mesmo na
sua vida pessoal, experimentou um conflito interior permanente, muito
semelhante ao que já São Gregório Magno e Santo Agostinho tinham sentido, entre
desejo de solidão, para se dedicar unicamente à meditação da Palavra de Deus, e
exigências da caridade para com os irmãos de cuja salvação, como Bispo, se
sentia responsável. Por exemplo, a propósito dos responsáveis das Igrejas ele
escreve : ‘O responsável de uma Igreja
(vir ecclesiasticus) deve por um lado deixar-se crucificar no mundo com a
mortificação da carne e, por outro, aceitar a decisão da ordem eclesiástica,
quando ela provém da vontade de Deus, de se dedicar ao governo com humildade,
mesmo que não o queira fazer’ (Sententiarum liber III, 33, 1 : PL 83, col.
705 B). Então, somente um parágrafo depois, ele acrescenta : ‘Os homens de Deus (sancti viri) não desejam
de modo algum dedicar-se às realidades seculares e gemem quando, por um
misterioso desígnio de Deus, são carregados com certas responsabilidades...
Eles fazem de tudo para as evitar, mas aceitam aquilo que gostariam de eludir e
levam a cabo o que quereriam evitar. Com efeito, entram no segredo do coração
e, ali dentro, procuram compreender o que exige a misteriosa vontade de Deus. E
quando se dão conta que se devem submeter aos desígnios de Deus, humilham o
pescoço do coração sob o jugo da decisão divina’ (Sententiarum liber III,
33, 3 : PL 83, coll. 705-706).
Para
entender melhor Isidoro é necessário recordar, em primeiro lugar, a
complexidade das situações políticas do seu tempo, à qual já me referi :
durante os anos da infância, experimentou a amargura do exílio. Não obstante,
vivia imbuído de entusiasmo apostólico : experimentava o entusiasmo de
contribuir para a formação de um povo que finalmente encontrava a sua unidade
nos planos político e religioso, com a providencial conversão do herdeiro ao
trono visigodo Hermenegildo, do arianismo à fé católica. Todavia, não se deve
subestimar a enorme dificuldade de enfrentar de modo adequado problemas muito
graves, como aqueles com os hereges e com os judeus. Toda uma série de
problemas que parecem muito concretos hoje, sobretudo se se considera o que
acontece em certas regiões onde parece que assistimos ao repropor-se de
situações muito semelhantes, presentes na península ibérica naquele século VI.
A riqueza dos conhecimentos culturais de que Isidoro dispunha permitia
confrontar continuamente a novidade cristã com a herança clássica greco-romana,
embora mais que o dom precioso da síntese, parece que ele tivesse o da
collatio, ou seja, do recolhimento, que se manifestava numa extraordinária
erudição pessoal, nem sempre ordenada como se poderia desejar.
De
qualquer maneira, é motivo de admiração a sua preocupação de nada descuidar
daquilo que a experiência humana tinha produzido na história da sua pátria e do
mundo inteiro. Isidoro nada queria perder daquilo que fora adquirido pelo homem
nas épocas antigas, quer fossem pagãs, judaicas ou cristãs. Portanto, não nos
devemos admirar se, em vista desta finalidade, acontecia que às vezes ele não
conseguia transmitir adequadamente, como desejaria, os conhecimentos que
possuía através das águas purificadoras da fé cristã. De facto, todavia, nas
intenções de Isidoro, as propostas que ele apresenta permanecem sempre em
sintonia com a fé católica, por ele sustentada com determinação. No debate dos
vários problemas teológicos, ele demonstra que compreende a sua complexidade e
propõe muitas vezes com perspicácia soluções que resumem e exprimem a verdade
cristã completa. Isto permitiu que os fiéis, ao longo dos séculos, fruíssem com
gratidão das suas definições até aos nossos tempos. Um exemplo significativo, a
este respeito, é-nos oferecido pelo ensinamento de Isidoro sobre as relações
entre vida activa e vida contemplativa. Ele escreve : ‘Aqueles que procuram alcançar o descanso da contemplação devem
preparar-se primeiro no estádio da vida activa; e assim, livres dos resíduos do
pecado, serão capazes de exibir aquele coração puro, o único que permite ver
Deus’ (Differentiarum Lib II, 34, 133 : PL 83, col. 91 A). Porém, o
realismo de um verdadeiro pastor convence-o do risco que os fiéis correm de
reduzir-se a ser homens unidimensionais. Por isso, acrescenta : ‘O caminho do meio, composto por uma e outra
forma de vida, é normalmente mais útil para resolver aquelas tensões que muitas
vezes são aumentadas pela escolha de um só género de vida e por vezes são
melhor temperadas por uma alternância das duas formas’ (o.c., 134 : ibid.,
col. 91 B).
Isidoro
procura a confirmação definitiva de uma justa orientação de vida no exemplo de
Cristo, e diz : ‘O Salvador Jesus
ofereceu-nos o exemplo da vida activa quando, durante o dia, se dedicava a
oferecer sinais e milagres na cidade, mas mostrou a vida contemplativa quando
se retirava no monte e ali pernoitava dedicando-se à oração’ (o.c., 134 :
ibid.). À luz deste exemplo do Mestre divino, Isidoro pode concluir com este
ensinamento moral específico : ‘Por isso
o servo de Deus, imitando Cristo, dedique-se à contemplação sem se negar à vida
activa. Não seria justo comportar-se de outra forma. Com efeito, assim como se
deve amar a Deus com a contemplação, também se deve amar o próximo com a acção.
Por conseguinte, é impossível viver sem a presença simultânea de uma e de outra
forma de vida, nem é possível amar, se não se vive a experiência de uma e de
outra’ (o.c., 135 : ibid., col. 91 C). Na minha opinião, esta é a síntese
de uma vida que busca a contemplação de Deus, o diálogo com Deus na oração e na
leitura da Sagrada Escritura, assim como a acção ao serviço da comunidade
humana e do próximo. Este resumo é a lição que o grande Bispo de Sevilha deixa
a nós, cristãos de hoje, chamados a dar testemunho de Cristo no início de um
novo milénio.’
(18 de junho de 2008)
Fonte :
* Bento XVI, Santos e Doutores da Igreja (catequeses
condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário